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O encontro em seus dois momentos

Relato por Gabriel Menotti

A divisão do Encontro Internacional de Curadoria em dois momentos parece derivar da forma como o próprio Fórum Permanente organiza sua atuação em dois campos distintos. A reunião fechada, na sala Ademar Guerra, pretendia abrir um espaço de negociação e diálogo nos “interstícios do mundo da arte.” Já a apresentação na praça das bibliotecas convinha à comunicação desse debate em uma “esfera pública.”

A sala Ademar Guerra é um grande galpão, e normalmente serve à apresentação de espetáculos experimentais (como na 5a Mostra Latino-Americana de teatro de grupo, ocorrida em Abril). Ela parece relativamente omitida da rotina do CCSP, escondida nos seus porões. Me pergunto quantos dos freqüentadores regulares do Centro sabem da sua existência – e quantos estudantes desavisados não andavam sobre ele sexta-feira, sem saber do grupo que ali tentava SET AN AGENDA FOR THE NEXT DECADE ON CURATING.

Para o evento, o espaço foi mobiliado com quatro grandes mesas quadradas; em um canto, uma pesada cortina negra escondia uma quinta, do almoço. Por automático que fosse qualificar essa organização como dramática, seria melhor entendê-la como laboratorial. Mais do que um cenário para a discussão, a sala Ademar Guerra fazia as vezes de um biombo metafórico que a isolava do mundo exterior, substituindo a luz do dia pelas lâmpadas focadas sobre cada mesa, o tempo ordinário pelos prazos do evento. Assim, ela abria espaço para que um grupo assaz heterogêneo (que reunia desde Carolyn Christov-Bakargiev, curadora da próxima Documenta, ao “anarquista” André Mesquita) pudesse se concentrar em uma atividade comum, apesar de toda dispersão pré-Bienal.

Ao criar essas condições, o Encontro já negociava com diversos empecilhos ao trabalho curatorial que vieram a ser verbalizados durante o debate – obstáculos tanto internos quanto externos ao campo da arte. O principal exemplo desses é o ritmo do mercado, que exerce fortes pressões sócio-econômicas sobre a investigação do curador; daqueles, a crescente complexidade das instituições, que promove um engessamento hierárquico que dilapida o diálogo entre curador e artista.

Não foi apenas o isolamento da reunião que deu conta desses problemas, mas principalmente o modo como esse isolamento permitiu uma diluição de protocolos discursivos. Se houvesse mais gente, seria necessário criar uma estrutura suplementar para coordenar falas e intervenções. No caso da transmissão ao vivo do evento pela internet, o debate provavelmente ficaria submetido a circulação do microfone. O despojamento estrutural aproximava os participantes, e deve ter contribuído para a dinamização das conversas. Nesse sentido, o espaço cênico se prestava ao contrário do teatro: ao apagamento de marcações e à mistura entre público e atores.

No entanto, por mais que se tratasse de um intervalo na rotina normal, a reunião estava muito bem medida e pautada, apontando para a sua comunicação pública no dia seguinte. Os mediadores de todas as mesas estavam incumbidos de participar dessa relatoria quase imediata, e o final do encontro foi dedicado a planejá-la. A aparente dificuldade em racionalizar os trabalhos do dia e definir um resultado a ser apresentado levou o grupo a cogitar alguns formatos de conferência alternativos, mas no fim optou-se por uma seqüência de palestras bastante convencional, em que cada mediador faria o sumário do que foi discutido em sua mesa e depois a audiência estaria livre para intervir. Tudo seria transmitido pela Internet, como é de hábito nas atividades organizadas pelo Fórum Permanente.

A apresentação aconteceu na praça das bibliotecas, que, ao contrário da sala Ademar Guerra, é um espaço de alta visibilidade no CCSP. Localizada no vão sob as rampas que comunicam o primeiro ao segundo piso, a praça fica exposta ao grande público como um palco de anfiteatro. É simbólico que, para quem estivesse passando por fora, a mesa com os mediadores, a audiência e toda a equipe técnica (inclusive os tradutores) compartilhassem esse mesmo tablado. Dessa perspectiva, a divisão de campos de atuação do Fórum Permanente se revela mais como um princípio de organização interno do que um esquema a priori de como um circuito se organiza e deve ser afetado.

Muito dos interstícios do mundo da arte se localiza na esfera pública, nem que seja metaforicamente: na platéia, estavam vários dos participantes da reunião do dia anterior, além de outros especialistas do meio. Ao dar voz ao público, a discussão foi reaberta e situada. A audiência tanto criava demandas que a mesa não planejava dar conta (por exemplo, na dúvida de Michael Ashbury sobre a real possibilidade de uma “mediação critica”) quanto cuidava daquelas com que a mesa não sabia como lidar (na intervenção de Daniela Labra, respondendo a uma questão aparentemente desconexa sobre arte e graffiti com um relato de caso que fechou o debate).

Isso me leva a pensar no quanto a atuação individual (necessariamente particular) pode ter preponderância sobre organizações discursivas e papéis predefinidos. Fica a dúvida de em que medida não são os próprios princípios institucionais de reflexão sobre o circuito da arte que criam ou reforçam suas divisões (em campos comuns, produzindo “margens”). Nesse sentido, outra aparente contradição que deve ser pontuada é que o Encontro pegava carona na abertura da 29a Bienal de São Paulo (motivo pelo qual tantas pessoas envolvidas com arte se concentraram na cidade naquela semana). Logo, de certa forma, o que o tornou possível foram as mesmas contingências das quais ele tentava se isolar. Isso sugere que, mais do que inevitáveis, essas contingências sejam talvez necessárias. (Resta saber como mantê-las em constante negociação.)

 

Um tema transversal: Crítica e Curadoria

Um assunto que atravessou todas as mesas foram as relações entre crítica e curadoria, possivelmente por causa do esvaziamento e extinção da mesa que deveria ter se dedicado a esse tema. As opiniões a respeito foram divergentes. Para Luisa Duarte, por exemplo, todo curador é antes um crítico. No relato da segunda mesa, feito por Pâmela Prado, colocou-se que o critico está desaparecendo e o curador (ainda?) não o substituiu.

Entre essas duas posturas, tendo a concordar com a primeira. Eu diria que o que se sente como um enfraquecimento da atividade crítica é na verdade um esmorecimento do texto como forma expressiva (que, conforme se vai, carrega consigo determinados parâmetros estéticos e epistemológicos). Uma possível migração da crítica para dentro da atividade curatorial não me parece inesperada, dada a natureza sistêmica desta última, muito mais afim com os modos discursivos da contemporaneidade. De onde está, o curador é capaz de negociar contextos, enquadrar obras e estabelecer relações entre estas e esquemas teóricos. Essencialmente, o que isso parece causar é um deslocamento do momento e postura da crítica para dentro das camadas de mediação que envolvem a exposição de arte.

Em suas últimas instâncias, é isso que parece abrir cada vez mais precedentes para o “formalismo” da curadoria apontado por Luiza Proença durante o debate. Reconhecer esse fato é o primeiro passo para se pensar estrategicamente as possibilidades de uma mediação critica, sugerida por Martin Grossmann no relato da mesa 4. Na verdade, não sei dizer o quanto uma tendência pode ser diferenciada da outra. Nesse sentido, apelo para a evocação feita por Ricardo Basbaum das vanguardas modernas, que se organizavam sem curador. O processo de autogestão desses grupos envolvia projetos museográficos bastante ousados (como The Room of Our Time, de László Moholy-Nagi), e algumas instalações voltadas especificamente para tensionar o contato do público com a exposição (a exemplo de Sixteen Miles of String, de Marcel Duchamp).