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Modelos para armar: pensar América Latina desde a coleção Musac

por Julia Buenaventura

24 horas antes da palestra de Agustín Pérez Rubio e Octavio Zaya, sobre a exposição intitulada Modelos para armar: pensar América Latina desde a coleção Musac, na mesma mesa e no mesmo evento a vice-presidente e diretora do departamento da América Latina da casa de leilões Sothebys Maria Bonda da Pezuela respondia a seguinte pergunta formulada por um dos espectadores: “É muito difícil para um artista latino-americano passar a ser um artista contemporâneo?”

Sem a menor intenção irônica, a pergunta estava regida por um interesse pragmático: referia-se às mesmas seções que estruturam a casa de leilões, e foi formulada com a consciência que a passagem de um departamento a outro, neste caso, do latino-americano ao contemporâneo, supõe uma automática inflação no valor e, consequentemente, uma possível inflação na sua valorização estética. Assim a resposta foi tão clara quanto concisa: “Não é simples, mas é possível”.

Bom. Começo 24 horas antes porque a situação relatada dá conta de um contexto e, com ele, da observação persistente de Octavio Zaya em explicar que, sob circunstância nenhuma, a exposição que está sendo organizada pelo MUSAC é uma mostra de obras ou de artistas latino-americanos, mas uma mostra de arte contemporânea desde a qual será pensada a América Latina. Essa observação resulta, então, fundamental, pois revela uma batalha que, faz duas décadas, a arte latino-americana tem travado para não ser “latino-americana”, para escapar desse adjetivo e lograr a ser “contemporânea”, já que uma instância rejeita a outra. De fato, uma localização geográfica parece implicar uma localização histórica, uma espécie de passado singular, pois não é possível estabelecer sua cronologia, nem suas datas, nem seus limites.

Mas, vamos por partes. A apresentação, que teve como mediador Martin Grossmann, versou sobre dois temas básicos: primeiro o próprio MUSAC e a sua trajetória; segundo, a exposição mencionada e o conjunto de atividades que a acompanharão, as quais se estenderão durante todo o segundo semestre do ano em curso (2010).

A primeira parte, apresentada por Agustín Pérez Rubio, diretor do Musac e curador de várias importantes exposições da instituição, referiu o percurso do museu desde sua abertura no ano de 2005. Um processo que pode ser revelado por dois números chave: 160.000 visitantes e 1.700 obras. O primeiro, 160.000, refere-se especificamente à quantidade de visitantes que o Musac alcançou no ano passado, 2009, cifra bastante alta para um museu recente e que se encontra, assim como advertiu Pérez Rubio, numa cidade de 140.000 habitantes. Deste modo, o número não somente indica visitantes externos, turistas que chegam em León – e vale lembrar que o edifício é uma obra de arquitetura que, projetada por Emilio Tuñón e Luis Moreno Mansilla, recebeu o Prêmio Mies van der Rohe, em 2007 – mas também de visitantes da comunidade mesma, um público com o qual o museu tem conseguido gerar contato, e com isso, propor-se como espaço de encontro e interlocução; em resumo, um centro cujas atividades são frequentadas pelos vizinhos e não somente por um público turista ou especializado.

Entre todos os projetos que vem desenvolvendo a instituição, Agustín Pérez Rubio assinalou dois em particular. De uma parte, a revista Hipatia, publicação bimestral realizada pelas internas do presídio feminino da cidade, e que é produto de um trabalho com oficinas educativas e visitas às diferentes coleções do museu, o que tem gerado um espaço de diálogo que, sem deixar de lado questões estéticas, é capaz de criar novos partícipes. De outra parte, o projeto Primer Proforma 2010, uma espécie de “quarentena” na qual três artistas plásticos permanecerão no museu durante quarenta dias, oito horas por dia, modificando e transformando suas próprias obras, para depois expô-las.  Uma experiência singular, desde o ponto em que altera a condição mesma da instituição, pois através dela, o museu passa de um espaço tradicional de exibição a ser um centro de criação ativa.

O segundo número mencionado: as 1.700 obras adquiridas nos cinco anos de funcionamento do Musac, não faz tanta referência à quantidade, como às características específicas das peças e, ainda mais, à origem de seus 450 autores; artistas que provém de todas as coordenadas do globo, de modo que a coleção brinda a possibilidade de acessar vários pontos de vista; todo um leque de criações diversas que têm, nesse espaço, um lugar de encontro, o que não implica que a coleção tenha seguido linhas pré-estabelecidas.

Em resumo e novamente, a coleção do museu se propõe como um espaço de diálogo. Só é preciso mais um dado mencionado na conversa: neste momento o Musac conta com a maior coleção de arte asiática atual da Europa. Porém, assim como foi dito por Pérez Rubio, é pertinente aclarar que essa diversidade de origens não foi um objetivo planejado, mas um fenômeno surgido de uma procura regida pela qualidade das obras, sem ter na conta as nacionalidades, as procedências, as regiões. Enfim, Pérez Rubio afirmou que o interesse principal na conformação do acervo era o de não clonar coleções, mas gerar um conjunto capaz de partir desde a aquisição das obras.

Na continuação, Octavio Zaya abriu sua palestra partindo do mesmo ponto: o problema de aquisição das peças, o processo de seleção, neste caso abordando, particularmente, as obras que conformarão Modelos para Armar.  Deste modo, Zaya sublinhou que a procura, iniciada no ano de 2006, longe de apontar a peças latino-americanas, dirigia-se a obras de artistas da – ou relacionados com – América Latina. Uma diferenciação chave, pois, de uma parte, dilata o espectro – de fato, na lista de 48 artistas, estão incluídos dois que não nasceram nesse território e 14 dos quais têm sua residência fora do mesmo –; e, de outra parte, põe em questão uma problemática que tem sido fundamental para a arte do continente nas últimas duas décadas: o assunto da nacionalidade e, especificamente, da “latinoamericanidade”. Um adjetivo – latino-americano – que começou a ser problematizado no final dos anos 80, numa discussão que, pode-se dizer, foi encabeçada pelo crítico cubano Gerardo Mosquera, quando propôs o termo “Arte da América Latina” como opção capaz de escapar a uma condição de dependência e subdesenvolvimento.

É preciso lembrar que a relação de Octavio Zaya com essa problemática é de longa data. No artigo Transterritorial (1997), Zaya conta um caso revelador: em 1994 Carla Stellweg propôs a sua galeria, com sede em Nova Iorque, para participar da lista que representaria os Estados Unidos, país convidado, na ARCO (Feira Internacional de Arte Contemporânea de Madri). Porém, a proposta foi rejeitada com argumentos que, segundo a mesma senhora Stellweg, localizavam a sua galeria fora da órbita da arte contemporânea propriamente dita dos Estados Unidos, ou, em outras palavras, a galeria era compreendida como uma espécie de sucursal da arte da América-Latina. Bom, dois anos depois, foi o mesmo Octavio Zaya que propôs a galeria Carla Stellweg para a versão “America-Latina em ARCO”, porém a proposta foi novamente rejeitada sob o argumento segundo o qual “Estados Unidos já tinha tido a sua oportunidade”. Uma história simples capaz de pôr à vista uma problemática de catalogação já discutida em seminários e congressos, mas que, longe de se restringir à teoria, é produto de uma série de fatores tangíveis, específicos e práticos: de migrações e emigrações, de circunstâncias políticas e problemáticas econômicas.

Volto ao começo, à pergunta de se é muito difícil para um artista latino-americano passar a ser um artista contemporâneo, e volto à resposta citada: não é simples, mas é possível.

Assim sendo, Modelos para Armar: Pensar América Latina desde a Coleção Musac, curada pelos conferencistas e também por Maria Inés Rodríguez, não está à margem destas questões, primeiro porque não tenta apresentar arte latino-americana, mas pensar América Latina, seja como continente, seja como história, seja como limites em dissolução contínua.  Segundo, porque, partindo do texto Modelos para armar de Julio Cortázar, e da sua ruptura com um ordenamento cronológico como um ordenamento de fato coerente, a exposição aponta a “uma visão que rejeite tanto uma leitura única como uma narrativa linear convencional das obras que a compõem”, e convida ao “espectador a estabelecer (armar) seus próprios parâmetros e direções, seus enlaces e suas relações”, assim como é explicado nos textos de apresentação do evento.

A exposição, além da mostra propriamente dita, projeta-se como seis meses de trabalhos e reflexões, e inclui, entre outros, projetos que vão desde Laboratorio 987 – reunião de cinco artistas que trabalharão ao redor dos Centenários de Independência – até Pulgar – espaço de encontro de revistas de crítica independentes do continente. Finalmente, a lista de artistas é forte e assistir aos encontros que gerará será uma oportunidade verdadeiramente única: ver Carlos Garaicoa (Cuba) discutir com Fernando Bryce (Peru), Gilda Mantilla (Estados Unidos) falar com Miguel Ángel Rojas (Colômbia) ou Rivane Neuenschwander (Brasil) topar com Damián Ortega (México), entre muitos outros contatos, não é uma coisa que possa ser feita todos os dias. As obras terão uma boa conversa e o visitante escolherá a quem pôr em contato, o que dará, sem a menor das dúvidas, resultados extraordinários.

No fim da conversa, frente à pergunta sobre se as obras ou os artistas convergiam em algum ponto, Octavio Zaya respondeu que bem podiam ter uma origem latino-americana, mas que esse não era o ponto, e propôs um exemplo concreto: ele mesmo morava em Nova Iorque fazia 20 anos, mas nem por isso perderia a sua procedência espanhola, de fato, afirmou, segue e seguirá mostrando e usando seu passaporte espanhol sem o menor dos receios. E foi aí que a pergunta passou a ser resolvida com uma clareza única: um passaporte espanhol significa trânsito livre, um passaporte peruano, colombiano, brasileiro, mexicano, cubano, nicaragüense significa fronteiras.

Em resumo, pode ser que os latino-americanos não coincidam no fato de serem latino-americanos, mas no fato de não serem latino-americanos. E esse é um problema de natureza política que pode ter sido discutido na arte das últimas duas décadas, mas que vem desde o nosso barroco, assim que o assunto está longe de ser resolvido. De qualquer jeito, o diálogo e as possibilidades de encontros e de choques entre obras contemporâneas que será aberto por Modelos para Armar: Pensar América Latina desde a coleção Musac, contribuirá de uma forma contundente para a discussão a esse respeito.