Conferência 2: A relação entre produção artística e reflexão teórica/Íntegra

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Comunicações
Considerações finais

Conferencistas: Suzanne LafontJosé Teixeira Coelho Moderador: Martin Grossmann. Auditório 1.
Relatores: Paula Alzugaray (resumo), Cauê Alves (relato), Paula Braga (coordenação de relatos)


 

Textos na íntegra:

Teixeira Coelho
Suzanne Lafont


(Veja como foi o bate-papo com Teixeira Coelho no UOL,
por ocasião do simpósio
)

A angústia da pergunta


ARTE E CULTURA DA ARTE

Teixeira Coelho

 

Toda profissão ou, como talvez crítico de arte não seja profissão,  toda atividade humana tem seu momento de angústia do goleiro na hora do pênalti. É verdade que, a rigor, só quem nunca jogou futebol pode imaginar que a angústia na hora do pênalti seja do goleiro. Na hora do pênalti o goleiro está no auge da excitação, o contrário da angústia: está literalmente a um passo da glória e ansioso por vê-la chegar. Quem fica com a angústia é o batedor, que gostaria que aquele momento fosse adiado para toda a eternidade. Minha angústia é a do batedor de pênalti e ela se traduz na angústia diante da possibilidade de que me cobrem meus critérios no instante de fazer aquilo que se chama a crítica de arte. Minha angústia é que me perguntem “Mas, qual, afinal seus critérios para dizer o que diz?” e eu não saiba responder. Minha sorte e a sorte deste tipo de batedores de pênalti é que essas perguntas hoje se fazem cada vez menos...  A ausência dessa prática deveria fazer pensar.  Se não se pensa o suficiente sobre isso é porque o recalque praticado contra essas perguntas -- que no fundo, abaixo da superfície,  continuam a existir-- faz parte do atual sistema da arte. Por  que hoje, e em linhas gerais desde os anos 70, não é mais o caso de se fazer essas perguntas, nem ao crítico, nem ao artista? Alguns artistas, é verdade, esperam que os críticos respondam por eles às eventuais perguntas que lhes possam ser feitas. Mas, como digo,  dificilmente se pergunta ao crítico por quê e em nome do quê ele diz o que diz. Mesmo assim, com freqüência minha angústia aflora: e se me perguntarem por meus critérios? Mesmo quando ninguém me faz essas perguntas, mesmo quando é apenas a obra de arte que, no silêncio total de uma relação direta entre mim e ela embora no meio de uma multidão de pessoas excitadas nas salas de uma bienal, me faz essas perguntas, que direi eu a essa obra e a mim mesmo? Uma velha angústia que continuamente retorna e para a  qual periodicamente devo encontrar respostas. Novas respostas.

Primeiro: o método

Essa questão voltou recentemente à tona para mim, sob um ponto de vista metodológico, ao ler uma entrevista, não de um artista ou de um crítico de arte ou teórico da arte, mas de um escritor, Salman Rushdie [1], esse cujo drama as nações ditas ocidentais e iluministas, que tanto falam em nome da liberdade, durante anos e anos assistiram indiferentes, numa das maiores demonstrações de pusilanimidade diante da opressão e da ignorância de que se tem notícia [2]. Na entrevista a que me refiro, dada ao jornal Le Monde, Salman Rushdie fez observações sobre as relações entre literatura, realidade e surrealidade que poderiam ser proveitosas no campo da discussão sobre a arte, para mim que continuo a ver na comparação entre as artes um método heurístico privilegiado, embora contestado. Falando do trabalho de colegas escritores e de suas próprias escolhas literárias, Rushdie observa, a certa altura, que o bom surrealismo, por dizê-lo assim, é aquele que empresta seu corpo à realidade, prolongando-a e tornando-se sua metáfora pertinente e convincente. Se não for assim, como diz Rushdie, se não forem enunciados de algum modo esses elos entre uma coisa e outra, e se não forem a seguir de algum modo justificados, se essa composição se fizer inteiramente ao acaso, as coisas ficam fáceis demais, ele diz. Tem razão: ficam fáceis demais e não significam muito. E para explicar o modo pelo qual esse processo pode ocorrer satisfatoriamente, destaca o escritor que certos motivos que dão corpo à obra precisam ficar claros. Se numa narrativa um tapete voa, diz Rushie, é preciso que haja boas razões para que o faça. É preciso que o leitor, e antes dele o narrador, e antes dele o autor da história, possam responder a algumas perguntas simples e ao mesmo bastante sutis: que tipo de tapete é esse, quem está sentado nesse tapete, para onde está voando afinal? Se o escritor quiser que esse tapete decole mesmo, continua Rushdie, é imperativo que ele decole a partir de uma seqüência de fatos reais produzida e descrita como tal ou como se tal fora – apesar de ser uma historia sobre um tapete voador. Nisso reside o X da questão. A literatura, para ele, é essa articulação íntima e necessária entre verdade e fantasia, nisso para ele reside a quintessência do jogo literário. A suspensão da descrença, a essencial suspension of disbelief sempre mencionada em relação ao cinema mas que é pertinente, acaso, a alguns outros territórios da arte, é um requerimento preliminar que se faz ao leitor. A diferença entre o que acontece num território e outro é que neste, talvez mais do que naquele outro, não se pode pedir que essa suspensão se dê em nome de qualquer coisa ou de uma coisa qualquer. Seria possível argumentar que esse tipo de narrativa é aquele privilegiado por Rushdie, individualmente, e que há, em literatura, outras narrativas que não fazem do jogo entre verdade e fantasia a essência de seu ser, eliminando assim a necessidade daquelas perguntas, de modo específico. Digamos também que na arte, ou nas artes visuais, não é pertinente a questão do jogo entre verdade e fantasia uma vez que as artes deixaram muito para trás, ou de lado, qualquer referência à verdade pelo menos tal como a literatura a compreende. – embora me pareça que também nas artes, de algum modo e em algumas delas, a compreensão plena do que ocorre no âmago do processo de criação depende de uma genealogia da articulação entre a verdade e a fantasia. Mesmo assim, ali onde a correspondência entre as artes, no caso a literatura e as artes visuais, continua a demonstrar-se estimulante como método de reflexão é exatamente nessa idéia de que há algumas perguntas que devem ser respondidas pelo observador (ou que o observador deve estar em condições de pelo menos reconhecer) e que, antes dele, devem ser respondidas pela obra em si e que, antes de serem respondidas pela obra, precisam ser respondidas (ou pelo menos reconhecidas) pelo próprio artista -- perguntas que por várias razões não se fazem ou não se fazem mais, nem se reconhecem. O que ou quem está sentado no tapete voador que é esta obra à minhafrente?

Talvez a melhor expressão aqui fosse disco voador, não só para dar ao texto o adequado tom de cutting edge, próprio dos dias de hoje, como porque a arte contemporânea está de fato cheia de discos voadores voando por aí [3]. Mas, fiquemos com Rushdie e sua terminologia arcaica.

Ainda se
fazem as perguntas?

Que tipo de tapete voador é esse, quer dizer, que tipo de obra é essa? De onde vem, para onde vai? Como disse, pelo menos desde os anos 70 há quase um consenso de que essas perguntas não cabem mais, o consenso de que a arte teria “superado” a fase representada por essas perguntas, o consenso de que fazê-las seria demonstração de impertinência e primarismo intelectual, um consenso do qual participam todos, inclusive o próprio público em geral, que não se pergunta mais nada quando vai a uma bienal ou outro grande show da arte. No entanto, são perguntas que, por ver uma exposição aqui, uma Bienal de Veneza ali, me venho repropondo cada vez mais insistentemente. Com angústia às vezes, como disse. Minha insistência com essas perguntas poderia ser indício de que eu talvez devesse parar de escrever sobre arte, se não de ver arte, por ter-me colocado totalmente fora do jogo, fora de jogo, em clara posição de impedimento, numa “banheira” enorme, como se diz. Quer dizer: eu estaria impedido de continuar a escrever sobre arte. Mas, sei que, se as perguntas são velhas, as respostas que eu encontraria agora seriam com sorte outras, se não novas, e compatíveis com o espírito deste tempo, agora. Claro que eu poderia apoiar-me na voz poderosa de Clement Greenberg e dizer, como certa vez ele disse [4], ao ser perguntado sobre os critérios para distinguir entre uma arte maior e outra menor (o equivalente a perguntar pelos critérios de toda crítica de arte), que esses critérios existiam, sim, mas não podiam ser colocados em palavras, e que o que ocorre é que algumas obras tocam você mais e outras, menos, sendo que tudo que o crítico pode fazer é falar dessa experiência quando elas se dão, nada mais. Essa resposta, sob certo aspecto correta e acima de tudo bem contemporânea, me parece porém fácil demais. Sob uma luz positiva, essa é uma resposta que implicitamente faz equivaler a peça crítica a uma obra de arte: o artista não tem de traduzir em miúdos as razões de sua obra e o crítico não tem de traduzir em miúdos os princípios de sua escolha: ele apenas escolhe, assim como o artista apenas produz sua obra. O crítico, como o artista, não teria de dizer de onde fala; apenas fala o que fala. O lado negativo da resposta de Greenberg me parece entretanto exceder o que pode ter de positivo – pelo menos no caso do crítico. Preciso ser capaz de colocar em palavras pelo menos alguns dos critérios ou princípios gerais que me movem. Não só por respeito ao outro, aquele que eventualmente me lê, como por respeito a mim mesmo, pensando em mim mesmo. Desde onde enxergo uma obra de arte? Desde onde penso o que penso e sinto o que sinto, mesmo que não o expresse publicamente?

Na origem, tudo vale

Creio que em larga medida as razões pelas quais não mais se fazem essas perguntas aos artistas e aos críticos e que levam hoje vários críticos a dizer que seus critérios não podem ser colocados em palavras, embora por motivos diferentes daqueles assumidos por Greeenberg, podem ser encontradas nas proposições e atitudes de artistas como Warhol e Beuys segundo as quais qualquer coisa agora pode ser arte e qualquer um hoje pode ser artista, não existindo mais um jeito especial pelo qual algo se pareça com arte, nem uma ação especial que marque alguém como um artista. Tudo vale.

A aposta pessoal, a aposta transsubjetiva 

Se tudo vale ou, para apresentar a questão com um pouco mais de estilo contemporâneo: se o pluralismo é a tônica atual das artes visuais, a única coisa que a crítica parece poder fazer é apreciar cada obra em si mesmo e por si mesmo, nos termos de suas premissas e referências e segundo suas proposições – de tal forma que de fato nada haveria a ser dito preliminarmente sobre os critérios da crítica. É a atitude que Arthur Danto defende, por exemplo [5]. Quando não há mais narrativas prévias que previamente justifiquem a obra de arte –a narrativa do realismo socialista ou da inclusão social ou dos princípios básicos da ótica como vetor da pintura ou a narrativa da ascendência do subconsciente sobre a criação artística ou a do privilégio da forma geométrica sobre qualquer outra--, e realmente não as há mais, e felizmente não as há mais, a saída seria enfrentar cada obra de peito aberto e, portanto, nunca explicitar de antemão, nem mesmo a posteriori, os princípios que orientariam e orientaram a crítica. Se tudo vale para o artista, tudo vale para o crítico. E para o curador. Nesse sentido, como observa outro escritor, Milan Kundera [6], nisso resumindo uma posição que tem sido a de tantos críticos ao longo da modernidade, todo juízo estético tende a apresentar-se como uma aposta pessoal – do artista, do escritor e do crítico. O problema é que essa aposta não se esgota numa pura subjetividade: ela enfrenta outros juízos, quer ser reconhecida de fora, aspira a alguma objetividade ou, aqui corrigindo Kundera, aspira em todo caso a uma inter ou transsubjetividade, não se contenta com manter apenas uma validade interna, restrita ao âmbito de quem a formula, do interesse apenas de seu formulador. Onde buscar a condição para alcançar essa ampliação do gosto subjetivo?

O valor na história

A primeira resposta cabível é que essa transsubjetividade se procura e se encontra na história. Dito de outro modo, os valores que posso adotar como guias de minhas preferências, de meu gosto, e que portanto não é mais apenas meu gosto mas um gosto que aspira a alguma comunidade, situam-se na história da arte sob estudo. Os valores estéticos só se percebem, em princípio, no contexto da evolução histórica de uma arte – e devo dizer que falo em evolução histórica de uma arte no sentido carnavalesco do termo, usado para descrever a passagem de uma escola de samba pela avenida (ainda que se trate da avenida artificial criada por Niemeyer): a escola de samba evoluciona pela avenida, quer dizer, vai daqui para lá e de lá para cá, dá um passo para o lado e depois um passo para o outro lado e para frente e para trás, num movimento de complexa figuração do qual são exemplos máximos a porta-bandeira e o mestre-escola. A escola de samba faz suas evoluções pela avenida mas de modo algum ela busca a cada metro de avenida ser melhor do que era um metro atrás ou diferente do que era há um metro atrás (a escola de samba deve mesmo ficar sempre igual a si mesma, mas essa é outra história). Só nesse sentido e apenas nesse sentido uso a palavra evolução quando me refiro à arte.

No passado,
o sentido da posteridade

Então, os valores estéticos só sao possíveis em princípio no contexto da história dessa arte. T.S.Eliot, cujas posições no passado ditas conservadoras sobre a cultura hoje servem para revigorar em mais de um aspecto o pensamento fossilizado sobre arte e cultura, diz aproximadamente a mesma coisa em outras palavras: nenhuma obra de nenhum artista ou poeta tem sentido em si mesma, o que significa dizer que nenhum poeta ou artista tem sentido em si mesmo. O valor de uma obra somente surge quando ela é comparada a obras de outros artistas ou poetas, e em particular, a obras de artistas e poetas mortos [7]. Dizendo isso, TS Eliot dava forma a uma percepção que imemorialmente se revela aos que se comprometem com mais empenho nesse processo, como pede Muntadas [8], e se recusam a seguir por trilhas comuns: a percepção de que o primeiro público de um grande artista é aquele que já morreu, a percepção de que a grande frustração de todo grande artista do século 20 é que os artistas dos séculos anteriores que ele admira nunca poderão ver sua obra e sobre ela dizer alguma coisa. Essa a grande solidão do artista e do poeta. Solidão final e irreversível: ele sabe o que aconteceu antes dele ao passo que aquilo que aconteceu antes dele o ignorará para sempre. Isso significa, ainda, que o artista e o poeta falam para o presente e para a posteridade na medida, e apenas na medida, em que buscam um lugar na série passada que se prolonga: esse é o único sentido da posteridade.

O valor fora
da história

A história fornece portanto um valor de saída, o que significa que na verdade não estou enfrentando e nunca enfrento de peito aberto a obra de arte, assim como nenhum artista enfrenta de peito aberto a obra a realizar. Mas, questão previsível e inevitável, é a história que define os valores ou são os valores que definem a história? Jan Mukarovsky, fundador da estética estruturalista que hoje não se lê mais, escreveu que “apenas supondo-se um valor estético objetivo a evolução da história da arte adquire sentido”. Dito de outro modo, como faz Milan Kundera, se o valor estético não existisse, a história da arte seria um imenso depósito de obras sem sentido. Se não houvesse valor estético, a cronologia da história da arte não teria pé nem cabeça e a própria idéia de História, como a conhecemos, seria impossível ou vazia. Poderíamos ter crônicas da arte -- talvez aquilo que num certo sentido temos agora-- mas não uma História da Arte como a entendemos ou como se entendeu essa História até meados do século passado. Talvez, nesse caso, não houvesse espaço nem mesmo para as crônicas. Quando penso nesse tema me vem à memória uma imagem recorrente, obsessiva: a seqüência final do filme Caçadores da arca perdida, quando a arca-tema é vista sendo levada num carrinho de mão empurrado compassadamente por um homem. No início da seqüência, a câmera está em close sobre a arca e aos poucos abre um zoom que aos poucos amplia o campo de visão, deixando o espectador perceber que a arca está sendo introduzida num enorme galpão, um infinito galpão lotado, a perder de vista, de caixas análogas que se amontoam sem critério aparente, todas iguais, sem nada que, de fora, diferencie umas das outras. Sem identidade, como se diz. Um amontoado de caixas anônimas. Georg Simmel [9], de cuja obra estimulante ainda não se extraíram todas as conseqüências possíveis para o estudo da arte e da cultura, diz praticamente o mesmo em palavras próprias: não há valor cultural que seja apenas valor cultural, quer dizer, que se defina a partir de suas coordenadas internas: para que exista , essa significação precisa ter também um valor numa série objetiva – e a série objetiva que temos à mão é a da história da arte.

O valor
e o ser

Mas, outra vez a questão espinhosa: é o valor estético que dá sentido à série ou é a série que determina o valor estético? T.S. Eliot dizia que sua observação consubstanciava um princípio de estética, não de história da arte, significando que a relação por ele descrita entre os mortos e os vivos, bem como o valor de uns e outros, situa-se fora da história e antes dela: está na arte em si. Algo semelhante propunha Mukarovsky ao apontar para a precedência do valor sobre a história, ao passo que Simmel arma uma equação inversa. Embutido aqui está um tópico ainda mais agudo e do qual é inútil tentar escapar: aquele que diz respeito ao ser da arte ou à ontologia da obra de arte e que consiste em saber se há, para que algo se defina como obra de arte, traços próprios que independem de um tempo e um lugar. Em outras palavras, há uma essência da arte ou é a arte algo que se define apenas por uma situação? Compartilho, em princípio, a tese do essencialismo, do que dei demonstrações ao elaborar um quadro conceitual que, em “A cultura é a regra; a arte, a exceção” [10], enumerava uma série de indicadores do que pode ser considerado cultura e do que pode ser entendido como arte, de modo relativamente independente do tempo e do lugar. Digo relativamente independente porque esse quadro é, ele mesmo, cultural, portanto de algum modo determinado por um ou vários tempos e lugares. É no entanto um quadro suficientemente amplo para abranger tanto a arte contemporânea quanto a arte à época de Monet ou Michelangelo, se não outra. Essa trans-historicidade, que terá seus limites, já me é suficiente para caracterizar um essencialismo, o essencialismo contemporâneo digamos assim. Um essencialismo cultural, se a fórmula for admissível.

Um essencialismo reflexivo.

Está claro, porém, que esse critério não se pode mais entender como vigorando de modo exclusivo, num jogo em que se oporia frontalmente a algum outro que o negasse e que fosse por ele negado e excluído. Também ele deve ser visto sob uma ótica relativizante. A idéia de um universal irrestrito não mais tem como justificar-se. Correções nesse conceito são inevitáveis, e uma delas, a apontar para a viabilidade desse essencialismo cultural, pode ser fornecida pela operação da história reflexiva tal como proposta por Hegel [11], uma operação intelectual que tenta abarcar o passado como um todo, nele procurando o que é válido e presente agora assim como era no passado e o será sempre. Esse passado não remontará tanto atrás como alguma vez aconteceu e o “sempre” de Hegel terá de ser substituído pela noção de “um futuro previsível”, isto é, um futuro com duração ou validade indeterminada, e que pode portanto ser um futuro curto. Essa operação busca, assim, o que é válido e presente agora como o era num passado determinado e como o será num futuro relativamente imediato. Pode bastar para descrever o sentido de historicismo reflexivo lembrar que em Hegel ele se diferencia do historicismo original, aquele praticado por um sujeito imerso a tal ponto no espírito dos eventos por ele descritos que se torna incapaz de erguer-se acima deles para sobre eles refletir (um pouco como acontece hoje na arte e, em todo caso, na crítica de arte). O historicismo reflexivo me fornecerá, por exemplo, não tanto a idéia distanciada ou remota ou a-histórica de Belo ou de Sublime como fazendo parte da essência da arte mas a noção de desejo como vetor e matriz da arte. E me fornecerá ainda, por exemplo, a noção de jogo, como na proposição de Gadamer [12].

Jogo entendido aqui em oposição ao conceito de verdade, próprio da ciência e ao qual a arte teria renunciado a partir de determinado  momento; jogo que não é apenas o signo de alguma outra coisa fora de si mesmo, jogo que acrescenta algo ao mundo em vez de retirar algo do mundo, como faz a ciência e que é uma forma particularmente efetiva de auto-presentação, de apresentação e introdução de si mesmo no mundo, de estar aí, e nunca um modo de representação [13].

Essencialismo
cultural

 

Modo de
operação
do crítico.

 

Atemporal História: posição e oposição

  

 

História: posição e oposição

Esse historicismo reflexivo ou essencialismo cultural me dará ainda um outro componente da ontologia da arte na noção de que é arte aquilo que amplie a esfera de presença de meu ser, na formulação simples e eloqüente de Montesquieu [14]. O essencialismo combina-se, aqui, com um historicismo que reconhece que a obra de um tempo pode não ser uma obra para outro tempo; um historicismo que reconhece, portanto, que quando nos entregamos à contemplação de uma estátua grega temos de admitir a possibilidade de que esse tipo de percepção não fazia parte do quadro histórico de um observador na antiguidade grega. O essencialismo é o critério; não se trata porém de um essencialismo que vigora isolado e hegemônico mas de um essencialismo que se combina com uma perspectiva histórica específica. Isso significa, então, que ao deparar-se com uma obra de arte o crítico (pelo menos o crítico que tenho em mente) nem está de peito aberto, nem vai considerá-la nela mesma, como algo independente de toda série; vai , pelo contrário, abordá-la munido de um critério trans-histórico corrigido pelos valores que a série à qual pertence (à qual pertence a obra e à qual pertence ele mesmo, o crítico) lhe atribui forçosamente. Em outras palavras, a crítica não se faz nem unicamente a partir de um valor deslocalizado e atemporal, nem a partir dos dois vetores privilegiados fornecidos pela análise puramente historicista que, nisso, se confunde com a estruturalista: o posicional e o oposicional, isto é, aqueles vetores que permitem determinar o valor de uma obra conforme a posição que ela ocupa numa série e segundo as oposições que estabelece com outras obras da mesma série, análogas a ela ou dela distintas. Retomando Eliot, a obra é sempre comparada com a obra dos artistas e poetas mortos; seu valor final, contudo, não depende unicamente do contexto histórico uma vez que há a considerar, também, valores estéticos essenciais trans-históricos.

Essencialismo
cultural.

Ainda estamos, aqui, longe de esclarecer os critérios de uma crítica e traduzi-los em palavras. Não basta, por exemplo, dizer, conforme um entendimento essencialista da arte, que uma obra de arte se distingue de uma obra de cultura por ter como sujeito antes o eu que o nós, e por destinar-se antes ao indivíduo do que à comunidade, e por ter sua matriz no desejo e não na necessidade, e por ser transcendente e não utilitária, ou por qualquer outro dos demais indicadores restantes que apontei em meu mencionado quadro sobre a cultura e a arte. Uma obra pode apresentar todos esses indicadores e mesmo assim não ser satisfatória como obra de arte, ou ser menos satisfatória do que outra (voltamos aqui ao caso da distinção entre obra maior e obra menor, apresentado a Greenberg), por não apresentar como valor determinante aquilo de indefinível ou de previamente indefinivel que de algum modo eleva meu eu singular ou meu eu global [15] a um ponto mais próximo de sua unidade de perfeição, como propõe Simmel, ou, já que essa fórmula pode soar arcaica e impertinente, por não ampliar a esfera de presença de meu ser, como escreveu Montesquieu com mais clareza e propriedade. Mesmo esta fórmula pode ser matéria de divergência, por certo: o que amplia a esfera de presença de meu ser pode não ampliar a de um outro, embora seja admissível supor situações marcadas por uma certa transsubjetividade na avaliação. Esse valor icônico, nas palavras de Greenberg, não tem de fato como ser traduzido em palavras –pelo menos, não preliminarmente. Não sei o quê especificamente procuro numa obra de arte, portanto não sei o que vou achar, embora saiba que o que procuro numa obra de arte seja algo que amplie a esfera de presença de meu ser e embora saiba reconhecê-lo quando o encontro. Os critérios que posso ter já estabelecidos de antemão, antes de ver a obra, são aqueles relativos à existência da série, definidos pelo princípio da posição e da oposição. Se vou assistir hoje a um concerto de música contemporânea do qual é protagonista um musicista que é ao mesmo tempo um compositor vivo, um compositor contemporâneo, e se esse musicista apresentar uma composição sua recente que seja em tudo análoga a uma peça de Beethoven, mesmo não sendo plágio de nenhuma peça de Beethoven, direi a mim mesmo que, em principio, isso é inadmissível como arte porque não é isso que se espera de uma peça musical conforme a série histórica em que ela se encaixa e considerando os valores em vigor nessa série, que são os valores de hoje. A menos, claro, que eu me remeta ao conto de Borges sobre um escritor contemporâneo que escreve hoje um livro Quixote em tudo absolutamente idêntico ao Quixote de Cervantes e que no entanto não é o Quixote de Cervantes e não significa a mesma coisa que o primeiro Quixote, embora as palavras sejam as mesmas nos dois livros e a ordem em que as palavras se apresentam nos dois livros sejam exatamente as mesmas – e a menos não só que eu me remeta a esse conto como, ainda, saiba interpretar com precisão e fineza aquilo que Borges quis dizer com sua estória. Essa situação mantém certa similitude com o caso das duas caixas Brillo analisadas obsessivamente por Arthur Danto ao longo de toda sua obra, uma das quais é a caixa Brillo real e a outra, a caixa Brillo de Warhol, sendo que uma é obra de arte e a outra não, embora ambas sejam aparentemente em tudo iguais e eu não possa distinguir uma da outra, pelo menos à distância (e quase tudo na arte se passa à distância). Mas, esses são dois casos excepcionais, embora emblemáticos da arte contemporânea e da História da Arte. Retornando ao exemplo da música, por que aquela peça de música contemporânea que, mesmo não sendo um plágio de Beethoven, poderia ter sido por ele escrita, não me satisfaz esteticamente embora uma peça de Beethoven me satisfaça por completo e continue a me satisfazer por completo? Essa percepção e esse juízo, que poderiam de início ser descritos como indícios de um tolo filistinismo, são na verdade indicadores de como o valor estético deriva, em larga medida, da série histórica: essa peça não está na posição-tempo que deveria ocupar, portanto se desqualifica como uma peça da série. Pode vir a ser situada fora da série, pode ser um fuori serie -- mas apenas no sentido negativo: o de uma sub-arte, assim como se diz que as paisagens medianamente impressionistas que se pintam hoje são arte da Praça da República e não Arte [16]. E se assim é, essa peça não me faz avançar na direção, não tanto de minha perfeição, mas em todo caso da ampliação da esfera de presença de meu ser. Deixo de lado aqui as considerações sobre os prazeres da repetição: posso voltar a ouvir uma peça de Beethoven com mesmo ou maior prazer que o experimentado de início, assim como posso voltar a ver uma tela de Tintoretto ou de Turner e dela continuar extraindo algo que me confirme na ampliação da esfera de presença de meu ser experimentada na primeira vez. Mas, primeiro, essa é uma outra situação, bem distinta daquela de um compositor contemporâneo que produz agora uma peça alla Beethoven sem nenhuma intenção paródica (a única possibilidade atual, parece, de aceitá-la como autêntica obra de arte). Segundo, os desdobramentos de uma experiência anterior não podem nunca ser equiparados a novos desdobramentos que a exposição do observador a uma nova e inesperada peça possa suscitar.

O tudo-vale
não basta

A série é vital na formação do juízo crítico. Não o é, no entanto, em termos absolutos: se certa obra estiver adequadamente situada numa série (uma peça de música contemporânea que em nada se assemelha a peças anteriores e que, inversamente, apresente os mesmos traços gerais de outras peças que ocupam análoga posição contemporânea) mas não for aprovada no exame essencialista, ela estará do mesmo modo excluída da série. Portanto, para o essencialista o “tudo vale”, que é perfeitamente histórico, não vale. Meus critérios são assim, em alguma medida, essencialistas. Não posso de fato traduzir em palavras tudo aquilo que isso significa mas posso traduzir em algumas palavras --estas, exatamente-- parte do que isso significa.


Sobre
o objeto
da discussão

 

 

Um caso
da História
como Arte

 

A maquete
da arte
como arte

 

Ser intempestivo

Esse historicismo reflexivo me ajuda a enfrentar certas situações e a me dar certas respostas. Ele me permite rejeitar, por exemplo, aquilo que me parece ser, hoje, uma ascendência excessiva do historicismo tout court na produção, apresentação e apreciação da obra de arte. Penso, por exemplo, na sala montada por Thomas Schütte no Pavilhão da Itália nesta Bienal de Veneza, com curadoria de Maria del Corral [17]-- e esse foi meu segundo ponto ou pretexto para estas reflexões, um ponto relativo ao objeto da discussão em contraponto ao anterior, sobre o método da discussão. Thomas Schütte é conhecido, se cabe essa palavra para um artista de circulação ainda restrita, por seu gosto pelo teatro, pelas maquetes e pela encenação. O que apresentou em Veneza foi um teatro da arte contemporânea definida ou dominada pelo historicismo. Da junção de peças de filiação distinta, como os desenhos sobre papel e os diferentes modos escultóricos da arte moderna e contemporânea [18], resultou uma maquete da arte contemporânea cujo significado próprio é vago embora seu significado genérico e amplo seja claro: o da História da Arte como fornecedora de significados para a arte contemporânea, ainda que às peças dessa arte contemporânea falte um significado próprio. O que Schütte fez, em outras palavras, foi retirar da História da Arte alguns de seus modos, reproduzidos num tom de menor ou maior pastiche ou paródia, colocá-los numa situação metonímica da qual algum significado –inclusive crítico— poderia eventualmente surgir e propor o cenário assim conseguido como um modo da arte contemporânea. Que a História da Arte possa propor matéria para a Arte e que a História da Arte possa ser considerada Arte é algo que está inscrito na historicidade atual da história da arte e da teoria da arte contemporânea. Mas, entendendo que o historicismo original, que me parece ser aquele praticado por Schütte, deva ser o revisto pelo essencialismo, ponho em prática o princípio da intempestividade de Nietzsche para recusar certas proposições do espírito do tempo, do espírito deste tempo, portanto do espirito do tempo dessa História da Arte e dessa Teoria da Arte para, assim, corrigir esse historicismo original. Recordarei que ser intempestivo, no sentido de Nietzsche, é pensar e agir, não como o próprio tempo, a própria época, mas de encontro à propria época ou pensar e agir ao contrário da própria época. Ser intempestivo não significa apenas contrariar a própria época, mas tomá-la pelo avêsso, virá-la pelo avesso. Não signficia ser do contra. Significa -- como dizia Descartes ser imperioso para todo aquele que insiste em pensar por conta própria e distanciar-se de toda atitude de grupo ou de partido-- não acreditar de modo demasiado firme e irrecorrível em nada daquilo que foi capaz de me convencer apenas por fazer parte do hábito e do costume. E a História da Arte e a Teoria da Arte já configuram hoje, em larga parte, um costume e um habito do pensamento. E os hábitos do pensamento, como se sabe, são horríveis.

Pensar
de outro modo

Outros o disseram talvez de modo mais simples, como Wittgenstein, que dizia ser necessário pensar sempre de outro modo – e isso, acrescentaria eu, é preciso fazer mesmo que eu ainda não esteja firmemente convencido de algo que está se impondo a mim pelo hábito: é preciso sempre pensar de outro modo por uma questão de princípio, e sempre, e em particular se for muito forte ou começa a ficar muito forte, hegemônica ou predominante, alguma tendência de pensamento. Sendo assim, agora é o momento de voltar atrás e esclarecer, se não corrigir, a afirmação de que o valor subjetivo aspira a tornar-se objetivo: por isso não se deve entender que o valor subjetivo quer incorporar-se ao valor objetivo, nem que aceitar a visão historicista significa vergar o critério subjetivo ao critério objetivo, que na verdade é antes o critério coletivo. O valor subjetivo, embora levando em conta também a história, aspira quase sempre a criar um novo valor objetivo ou, melhor, coletivo, e por isso é tão necessário pensar sempre de outro modo, assim como é desse outro modo que melhor se atende ao sentido de evolução, não tanto da história da arte mas, em particular, da arte. (Não posso, neste instante,deixar de discordar de Milan Kundera numa passagem que principia com a noção [19] de que a única coisa que sobrará da Europa não será sua história repetitiva, que em si mesma nao representa valor algum (sua história de partidos políticos e acontecimentos políticos e homens políticos, o que inclui também as mulheres, claro) mas sim sua história das artes. Entendo por que diz isso e compartilho em grande parte suas razões iniciais, expostas quando afima que a arte não está aí para registrar, como um grande espelho, as peripécias, variações e repetições da história comum, da história fora dela: a arte está aí para criar sua própria história. Nisso concordo inteiramente com ele, em particular quando diz, por exemplo, que seria ridículo escrever hoje uma outra Comédia Humana para fazer a crítica dos costumes da sociedade européia ou francesa – ou brasileira, por falar nisso. Esse livro já foi escrito; os personagens poderão mudar e com eles a trama; mas até os eventos eles mesmos serão os mesmos (e o autor que escrevesse esse livro seria conhecido apenas como o Balzac moderno ou como o Balzac brasileiro, rótulos, como todos concordarão, creio, em tudo e por tudo desanimadores. A História (a história da humanidade) tem o mau gosto de repetir-se, mas a história da arte não suporta as repetições, como reconhece Kundera. È verdade. Aquilo em que discordo desse autor que é um emblema vivo da opção identitária contemporânea, ele que deixou de escrever em tcheco para agregar-se a uma cultura maior, a uma identidade maior, passando a escrever então em francês – aquilo em que discordo de Kundera é de sua afirmação de que a única coisa a provavelmente restar será a história da arte. Não creio: a única coisa a provavelmente restar será a arte, que contém em si a históia da arte e lhe dá sentido.


Assumindo, então, a necessidade de ser intempestivo e de recorrer à noção e intempestividade para corrigir o historicismo, assim como este corrige o essencialismo, não endosso a atual sobrevalorização da história da arte como princípio da arte e, por vezes, como sinônimo de arte, e buscarei ser intempestivo no sentido em que Nietzsche descrevia essa orientação, o que inclui ir procurar no passado, ou já quase num arqui-passado, no “espírito do passado” (quarta máxima da intempestividade em Nietzsche), algum instrumento epistemológico que valeu no passado mas cujo valor futuro se pode pressentir, não tanto com o objetivo de iniciar uma época inteiramente diversa, como talvez pretensiosa ou soberbamente queria Nietzsche, mas pelo menos com o objetivo de estabelecer uma conversa com essa futura época nova e diferente (terceira máxima da intempestividade, não distante do conceito de historicismo reflexivo de Hegel).

O fetiche

O instrumento conceitual extraído do passado e ao qual recorrerei, e ao qual penso recorrer cada vez mais como critério de juízo estético, dava a impressão de ter sido definitivamente soterrado pela história da arte: o fetiche. Relembrando, o objeto-fetiche é aquele que se orienta muito mais por uma necessidade lógica interna ao sistema ao qual pertence do que pela necessidade, vontade ou personalidade dos envolvidos com sua produção e recepção. Esse objeto-fetiche não está preocupado, por dizer assim, nem com sua extensionalidade (a quantidade de indivíduos com os quais possa se envolver), nem com sua profundidade (o grau e a natureza do significado de que se possa revestir): o que o define e justifica, ou parece justificar, é pertencer a um sistema, do qual de fato se extraem outros tantos objetos a ele análogos [20]. O contexto em que se situam esses objetos–fetiche marca-se por um paradoxo -- porque foram criados por sujeitos e estão destinados a sujeitos mas seguem uma lógica imanente e com isso se distanciam tanto de suas origens como, e acima de tudo, de seus fins. Não atendem a necessidades, segundo o quadro conceitual que inicialmente propôs a noção de fetiche, nem, acrescento eu, a desejos subjetivos profundos (do autor e do receptor), nem a necessidades estéticas [21] (da obra, da arte), nem a necessidades históricas.

Necessidades da história da arte: por exemplo, a eventual e hipotética necessidade de preencher-se alguma posição ainda vaga na série, como numa virtual tabela Mendeleev da arte, com seus espaços em branco não ocupados por nada de concreto mas em relação aos quais se sabia que um dia seriam ocupados [22].

Não são nem mesmo necessidades culturais as que presidem à criação desses objetos – pelo contrário, são eles que as criam. Esses objetos-fetiche surgem apenas porque o espírito do tempo, o espírito não questionado do tempo, o espírito de um tempo não questionado, lhes abre espaço. Não cometerei o equívoco de pôr em evidência a questão da extensionalidade do objeto-fetiche, em arte, e assim acusá-lo de não se preocupar com a quantidade de sujeitos a que possam destinar-se por saber bem que a arte moderna e a contemporânea não apenas não se dirigem, programaticamente, a camadas amplas de receptores, como requerem uma formação de modo algum fácil e comum – embora em seu horizonte de cálculo essa dupla possibilidade possa estar inscrita. A equação que combina arte e democracia cultural é das menos evidentes em que se possa pensar. Resta, põem, a questão de seu significado – e é sob esse aspecto que é possível falar na real existência de objetos-fetiche, que são, naquilo que interessa aqui, os que não carecem inteiramente de significado (para o receptor, para a série) mas que no fundo tampouco são plenamente significativos. Não são necessários, embora existam, e nada mudam na arte, na relação entre o sujeito receptor e a obra e na história da arte. Como a maquete de Thomas Schütte em Veneza, de uma premiação a rigor incompreensível, explicável apenas por vetores marginais como o desejo de reconhecer no que foi exposto um máximo sinal de distinção (de acordo com a História e a Teoria atuais da arte) a enobrecer o lugar da exposição e seus responsáveis tanto ou mais que o próprio artista. O que terminam por fazer, com essa premiação, é revelarem-se prisioneiros do fetiche e seus alimentadores -- e de nada serve admitir a possibilidade de uma eventual (e quase invisível) paródia satírica feita pelo artista, uma vez que o resultado foi o que foi [23]. Essa arte-fetiche não carece inteiramente de significado mas não significa muita coisa. E é cada vez mais comum encontrá-la, nas exposições de arte, museus e galerias. Por vezes são meras peças de entretenimento, de divertissement. O jogo, o lúdico tem de fato em comum com a arte, e com a arte contemporânea, um gama ampla de pontos de contato – o que não quer dizer que sejam sinônimos. Aquilo de que não há dúvida é que a idéia do divertimento, para muito aquém do jogo, tornou-se um dos fetiches da arte contemporânea. Outras vezes, o fetiche apresenta-se como séria proposição da arte, a exemplo do que ocorre nesta Bienal de Veneza. Como recusar sua presença, se faz parte da história da arte, se faz parte do espírito do tempo? É difícil recusá-lo, pois não carece inteiramente de significado, nem para o observador, nem para a série histórica, embora tampouco seja plenamente ou satisfatoriamente significativo. O receio de denunciar o fetiche – nas ocasiões em que pelo menos se consegue chegar ao ponto de indagar se isso de fato não seria um fetiche — é um dos modos mais fortes do atual discurso artisticamente correto. E o fetiche, na arte, só se torna possível em virtude de uma complacência excessiva com o historicismo e, acima de tudo, com a subserviência ao ideal de ser sempre , necessária e inteiramente, de seu tempo. O fetiche está dentro do discurso histórico, de um modo ou outro. O problema com o fetiche é que não responde a nenhuma das solicitações que o essencialismo, outro nome aqui para historicismo reflexivo, possa lhe fazer: o fetiche conversa exclusivamente, se tanto, com a história da arte, e sua existência e sobrevivência só podem ser atribuídas a razões extra-estéticas e extra-artisticas (mercado, compadrio ou outra) e ao próprio vigor do atual historicismo, que conta com a cumplicidade geral para mantê-lo vivo. E por “geral” me refiro a “todos”, literalmente. Não só o crítico, sobretudo o crítico que pratica o historicismo original, como todas as pessoas. Posto que agora tudo é ou pode ser arte, assim como todos e qualquer um podem ser artistas –outro modo mais simples de dizer que a arte não tem agora nenhum unidade de forma concreta, nem é a priori reconhecível nem mesmo pelo olho mais expert--, cada produtor artístico coloca seu produto junto aos demais num espaço sem marcas e sem fronteiras, num processo de massificação das coisas que, como observava Simmel [24] já à época em que fez esse comentário, 1911 (sinal de que o fenômeno não é nada tão novo assim), faz com que cada um desses produtos tenha, em princípio, um certo direito cultural a ser considerado um valor artístico (se não arte). Mais ainda: exatamente por isso, cada um desses produtos faz ressoar em nós o desejo que ele tem de ver-se valorado como arte, o que nos provoca, em nós, igual desejo de valorá-lo como arte. Esse é o novo a priori da apreciação da arte. O circulo se fecha, a fome se junta à vontade de comer. É preciso romper esse círculo porque em certas situações o vazio já é enorme e o ridículo, inescapável. Simmel diz que é assim que se forma uma cultura das coisas que se contrapõe à cultura das pessoas. Prefiro dizer que é assim que se constitui uma cultura da arte que se contrapõe à arte. A sala de Thomas Schütte em Veneza é um caso da cultura da arte, como tantas em outros tantos lugares, sobretudo naqueles ditos de cutting edge, de ponta (é esse o preço que a idéia de vanguarda paga por situar-se à frente do processo).

De recusar a aceitar

Observe-se, de passagem (embora talvez essa seja a questão) a inversão notável que se registra no campo das relações entre obra de arte e observador especialmente nas últimas quatro décadas (desde o abstracionismo informal e o conceitualismo, digamos) e de modo geral ao longo do século 20 (desde Dada e Duchamp): antes, a reação comum e a priori era negar o caráter de arte a essas propostas; o dadaísmo queria destruir ou desconstruir a arte e fazia ressoar em seus observadores o desejo análogo de negar a priori àquelas propostas o caráter de arte; agora, outras obras de arte e mesmo aquelas referidas fazem ecoar em nós o desejo a priori de considerá-las , “por evidência”, arte -- e é assim que fazemos.

A série e o fuori serie

Não cabe dizer que o fetiche na arte seja um caso inteiramente novo. Lendo autores que escreveram sobre arte há cem anos ou mais percebe-se que, embora as palavras sejam outras, estão descrevendo um fenômeno idêntico ou similar. Mas as cores atuais são sem dúvida mais fortes, porque mais aguda é a situação criada pela atual fase de confusão da história da arte com a arte. Faz parte do espírito do tempo aceitar e mesmo acreditar que tudo possa ser arte, a começar da história da arte. Mas pelo princípio da intempestividade, deve ser parte do dispositivo crítico atual afirmar não só que a distinção entre uma coisa e outra ainda se impõe como, também, que o crítico não pode enfrentar cada obra como se ela mesma e ele próprio estivessem desligados de uma série – porque a obra, desde logo, e sem dúvida, não está. A reivindicação de um valor extra-histórico é hoje um dispositivo que pode servir para fazer avançar a arte em sua história, mesmo que o sentido desse avançar seja o daquela evolução que já mencionei.


Não há mais uma narrativa em nome da qual se possa fazer critica de arte, hoje – felizmente. Nem uma narrativa político-ideológica, como houve ao tempo dos “comissários para a educação do povo”, dos quais Lukacs foi exemplo; nem uma narrativa estético-científica ou estético-psicológica, como ao tempo dos manifestos futuristas, surrealistas e outros mais. Felizmente. Não subsiste nem mesmo, por debilidade interna da argumentação, que se revela uma especiosidade teórica, a narrativa da suposta fase pós-histórica que viveríamos e que traria consigo de um lado a máxima pluralidade dos modos de arte e, do outro, a máxima pluralidade dos modos da crítica. Está claro que a noção de história da arte desenvolvimental [25] , que procede por avanços e que os adeptos do fim da história com razão e por isso quiseram combater, não pode ser de fato eliminada por outra teoria, a do fim da história, que é ela mesma desenvolvimental. A única contestação a essa falida noção da história desenvolvimental só pode provir, no momento, do recurso à intempestividade, como aliás já descobriram os artistas. E é a idéia da intempestividade aquela que, hoje, melhor pode fornecer à crítica sua matéria específica e apropriada a estes tempos, por mais paradoxal que isso possa parecer.

A série e o
fuori serie

YOU MAKE HISTORY WHEN YOU MAKE BUSINESS E isso, porque está claro que algumas perguntas continuam a pedir respostas, como aquelas nas quais Rushdie insiste: mas, afinal que tipo de tapete é esse? Quem está sentado nele? Para onde está indo? E onde estou eu que fico vendo todos esses tapetes voando para todos os lados? Às vezes, é verdade, tenho a sensação de que não há tapete voador nenhum, nem perguntas sobre tapetes, ou tenho a sensação de que as pessoas fazem de conta de que não há mais tapetes voadores, nem perguntas sobre tapetes voadores, porque o que interessa agora é, a contrapelo da tese do fim da história da arte, fazer história, entrar para a historia -- e a história hoje parece que só se faz, como inscreveu Bárbara Kruger sobre a entrada desta Biennale de 2005, quando se faz negócio. Business. You make history when you make business, foi o que Bárbara Krueger escreveu literalmente por cima da Biennale, este ano – com um grande senso de oportunidade não despido de ironia..., quando se pensa em Schütte. E tapetes voadores atrapalham os negócios, ficar dizendo que há tapetes voadores por aí atrapalha os negócios, melhor dizer que se acabou o tempo dos tapetes voadores e dessas perguntas todas sobre os tapetes voadores. Mas, o que posso fazer se continuo a ver tapetes voadores, quer dizer, se continuo a ver imensas obras de arte, imensas artes voando por aí, que me espantam e irritam mais do que assombram e se preciso encontrar um modo de dirigir-me a elas e perguntar-lhes o que querem de mim, tanto ou mais do que me perguntar a mim o que quero delas?

 

 

 

 

 

 

 

Os limites da hermenêutica

 

A arte como ato unitário, como a natureza – ou, se a arte acaba ela vira natureza,
não filosofia

 

 

Uma
hermenêutica
da suspeita

Por essas razões, num breve resumo do que expus, recorro ao essencialismo como instrumento de análise corrigido pelo historicismo (reflexivo) corrigido pela idéia de intempestividade (a-historicismo) que encontra na noção de fetiche um dos instrumentos que me permite não embarcar em tapetes furados. Não sendo assim, a crítica torna-se impossível. Inútil. A crítica torna-se impossível quando a consciência que insiste em predominar é a de tipo hermenêutica. Se compreender, apenas, for o modo de ser do “crítico”, todos os atos unitários (as obras de arte em si) que poderiam dar origem a sua manifestação demonstram-se como faits accomplis que não pedem e não aceitam nenhuma intervenção do juízo: são fatos que existem apenas para serem aceitos. Nessa linha de reflexão, um evento qualquer, tanto quanto uma obra de arte, nunca teria nada que não fosse pacífico e per se admissível: nada nele seria contraditório em relação a alguma coisa (ou em relação a si mesmo) e nada dele seria em si passível de ser contrariado: tal como um relâmpago ou um trovão, que não é contraditório a nada e que não pode ser contrariado. Toda contradição derivaria somente das diferentes concepções dessa obra e de seus efeitos. Estaríamos no território do relativismo e nenhuma critica seria possível, apenas a descrição – ou a elegia, e hoje a descrição já é uma elegia. A descrição caberia se a arte tivesse voltado a ser um fato da natureza...numa situação pré-moderna. Quanto a mim, continuo optando ou, melhor, voltei a optar intempestivamente pela consciência crítica [26] no lugar da consciência hermenêutica. Para ficar um pouco mais com o espírito do tempo, poderia dizer que prefiro, à consciência hermenêutica, a hermenêutica da suspeita de Habermas, que leva à detecção e recusa dos falsos consensos impostos por aqueles que têm o poder de levar os outros a pensar como pensam. O que é exatamente o caso da premiação de Veneza. Não compartilho a recusa que Habermas faz do pensamento pós-moderno mas estou pronto a reconhecer que a pós-modernidade, tal como a modernidade, continua a ser em larga medida a história da ideologia e do poder, e acima de tudo da vontade do poder, e que nada disso foi alterado nem pelo espírito da modernidade, nem pelo espírito da pós-modernidade – na política como na arte, mas sobretudo e em primeiro lugar na política, onde as revoluções e as trocas de mando sempre se fizeram, todas, e continuam a se fazer todas, indiscriminadamente, por toda parte no espectro ideológico, em nome do poder e da vontade de poder. Como, aliás, na arte. Contra isso a consciência puramente hermenêutica não basta. Serei aqui outra vez intempestivo e voltarei atrás, à modernidade, para reivindicar a consciência crítica que ainda é capaz de denunciar e recusar as instâncias do poder, as da política propriamente dita e as da política da arte, com suas instituições todas. Nesse sentido, a história da arte não se encerrou, nem morreu: continua viva e tão forte quanto antes. Concedo que a noção de fim da história de Hegel não é para ser tomada cronologicamente e que ela é, antes, uma noção lógica relativa aos padrões institucionais requeridos pela realização de certos conceitos – no caso dele, os conceitos de liberdade e razão (e o fato de, por exemplo, ainda não haver liberdade por toda parte não impediu Hegel de pensar que a história da liberdade estava encerrada, uma vez que o conceito da liberdade em si já se teria tornado realidade, tornando-se a implementação efetiva da liberdade por toda parte apenas uma questão de desdobramento ocasional e temporal). No caso da arte, não vejo quais conceitos estariam implicados num fim de sua história [27] : nem o do desejo, nem o do jogo, nem o da ampliação da esfera de presença do ser.

 

 

 

O presente
crítico.

O seminário nos pergunta também se é possível pretender que a arte ainda venha a quebrar paradigmas, considerado o atual contexto ou, talvez fosse o caso de acrescentar, apesar do atual contexto. E se é possível esperar que a arte ainda venha a ser prospectiva e propositiva. As observações que aqui faço são no sentido de reafirmar, seguindo as proposições de Nietzsche, um presente crítico que atue sobre sua própria época e contra ela, rompendo com suas origens, suas heranças e seu patrimônio para operar em favor de uma época por vir . Um presente crítico que não se identifique de todo com sua época, um presente crítico que não se sinta cidadão de seu tempo porque os que se sentem cidadãos de seu tempo são exatamente aqueles que contribuem para aniquilá-lo e que com ele naufragam. Se o presente crítico pode ser isso, a arte crítica também o pode ser, e para isso ela tem de continuar a quebrar paradigmas, o que me parece que ela ainda é capaz de fazer se não se enroscar nos fetiches que bóiam como escolhos nas rotas dos tapetes voadores. Mas, já que a arte não deve pactuar com seu tempo, essa arte nada tem a ganhar se pretender ser propositiva. Sendo intempestivo mais uma vez, volto novamente atrás, volto a Turgueniev, para com ele lembrar que “Só aqueles que não têm nada melhor a fazer se submetem a temas predeterminados ou buscam implementar proposições” [28].A arte contemporânea tem coisa melhor a fazer. Voar, por exemplo.


[1] Le Monde 27 de maio de 2005, pág. X.
[2] Não foi apenas Rushdie a passar por esse inferno, claro. Dentro do Irã inúmeros jornalistas e escritores foram perseguidos, presos ou assassinados sem que nenhuma “potência” ocidental manifestasse seu horror: a opressão à liberdade de pensamento e de opinião não move indignações. Nem há que espantar-se muito diante dessa situação quando se sabe que mesmo intelectuais de esquerda se declaram prontos a admitir “uma certa restrição” à liberdade em nome de “avanço sociais”, uma declaração escandalosa que tampouco motiva reações...
[3] Por exemplo, na Biennale de 2005, Sun Yuang, Pen Yu, Unidentified Flying Objects,2005. UFO 6 x 2,5 x 6m.
[4]Collected essays and criticism, Chicago, The Univ. of Chicago Press, s.d., vol.4, p. 308.
[5]After the end of art. Princeton, Princeton Univ. Press, s.d.
[6]El telón (Ensayo en siete partes). Barcelona, Tusquets, 2005,
[7]“Tradition and individual talent”, in Selected essays, New York, Harcourt Brace, s.d.
[8]Antoni Muntadas, “Atenzione: la percezione richiede impegno”, On translation, La Biennale, 2005.
[9]Sobre la aventura, Barcelona, Península, 2002, p. 331.
[10]A cultura e o século, Ed. Iluminuras, no prelo.
[11]Hegel, Lectures on the Philosophy of World History, Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1975.
[12]Hans-Georg Gadamer, Truth and Method, London, Sheed and Ward, 1989.
[13]Uma situação no entanto poucas vezes realmente alcançado pela arte. Seus exemplos mais notáveis estão no teatro de Grotowski, como escrevi em Uma outra cena (Ed. Polis, 1987) ou nas performances da arte contemporânea pós-68.
[14]Sobre o gosto, São Paulo, Iluminuras, 2005.
[15]Ou nosso eu global: hoje já não se pode mais dizer eu universal: não temos mais essa pretensão, ou por suspeitarmos que não estamos sozinhos no universo ou, exatamente, por suspeitarmos que estamos sozinhos: em nenhuma das hipóteses tem sentido falar em universal e universais.
[16]Se ela está fora da série, está fora da História. Nesse caso, há apenas uma possibilidade para que ela continua a contar como uma obra de Arte: que a história tenha terminado. Mas esse é um outro tema...
[17]L´esperienza dell´arte.
[18]Ver ilustrações ao final do texto.
[19]Op.cit, p. 42.
[20]Georg Simmel, op. cit., p.350
[21]Utilizo agora termos diferentes daqueles empregados por Simmel,por não compartilhar suas posições a respeito.
[22]Hoje a tabela de Mendeleev já esta praticamente cheia ou muito mais cheia do que quando dela tive conhecimento, décadas atrás, na escola secundária, é verdade. Mas a imagem continua sugestiva...
[23]Também Duchamp se decepcionou quando, tendo mandado para a tal exposição seu urinol masculino para corroer os padrões de beleza estética, verificou que as pessoas haviam em seguida passado a louvar as qualidades estéticas do objeto...
[24]G.Simmel, op.cit., p. 351. Esta obra foi publicada inicialmente em 1911 com o título Filosofia da cultura.
[25]Para não dizer desenvolvimentista, palavra que entre nós tem um sentido específico embora não de todo distante daquele ao qual aqui se faz referência.
[26]Paul Ricoeur, Hermeneutics and the Human Sciences, Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1981.
[27]Mesmo porque a idéia de algum retorno contínuo me parece bastante plausível em certos aspectos da vida humana.
[28]Nadine Gordimer, “A Writer´s Freedom” in The Essential Gesture: Writing, Politics and Places (Johannesburg, Taurus, 1988). Cf. J.M.Coetzee, Stranger Shores (Croydon, Vintage, 2002, p.269)