Você está aqui: Página Inicial / Eventos / Exposições / SP-ARTE/2011 / Relatos / O mercado de arte e as instituições: uma aliança possível?

O mercado de arte e as instituições: uma aliança possível?

relato por Ana Letícia Fialho

Mesa: Discursos sobre o mercado.

Participantes: 
Jones Bergamin [Bolsa de Arte], Olav Velthuis [Universidade de Amsterdã. Autor de Talking Prices] e Pedro Barbosa [Colecionador]. 

 

A primeira mesa do programa cultural da SP-Arte em 2011 propunha discutir o mercado de arte a partir de três lugares de fala: o do colecionador, o do marchand e o do pesquisador. 

Coube ao colecionador Pedro Barbosa a mediação da conversa e foi ele quem começou lançando algumas questões a partir das quais Jones Bergamin, marchand que atua no mercado secundário há mais de 30 anos, e Olav Velthuis, sociólogo da Universidade de Amsterdam e autor de Talking Prices[1], deveriam reagir.

Noções sobre valor intrínseco e valor de uso, relação entre mercado primário e secundário, determinantes da definição de preço e valor, critérios de escolha para aquisição de obras de arte, entre outras, foram elencadas por Barbosa.

A discussão nem sempre seguiu o curso sugerido pelo mediador,  mas, em um tom bastante informal, permitiu a abordagem de alguns aspectos do jogo do mercado que nem sempre são claros para aqueles que dele não participam diretamente.

A perspectiva da sociologia da arte, como a que privilegio em meus textos e neste relato, que também é utilizada por Olav Velthuis em suas pesquisas, permite uma análise do sistema das artes tendo em conta o contexto e as diversas determinantes e interesses que movem seus agentes, muitas vezes extrínsecos ao universo da arte[2]. Trata-se de um universo em que as interdependências e trocas têm uma dimensão simbólica importante e por isso não podem ser mesuradas objetivamente, pois ultrapassam a dimensão econômica de um mercado no sentido estrito. No sistema da arte contemporânea e, sobretudo, na instância específica do mercado, parte importante do negócio reside justamente em preservar e valorizar uma prática que requer, além do capital econômico, um capital cultural altamente codificado e de difícil acesso. Tal especificidade, que muito longe está do simples consumo, é o que garante a distinção social, o status, o prestígio a seus participantes.

 

Arte, preço e valor

Velthuis tem razão, portanto, em afirmar que o preço, tema reiteradamente discutido pela mesa, “não tem a ver com a economia, e sim com questões sociais, culturais, valores simbólicos.” A obra de arte não tem somente um valor estético ou econômico, mas também social: “o que eles (colecionadores) compram não é só uma obra, é algo social, um grupo de colecionadores funciona como um clube, você compra não só o status, e sim o direito de participar daquela conversa permanente sobre arte, com a galeria, com os artistas, com os outros colecionadores...”

Isso explica porque questões recorrentes nos debates da SP-Arte, como “quais os critérios objetivos de formação de preço” ou “como saber se estou fazendo uma boa compra?”, repetidas por Pedro Barbosa ao marchand e ao pesquisador, podem ter alguma pertinência para uma parte do público que a feira busca educar, para que se tornem investidores/colecionadores de arte, mas elas podem parecer ingênuas a quem já tem alguma experiência no mercado de artes. Naturalmente, não existe uma fórmula exata ou um manual frente a essas questões, de forma que tanto Bergamin quanto Velthuis acabaram recaindo em respostas um tanto obvias: a principal motivação para quem quer começar a colecionar deve ser a paixão e nunca a especulação, pois o mercado de artes é instável, e enquanto alguns artistas de fato têm um enorme potencial de valorização a médio prazo, a maioria tende a desaparecer de uma década para outra. Jones Bergamin apontou ainda outros fatores que motivam o colecionador: vaidade, status, prestígio.  

Talvez por ser o mercado frequentemente associado a tais motivações, que podem ser consideradas individualistas, elitistas, vãs, outras instâncias do sistema das artes, como a institucional e a crítica, reivindiquem certa autonomia em relação a ele. Mas tal autonomia é relativa, e a coexistência equilibrada e orgânica entre as diferentes instâncias do sistema das artes é necessária, mas no Brasil ainda está longe de ser alcançada.

Por isso, no debate, pareceu-me relevante a reflexão, apenas aventada, e que gostaria de ampliar aqui, a respeito da interdependência entre o mercado e o circuito institucional. Para se compreender o processo de formação e consolidação dos valores simbólicos e econômicos da arte contemporânea, deve-se levar em consideração que o mercado não existe de forma isolada. Em sistemas de arte consolidados, como os existentes em alguns países europeus e nos Estados Unidos, a esfera institucional e crítica são fundamentais no processo de validação e reconhecimento da produção que circula comercialmente, e o mercado, por sua vez, fomenta e fortalece o circuito institucional.

Olav Velthuis chamou a atenção, com bastante propriedade, para o estranhamento que causa a recusa das instituições e dos curadores em reconhecerem o impacto que têm sobre o mercado: “é fundamental que as instituições estejam envolvidas, não tem como sustentar o mercado sem as instituições, que organizam exposições e compram obras para suas coleções. É interessante que os curadores e as instituições não fiquem confortáveis com esse papel (...) eles não estão separadas do mercado, eles são fundamentais na manutenção do mercado, o artista não consegue atingir um preço mais alto, de forma consistente, sem que as instituições respaldem o seu reconhecimento, a sua reputação”.  A importância dessa validação institucional mostra também certa insegurança da parte dos colecionadores privados, que “têm uma certa incerteza do que comprar, as instituições dão o selo de garantia, de qualidade, de aprovação, sempre foi assim, os museus e as coleções institucionais são fundamentais para o estabelecimento de um mercado para a arte contemporânea.”

A interdependência entre o mercado e as instituições poderia suscitar muitos desdobramentos, mas gostaria aqui de abordar dois aspectos. O primeiro se refere aos limites de uma autonomia reivindicada pelas instituições quando exibem ou adquirem obras de artistas contemporâneos. O segundo diz respeito especificamente à fragilidade do circuito institucional brasileiro, incapaz de fomentar e colecionar a produção contemporânea, ao impacto que isso pode ter na sustentabilidade de valores e preços da arte contemporânea, e à produção e o mercado a médio/longo prazo.

 

A validação institucional e a formação de valor

A participação em uma exposição importante ou em uma bienal, a entrada em uma coleção de uma instituição importante podem afetar de forma substantiva o valor comercial de um determinado artista. É inadmissível que essa equação seja ignorada pelas instituições[3]. Isso não significa que as escolhas sejam ou devam ser pautadas por critérios econômicos ou devam servir aos interesses do mercado, mas elas podem ter, sim, um impacto econômico. E, mais do que isso, as instituições poderiam se beneficiar desse poder de legitimação que têm e, aliadas ao mercado (galerias e colecionadores), fortalecer suas coleções.

Instituições internacionais altamente consagradas, como o MoMA e a Tate, sempre estiveram próximas dos agentes do mercado e hoje, em consequência da crise econômica internacional, vêm se aproximando de colecionadores brasileiros que passaram a integrar (e financiar) seus conselhos de aquisição.  Iniciativas como essas estão apenas se delineando no Brasil[4].

As instituições e seus curadores deveriam saber que suas escolhas repercutem no mercado, e que as galerias que representam os artistas escolhidos, assim como os colecionadores desses artistas, têm interesse nessa valorização. Essa consciência é importante e poderia se transformar em um bom mecanismo de negociação para a melhoria das coleções institucionais, hoje totalmente defasadas em relação à produção contemporânea. Galeristas e colecionadores têm interesse em contribuir financeiramente (ou intermediar) a produção de obras que participam de determinada exposição e podem oferecer condições especiais[5] ou mesmo patrocinar aquisições institucionais. Com isso, sabem que estão ajudando a valorizar a reputação de determinado artista, o que, a médio prazo, pode ajudar na valorização de suas obras, alavancar carreiras e permitir que artistas vivam de seu trabalho.

No Brasil, infelizmente, o circuito institucional, que deveria ser um dos pilares do sistema da arte contemporânea e instância de fomento e visibilidade para a produção emergente, não dispõe de recursos financeiros e gerenciais para desempenhar esse papel, conforme apontou pesquisa que coordenei sobre o setor[6]. O colecionismo institucional é incipiente, carece de recursos e também de linhas curatoriais claras, coerentes, em sintonia com a vocação das instituições. Os recursos disponíveis para aquisição de acervo, quando existentes, são infinitamente inferiores aos investidos em exposições temporárias.

Isso explica, em parte, o fato de hoje a produção contemporânea brasileira estar muito mais presente em coleções institucionais no exterior do que no Brasil. Tal tendência precisa ser revertida urgentemente, pois sem o pilar institucional, o mercado e a produção, por mais profissionalizados e dinâmicos que estejam, não encontrarão respaldo para se sustentar a médio/longo prazo, tendo como alternativa, talvez, uma deslocalização, o que, em um contexto econômico internacional de crise sem perspectiva de rápida solução, não parece uma boa alternativa, além de significar uma perda patrimonial para o país.

O Brasil, por outro lado, passou ao largo da crise internacional e a economia continua a crescer. Uma pequena parcela da elite brasileira, que vem se beneficiando de tal desenvolvimento, é responsável pelo aumento do volume de negócios do mercado de arte no Brasil. Nos últimos dois anos, a maioria das galerias de arte contemporânea teve um aumento de seu volume de negócios em média de 44 %. A maioria das vendas são feitas para colecionadores privados brasileiros[7]. Isso sugere que os colecionadores não só estão investindo mais, mas se tornando mais numerosos. Cabe perguntar por que isso não reflete positivamente nas instituições?

O que se percebe é uma defasagem cada vez maior entre o circuito institucional, o polo de produção e o mercado de arte. Galerias comerciais e colecionadores particulares fomentam ativamente a produção e a circulação das obras, participam de sua validação, realizam sua catalogação, organizam debates e publicações sobre elas e capitaneiam sua inserção internacional, assumindo um papel estruturante no sistema brasileiro de arte contemporânea. Incorporam, portanto, algumas das funções que, tradicionalmente, estariam concentradas no circuito institucional.

O momento de expansão econômica, que impacta favoravelmente no mercado de artes, representa uma oportunidade para que se estabeleçam alianças entre instituições e agentes do mercado que venham a fortalecer as instituições e beneficiar o sistema das artes como um todo, muito além dos ganhos simbólicos e econômicos que possam ter os agentes envolvidos nesse processo. Para tanto, as instituições devem ser capazes de desenvolver programas de aquisição, de valorização de seus acervos e de estabelecer parcerias com o setor privado; ademais, políticas públicas são imprescindíveis para estimular tais práticas[8]. Só assim serão possíveis a consolidação, a expansão e a internacionalização sustentável de um sistema da arte contemporânea no Brasil.

 


[1]VELTHUIS Olav. Talking Prices: Symbolic Meanings of Prices on the Market for Contemporary Art. Princeton University Press, 2005.

[2] Nesse sentido, foi interessante observar de que forma os diferentes agentes ali presentes, não só na mesa quanto na plateia (entre os quais artistas, colecionadores, galeristas, curadores e dirigentes de instituição), se posicionam quando se discute o processo de construção de valores, simbólicos e econômicos, do mercado da arte contemporânea. Velthuis, por exemplo, coordena na Universidade de Amsterdã um projeto sobre o mercado de arte em países emergentes do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). O projeto é financiado pela Fundação Holandesa de Ciência e abrange as áreas de sociologia, sociologia da arte, sociologia cultural e sociologia do consumo.

[3] No debate, um representante da Pinacoteca do Estado de São Paulo afirmou:  “o museu não está preocupado com o mercado de arte , e sim em mostrar e ensinar a arte através do tempo. A Pinacoteca tem uma coleção do século XIX, mas tem muito interesse na arte contemporânea e está colecionando sistematicamente, criando uma coleção de arte contemporânea brasileira,  não internacional.” Tal posição, compreensível do ponto de vista da curadoria, não converge totalmente com as estratégias de gestão do museu que tem, com o apoio da iniciativa privada, logrado implementar um programa de aquisições.

[4]  A primeira instituição a implementar um programa específico nesse sentido foi a Pinacoteca do Estado de São Paulo, com o apoio da Associação Brasileira de Galerias de Arte Contemporânea (ABACT) e um pool de colecionadores. Não por acaso, trata-se da instituição do mais alto grau de profissionalização dentro do cenário brasileiro.

[5] Os preços praticados numa venda para uma instituição são, via de regra, menores do que os praticados quando se trata de um colecionador privado, pois se entende que entrar para uma coleção pública de prestígio é importante para a carreira do artista.

[6] A pesquisa “Economia das exposições de arte contemporânea” foi realizada em 2010, no âmbito de um convênio entre o Ministério da Cultura, a Fundação Iberê Camargo e o Fórum Permanente. Algumas informações estão disponíveis em: http://www.forumpermanente.org/.rede/ee/instituicoes-responsaveis-pelo-projeto. Infelizmente, em consequência da falta de continuidade de políticas públicas da parte do Ministério da Cultura, tal pesquisa, que consistia em um projeto piloto, não teve  desdobramentos e aprofundamento inicialmente previstos quando da mudança de gestão do Ministério em janeiro de 2011.

[7] Esses dados são fruto de pesquisa por mim coordenada e encomendada pela Associação Brasileira de Galerias de Arte Contemporânea (ABACT) e pela Agência Brasileira de Promoção Comercial e Exportação (APEX-Brasil). Os primeiros resultados consolidados deverão ser divulgados no primeiro semestre de 2012.

[8] Políticas que favoreçam o investimento privado especificamente no que se refere a doações e aquisições institucionais, sobretudo do ponto de vista tributário, são fundamentais, sem prejuízo de investimentos públicos diretos. Iniciativas como a da SP-Arte em parceria com o Iguatemi e o Banco Espírito Santo, que estimula doações corporativas a instituições públicas, ou o recente prêmio do IBRAM na ArtRio, que premiou duas obras a serem incorporadas em coleções públicas, são positivas, mas devem ser ampliadas para que seus resultados tenham de fato um impacto positivo no desenvolvimento e na atualização das coleções instituicionais.

 

Relato por Ana Letícia Fialho