Conferência 1: O sistema da arte/Relato do debate imersivo

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Comunicações
Considerações finais

Conferencistas: Susan May, Ousseynou WadePaulo HerkenhoffDebatedores: Michael Asbury, Patrícia Canetti, Raquel Garbelotti, Betty Leirner, Fábio Magalhães, Angélica de Moraes, Suely Rolnik, Regina Silveira; Moderadora: Daniela Bousso. Auditório 1.
Relatores: Fernanda Albuquerque (resumo), Juliana Monachesi (relato), Priscila Arantes (coordenação de relatos)

 


Relato do debate imersivo

(por Juliana Monachesi/ coord. Priscila Arantes)

Sobre o sistema da arte: entre as pressões do mercado e o esforço de produzir olhares locais sobre a produção artística.

- No Senegal não existe uma lei como a Rouanet e pouquíssimo recurso da iniciativa privada chega à cultura. Nós não temos sequer um museu de arte contemporânea no país.

- Estamos preocupados no momento no Reino Unido com a chegada das Olimpíadas, porque a verba da cultura vai ser destinada para a construção de estádios.

- É uma indignidade para a cultura brasileira que uma instituição que abriga uma coleção extraordinária de 17 mil obras tenha de alugar seu prédio para poder comprar papel para a máquina de xerox.


Ousseynou Wade, Paulo Herkenhoff, Daniela Bousso e Susan May.

Estas falas, respectivamente do curador da Bienal de Dacar, Ousseynou Wade, da curadora da Hayward Gallery, Susan May, e do curador do Museu Nacional de Belas Artes, Paulo Herkenhoff, foram provocadas por uma pergunta de Patrícia Canetti, artista e idealizadora do Canal Contemporâneo, a respeito da Lei Rouanet, do financiamento dos museus nos países dos palestrantes e da idéia de auto-sustentabilidade. A Lei Rouanet já havia sido objeto do ataque de Herkenhoff ao longo de sua fala tanto na conferência de abertura do simpósio quanto no primeiro debate imersivo, realizado no final da tarde de domingo. “Uma das barbáries que a Lei Rouanet está produzindo é retirar o caráter de instituição dos museus, que deveriam desenvolver pesquisas mais próximas ao trabalho intelectual que se faz na academia”, afirmou o curador do museu carioca, referindo-se a exposições que chegam prontas, financiadas com recursos de renúncia fiscal, e sem maior aprofundamento conceitual. Herkenhoff defendeu que se lute para que as retrospectivas de artistas brasileiros façam justiça à produção nacional.

O único assunto tão comentado no âmbito das discussões sobre “o sistema da arte”, tema da conferência e do debate de domingo, quanto o sucateamento das instituições culturais foi a validação internacional. O assunto irrompeu com força e insistência na fala de Ousseynou Wade durante a conferência, no início da tarde. O curador da Bienal de Dacar defendeu a importância de se afirmar a africanidade e de se estabelecer uma relação com a diáspora, mas sempre a partir da África. A vocação da Bienal que ocorre na capital senegalesa desde 1992 seria “romper com a tendência de a produção africana ser avalizada por críticos e intelectuais ocidentais e propor uma validação crítica e intelectual feita por africanos”. Sensibilizado com esta defesa, Paulo Herkenhoff abriu o primeiro debate imersivo do simpósio internacional Padrões aos Pedaços questionando a participação brasileira na Bienal de Dacar, que denotaria um “embranquiçamento da produção intelectual”. “Precisamos dar um basta à exclusão social. Será possível que a pintura de Almeida Jr., produzida para a aristocracia agrária, não tenha negros representados, e isto em meio a uma sociedade com escravos? Temos coragem de olhar o pé de barro sujo de nossos compatriotas? Estas são contradições que existem. Caso se queira falar em conexões éticas entre diásporas, teríamos de evocar o judeu Lasar Segall, este sim que efetivou uma representação da sociedade brasileira agrária na década de 20: a natureza brasileira, em suas pinturas, é produzida pelo trabalho do negro no cafezal, no bananal”, afirmou.

A construção de um discurso sobre a presença do negro é de uma “afasia impressionante”, segundo Herkenhoff, e isto estaria refletido no programa da Bienal de Dacar. “Me parece que a bienal está disposta a operar no âmbito da dialética do amo e do escravo. A pergunta básica que a Bienal quer fazer é próxima a de Cornel West: emancipar a emancipação de seu grupo é a tarefa principal para o filósofo africano. Frantz Fanon também apontava a questão da emancipação dos povos da África, frisando que eles deveriam estabelecer sua auto-imagem retirando a máscara branca dos rostos negros.” Wade respondeu que, ao falar em negritude, não se pode deixar de pensar em filósofos africanos e estrangeiros, na defesa que fazem da valorização do mundo negro. Mas o combate por esta valorização não pode se dar sem interesse sobre a diáspora. Wade deu um exemplo disto contando sobre um artista que foi procurá-lo para dizer que era reconhecido fora na África, mas que não estava satisfeito com isso, já que considerava mais importante obter reconhecimento ali. Wade defendeu ainda um contato maior entre os eventos do hemisfério sul, como bienais e simpósios, de forma a garantir reconhecimento à produção dos países destas regiões.

Herkenhoff disse considerar importante frisar a diferença entre os processo de defesa da africanidade e da defesa da negritude: são processos que devem ser mantidos em sua especificidade. Neste sentido, evocou a figura de Pierre Verger: “Não há no mundo quem tenha dado visibilidade à diáspora como o fez Verger; não há quem tenha produzido uma cartografia tão ampla como ele.” “Na ação cultural, iniciativas de validação podem ser forçadas por sentimentos não produtivos, como a vitimização”, alertou o curador brasileiro. Há na África pessoas capazes de fazê-lo sem depender de validação do mundo ocidental, e artistas que têm curso semelhante ao vivido no Brasil na década de 1960, comparou: “Sabíamos da jóia lapidada que ali estava e não havia fora do Brasil olhares capazes de avaliar a preciosidade da produção brasileira daquele momento. Daí haver tamanha justeza das relações entre conceito e produção nos testos de um Gullar sobre o neoconcretismo, por exemplo. A fenomenologia de Merleau-Ponty foi apropriada aqui melhor do que na França e antes que nos Estados Unidos. A arte brasileira desta época teve o grande trunfo de não buscar validar-se na crítica internacional e, portanto, não teve sua capacidade integrada ao poder de exclusão deste sistema de validação”.

Wade chamou atenção para uma iniciativa no Senegal para dar voz à crítica africana: “Começa neste mês a publicação de uma revista trimestral de análise e crítica sobre a arte africana, que era, antes do surgimento desta revista, pouco audível. Trata-se de uma iniciativa para termos outra presença, além da dos artistas”. Aberta a discussão para os debatedores e o público, a artista Raquel Garbelotti indagou a respeito dos dispositivos que poderiam ser utilizados para dar visibilidade aos olhares da diáspora. O curador senegalês respondeu que a Bienal de Dacar não tem condições de dar conta deste hiato sozinha, entretanto, pode criar aproximação de espaços de reflexão para reforçar relações entre a África e os artistas da diáspora, como, por exemplo, comissionando em outros países projetos para trazer para a Bienal artistas que estão vivendo fora.

O artista espanhol Alberto Caballero elogiou o esforço que se fez no debate para discutir a economia da arte e perguntou se, na opinião dos conferencistas, haveria artista de galeria, artista de museu e artista de bienal. “Temos aí uma cadeia que funciona de maneira particular, mas que não prevê tal diferença. William Kentridge é um exemplo de artista que circula por todas as instâncias que você mencionou”, afirmou Wade. Susan May evocou um debate que ocorreu recentemente sobre o mercado de arte no Reino Unido em que se discutiu até que ponto um museu, fazendo uma retrospectiva de um determinado artista, influencia o mercado deste artista. “É uma questão delicada, mas o fato é que não há como o curador de um museu controlar a apropriação, pelo mercado, de sua programação”, afirmou. Herkenhoff destacou as questões éticas e políticas envolvidas na pergunta: “Eu tenho como regra não escrever textos para galeria quando estou ocupando um cargo institucional. O estatuto da curadoria é intelectual: é uma forma de produção de sentidos e significados; é preciso haver um olhar para a presença da obra no mundo; quando Mário Pedrosa diz que é preciso estar do lado do artista, é isto mesmo. Mas é preciso também saber se livrar do artista quando este quer ‘curar’ o olhar do curador. O fato é que, independente deste processo, tudo acaba indo para o mercado, não se pode ser ingênuo quanto a isso. Acredito que quanto maior o esforço de inscrever artistas brasileiros na história da arte, mais distantes de nós eles estarão, no circuito. Esta é uma angústia que eu tenho e para a qual não tenho resposta”.

A artista Regina Silveira questionou da curadora inglesa: “Você nos mostrou obras de artistas imigrantes, mas eu me pergunto quanto esta inclusão da alteridade se dá de fato: como pode haver esta permeabilidade nos circuitos ingleses a obras que revitalizam produção local ao mesmo tempo em que há o recrudecimento na Europa em relação às comunidades de imigrantes?”. Susan May afirmou que os artistas apresentados em sua fala na conferência são de fato parte do circuito de arte: sua inclusão acontece tanto em exposições em museus como em coleções particulares no Reino Unido.