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O museu no século XXI ou o museu do Século XXI?

Após um relato sobre o museu nos séculos passados, Durval de Lara Filho elenca alguns requisitos para que o museu na contemporaneidade afaste-se, finalmente, do modelo de templo de objetos consagrados. “Se o museu não mais se dirige a especialistas mas ao grande púbico, surge aí uma espécie de assimetria, pois o livre acesso físico ao museu não garante o acesso pleno às obras, visto como entendimento, compreensão e fruição.”
Centro de Cultura Contemporânea - Barcelona
Centro de Cultura Contemporãnea de Barcelona - Word Wall Web
Foto: Durval Lara (novembro/2004)


“Não se deve adotar uma atitude protecionista para impedir que a "má" informação invada e sufoque a "boa". É preciso antes multiplicar os caminhos e as possibilidades de idas e vindas" (Michel Foucault, O filósofo mascarado)

O aparente jogo de palavras do título deste artigo esconde e revela um dos pontos básicos das discussões sobre museus no momento. Discute-se tanto o que deverá ser o museu no século XXI - quais modificações e acréscimos as instituições existentes deverão discutir e propor para revitalizar-se frente as demandas da contemporaneidade – como também o que deverá ser um museu do século XXI – ou seja, uma instituição criada a partir das demandas da contemporaneidade. Estes dois eixos de discussão não se misturam e são até conflitantes. Enquanto o processo de revitalização vem ocorrendo ao longo do tempo, a criação de um novo tipo de museu em nossos dias é até mesmo contestada, vista como contraditória em seus termos (novo e museu). No entanto um grande número de museus surge todas as semanas na Europa, Japão e América do Norte, predominando os de arte contemporânea, antropologia e ciências. Esta vitalidade, que até pouco tempo atrás não era previsível, traz a premência da revitalização dos museus já existentes, processo que passa pelo reordenamento de seu papel e funções, pela reformulação do espaço expositivo - reformas e ampliações dos edifícios -, e também pela busca de uma nova expografia.

A produção modernista encontra no museu um parceiro: ela produz para o museu e este a acolhe. Porém hoje, no início do século XXI, quando existe um quase-consenso de que algo se rompeu na sensibilidade moderna e sobre o fato de que a cultura não mais se filia aos mesmos princípios do início século passado, como pensar o museu? Se, como afirma Canclini (2003: 47), as tendências da arte contemporânea apontam para um “sentido ritual e hermético”, no qual se restringe o processo de “comunicação racional (verbalizações, referências visuais precisas)” e se buscam “formas subjetivas inéditas para expressar emoções primárias enfocadas pelas convenções dominantes (força, erotismo, assombro), como pensar o museu em sua função pública?” Também os museus de Ciências e de Antropologia/Etnografia passam por reformulações, discussões sobre seu papel e funções, formas de expor, etc. De um lado, temos um museu preocupado não mais somente com a coleção e a conservação, mas também com o público; de outro, um museu – especialmente o de arte – que, frente a produção em novos suportes, passa a exigir uma resposta adequada tanto em relaçao à conservação como à exposição de tais manifestações.

As novas questões colocadas aos museus nao se esgotam nas apontadas acima. Em palestra do Fórum Permanente, Stijn Huijts, diretor do Museu Het Domein da cidade holandesa de Sittard, apontou desafios contemporâneos para os museus e, dentre eles, os relativos às difíceis relações com os patrocinadores – sejam eles empresas privadas ou estatais -, os relacionados ao respeito à diversidade cultural e às particularidades locais. Para ele, “museus são instituições científicas com uma tarefa pública e não vice-versa (ou seja, o museu não é uma instituição pública com tarefa científica)” (Fórum Permanente, Jornada de debates com artistas e comissários da 26a Bienal de São Paulo). Já para Jorge Wagensberg, do Museu de Ciências de Barcelona, “para despertar a curiosidade científica um museu tem que emocionar. Seduzir o visitante para os mistérios da realidade é a melhor forma de fazer com que ele queira entender a realidade”. São visões que se tocam em alguns momentos para se distanciarem em outros.

Questões do museu nos séculos passados

As origens do museu remontam aos mostruários, gabinetes de curiosidades, coleções, jardins e herbáreos dos séculos precedentes, em que os objetos constituíam o foco central e a documentação ou textos sobre eles quase não existiam. Os museus eram verdadeiros depósito de objetos, muitas vezes fruto das pilhagens feitas pelos países colonialistas no Egito, Grécia, Oriente, Américas e África. Tais objetos eram exibidos como troféus de conquista e eram utilizados para reforçar a nacionalidade e a identidade dos povos dominantes e mostrar uma ‘superioridade’ de sua civilização sobre aquela dos povos dominados.

Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, refletindo uma nova forma de pensar e uma outra sensibilidade, o museu agrega novas atividades, passando do simples colecionismo às práticas da conservação, do registro e da classificação dos objetos. A linguagem desprende-se do objeto que já não mais fala por si mesmo mas através da intermediação da linguagem. Para Foucault, “A atividade do espírito (...) já não consistirá, portanto, em aproximar as coisas umas das outras, partir em busca de tudo o que nelas pode se revelar como um parentesco, uma atração ou uma natureza secretamente partilhada, mas pelo contrário, discernir, quer dizer, em estabelecer as identidades, e a seguir a necessidade da passagem para todos os graus de diferenciação” (1996, p.82).

A grande mudança ocorre no “próprio saber como modo de ser prévio e indiviso entre o sujeito cognoscente e o objeto do conhecimento” (FOUCAULT,1966:329-330). Essa ‘descontinuidade’ ocorre quando a teoria da representação deixa de ser o fundamento geral “de todas as ordens possíveis” e, dessa forma, marca o inicio da modernidade. Durante toda a idade clássica existiu uma coerência "entre a teoria da representação e as da linguagem, das ordens naturais, da riqueza e do valor. É esta configuração que, a partir do século XIX, muda inteiramente (...) a linguagem como quadro espontâneo e 'quadriculado', primeiro das coisas, como intermediário indispensável entre a representação e os seres, desvanece-se por seu turno" (1966:12). Assim é que a ordenação, a classificação e a documentação dos objetos passam a ocupar um espaço cada vez mais importante nos museus, pois a ordem ocupa o lugar da interpretação e conhecer é, agora, discernir.

A produção modernista e o museu percorrem um caminho diacrônico, lado a lado, salvo em alguns momentos de contestação. As obras ‘transgressoras’ são admitidas nos museus de arte, não sem que, antes passem por uma espécie de quarentena e sejam despojadas de seu caráter contestador, sendo então ‘re-criadas’ como objetos de rito. Lembrando Canclini, “Há um momento em que os gestos dos artistas que não conseguem converter-se em atos (intervenções eficazes em processos sociais) tornam-se ritos. (...) Uma das crises mais severas do moderno se produz por esta restituição do rito sem mitos” (CANCLINI 2003: 45,48). E qual o melhor espaço para o ritual senão o museu-templo, configurado num espaço monumental e sacralizado que expõe objetos também sagrados? É neste quadro que a arquitetura passa a preocupar-se com uma edificação criada especialmente para ser um museu e que atinge seu ápice com o conceito do ‘cubo branco’. “A Arte Modernista é acima de tudo uma arte produzida para o paradigmático Museu de Arte Moderna – entendida como a tradução perfeita do espaço absoluto Cartesiano em um design pragmático” (GROSSMANN, 2001: 275)


O museu de arte no século XX

Ao valorizar a ordem e estabelecer um forte compromisso com a origem ou com a produção dos objetos, sejam eles artísticos, científicos ou históricos, o museu volta-se para os estudiosos e a classificação e a organização da coleção ocupam lugar de destaque (da mesma forma que na biblioteca). Graciela Schmilchuk sintetiza ironicamente esta situação:

A manera de caricatura podríamos decir que en los museos tradicionales encontramos dos figuras y funciones de peso: el curador y el custodio, cuya devoción es la colección. Para ellos el visitante es "un intruso necesario al sistema ... la coartada de su función". El menor gesto del visitante es considerado sospechoso de apropiación o transgresión. El museo se emparenta así con la prisión, el hospital y la escuela. (SCHMILCHUK, s/d).

Foi a visão pragmática e mercadológica norte-americana que inventou o museu que hoje conhecemos. O MoMA de Nova York, além de incluir novas manifestações e produções até então nunca vistas num museu, como a fotografia e o desenho industrial, estrutura-se de forma diferente, passa a promover exposições temporárias e, principalmente, cerca-se de um público assíduo que freqüenta as conferências, debates, sessões de cinema e inclusive lhe dá sustentação financeira. Para GROSSMANN “o museu já não é mais considerado apenas como mero depósito, mas também como agente cultural, provocando e representando a produção das artes contemporâneas” (2001:198). O novo ‘modelo’ de museu inaugurado pelo MoMA onde impera uma arquitetura fria, um espaço fechado e isolado do mundo leva Carol Duncan e Alan Wallach a afirmar que “Estamos em ‘lugar nenhum’, em um nada original, um útero, uma tumba branca mas sem sol, que parece situada fora do tempo e da história” (citado por CANCLINI, 2003: 47). Ao manter ‘sagrado’ o espaço expositivo e os objetos nele contidos, e “ao impor uma ordem de compreensão, organizam também as diferenças entre os grupos sociais: os que entram e os que ficam de fora; os que são capazes de entender a cerimônia e os que não podem chegar a atuar significativamente” (CANCLINI, 2003: 47). A inserção no mundo da mídia, assim como a abertura às manifestações artísticas contemporâneas, levam o museu a atrair multidões que não costumavam freqüentá-lo.

 

Museu de Arte Contemporânea de Barcelona
Museu de Arte Contemporãnea de Barcelona - Antonio Muntadas, Retratos, 1994.
Foto: Durval Lara (dezembro/2004)

Os tradicionais organismos, como o ICOM (International Council of Museums), procuram acompanhar, mais ou menos de longe, as mudanças. As ‘definições’ de museu e da função dos museus são reformuladas a cada encontro da entidade.1 Percebe-se uma grande mudança – embora deslocada no tempo - quando em 1974 o ICOM dá um passo em direção a um ‘novo’ conceito das funções do museu ao colocá-lo "a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento".2

A preocupação de prover o acesso do público ao museu soma-se ao papel tradicional de colecionar, classificar e conservar objetos ou resquícios de um passado da sociedade. Não há um deslocamento de uma coisa para outra, mas a busca de um equilíbrio entre elas. Ao contrário da visão anterior, a coleção e a classificação passam a ser vistas como a gramática e a sintaxe de uma língua que se pretende falar. Ao museu compete ‘falar sua língua’, articulada por meio da coleção e sua classificação, ou, sendo mais radical, dar condições para que a ‘obra fale’ com o público. Para Canclini, “uma museografia rigorosa destaca as etapas decisivas na fundação ou na transformação de uma sociedade, propõe explicações e chaves de interpretação para o presente” (...) [Os museus] “colocam não apenas a sociedade em relação com sua origem, mas criam na produção cultural relações de filiação e de réplica com as práticas e as imagens anteriores” (CANCLINI, 2003: 141).

Se o museu não mais se dirige a especialistas mas ao grande púbico, surge aí uma espécie de assimetria, pois o livre acesso físico ao museu não garante o acesso pleno às obras, visto como entendimento, compreensão e fruição. Grossmann diz que estes problemas estão presentes já na abertura dos museus ao público, no século XVIII: “Os especialistas ligados à instituição museu – historiadores, connaisseurs, e assim por diante – concordavam, cinicamente que os museus em geral deveriam ser acessíveis ao grande público, mas por outro lado mantinham o entendimento da arte como um produto de uma sensibilidade especial, passível de ser adquirida somente por via de um conhecimento a priori e certo grau de educação” (GROSSMANN, 2001: 195). Com o intuito de equacionar o problema, o museu se vê diante de um dilema: priorizar a popularização de seu acervo, a qualquer custo, transformando o museu num showroom ou num shopping center, ou preservar o caráter ‘culto’ da produção e da própria origem do museu, em prejuízo de sua popularidade. Esta dúvida se expressa no dilema entre ser um templo ou um showroom (LEVIN, citado por GROSMANN, 2001: 193), ou, segundo Canclini (2003: 103), entre ser um santuário tradicional da elite ou estar colocado a serviço das leis industriais da comunicação.

O caráter sagrado dos museus não desaparece, mas muda: muitos deles adquirem características profanas - ou mundanas – e passam a promover exposições ‘blockbuster’, amparados por amplas e maciças campanhas publicitárias pela TV, que despejam centenas de milhares de pessoas nas filas para a visita. Os museus passam a fazer parte dos programas de marketing cultural. Há uma mobilização “estridente” de setores “que pretendem “forçar a inclusão das artes visuais na pauta nacional, atentos ao rendimento publicitário extra que tais exposições proporcionariam, ao testemunhar o monumentoso ingresso do país na rota das exposições internacionais” (SALZSTEIN, Sônia, 2001:386). As grandes exposições que ocorreram nos últimos anos, não só no Brasil, mas em inúmeros outros países, levaram milhões de pessoas aos museus. Mas, estas pessoas tornaram-se freqüentadoras de museus? Houve algum ‘efeito residual’ após estas mostras? Tais exposições serviram para ao menos gerar algum tipo de interesse e motivação para estas pessoas? Infelizmente a resposta a todas estas perguntas parece ser um enorme não. Os países com ínfimas tradições na área de museus e acervos incompletos como os da América Latina, a alternativa seria adotar este modelo de forma crítica, isto é, inserido numa política cultural mais ampla. Moacir dos Anjos vê aí a possibilidade de “uma ampliação do repertório visual que é posto à disposição dos habitantes de várias cidades antes colocadas à margem da circulação dessas informações” (s/d).

Nem todos os museus trilham estes caminhos, seja por uma postura crítica em relação a tais exposições, seja por outros motivos, mas também pouco fazem para enfrentar o problema das assimetrias entre produção, espaço expositivo e público. As perguntas que surgem são: aquisição, conservação, classificação, para o quê? Ou melhor, para quem? A Ação Cultural, os estudos de público e as ações visando desencadear uma experiência no público pretendem ser uma resposta adequada e eficiente. Para Pierre Bourdier, apreciar uma obra de arte moderna ou contemporânea requer um ‘capital cultural’, isto é conhecer a história do campo de produção dessa obra. Esse ‘capital cultural’ ou ‘disposição estética’ se adquire ao pertencer a um dado grupo ou classe social, geralmente da elite: não é algo que se tem, mas que se é (CANCLINI, 2003: 37). Colocado desta forma o problema não tem solução fora de uma ampla e utópica revolução social na qual todos receberiam uma formação que permitiria a acumulação de um capital cultural considerável. Nesta visão utópica haveria então um amplo público com capital cultural suficiente para apreciar os museus de arte. Hoje essa discussão assume tons mais realistas ao considerar que o mais importante não é a simples ‘ampliação de público’, mas sim a formação de um público que passe a freqüentar o museu e a ser “cúmplice das especulações do artista” (Anjos, s/d). Para se atingir tal meta é necessário criar atividades formadoras, de cunho teórico e prático” (Anjos, s/d), o que implica num redimensionamento das pretensões do museu em relação ao público. Isto é, assume-se que o museu de arte – assim como a literatura, a música, o teatro ou a dança - não é e nunca será para todas as pessoas, não pelas circunstâncias atuais de países como o Brasil onde a exclusão social e cultural cria enormes barreiras para o acesso, mas por escolhas pessoais, tradições culturais, etc.

O museu do século XXI

Para Derrida, "a vida cultural é vista como uma série de textos em intersecção com outros textos, produzindo mais textos". Este entretexto, urdido no entretecer de textos, nao é transparente: “a linguagem opera através de nós” (citado por HARVEY, 2002:53). De fato, "enquanto o modernismo pressupunha uma relação rígida e identificável entre o que era dito (o significado ou "mensagem") e o modo como era dito (o significante ou "meio"), o pensamento pós-estruturalista os vê separando-se e reunindo-se continuamente em novas combinações" (citado por HARVEY, 2002:53). Ao questionar todos os sistemas fixos de representação criar novos códigos, a cultura contemporânea acolhe e aceita a fragmentação, o efêmero e o transitório, o caótico, o descontínuo, mas, diferentemente da afirmação de Baudelaire, não se tenta transcendê-los, opor-se a eles, mas sim mergulhar neles. Esta nova maneira de viver e de ver, esta nova sensibilidade, está presente nas diversas manifestações culturais, inclusive nos museus: considerar múltiplos pontos de vista, a atividade, os novos espaços de relacionamento, os fluxos de informação etc.

Um museu do século XXI, seja criado agora ou não, será aquele que se comprometer com aspectos da cultura contemporânea. Não se trata apenas de assimilar as novas técnicas e tecnologias mas de estruturar políticas culturais inovadoras e estimulantes. Stephen Weil (1990) chama a atenção para o fato de que os museus são definidos por suas funções e não por seus propósitos ou fins. Enquanto as funções vinculam-se mais a uma atividade operacional, os propósitos são calcados em valores e revelam a política cultural da instituição. Para o autor, é necessário “mudar o foco” das funções para os propósitos. No entanto, no meu modo de ver, não há como se discutir uma coisa sem a outra. As funções – ou as funcionalidades – são universais e podem ser aplicadas a todos os museus. Já os propósitos ou finalidades têm que possuir um profundo vínculo com o local, com o particular. Se a política cultural norteia as funções do museu, estas por sua vez, servirão como um termômetro para detectar os erros e acertos dos propósitos. A finalidade última do museu é trazer algum tipo de benefício às pessoas e provocar mudanças em suas vidas, e não ser simplesmente uma casa de custódia para obras de arte ou um centro erudito. Isto implica num constante questionamento de suas funções e propósitos.

Para tentar mostrar as especificidades e as relações entre as funções e os propósitos vamos tratá-los separadamente, embora isto não ocorra na vida real. Trata-se tão somente de um artifício de análise.


O plano das funções

No plano das funções, algumas questões sobressaem: como criar e implementar novas formas de atuação dos museus? Quais são as mudanças necessárias para que o museu dê conta da exposição e da conservação dos trabalhos contemporâneos? Como o museu irá trabalhar os aspectos relacionados à arte e educação nas próximas décadas? Qual é o posicionamento do museu frente às novas tecnologias, tanto em seu uso no gerenciamento e na documentação da coleção como no auxílio aos projetos de educação e no apoio à visitação?

Tanto para os museus já estabelecidos (com uma história e um acervo), como para os museus que estão sendo criados hoje, os desafios que se apresentam são enormes. O equilíbrio entre a conservação e a exposição se vê ameaçado pela própria dinâmica da produção artística que rompe com o paradigma da contemplação e solicita a intervenção, a participação, a interação. No plano da conservação, por exemplo, o emprego de inúmeros materiais industriais e de tecnologias, muitas vezes vincula o trabalho a um momento, a uma data, pois objetos industriais podem deixar de ser fabricados Jon Ippolito, curador associado de Media Art no Guggenheim, narra a seguinte situação: numa instalação Dan Flavin utiliza lâmpadas fluorescentes de oito cores. Em dado momento descobriu-se que uma das cores de lâmpada havia deixado de ser fabricada por problemas de toxidez em sua confecção. O museu se viu obrigado a comprar todas as lâmpadas daquela cor que encontrou no mercado e estocá-las para futuros usos. A ironia, escreve Jon Ippolito, é que trabalhos criados a partir de produtos de fabricação em massa, estão guardados ao lado de Kandinskys e Picassos.3

Já os trabalhos digitais estão estreitamente vinculados a softwares e hardwares, o que significa que nem todos eles poderão ser vistos em versões mais sofisticadas, tanto de programas, como de máquinas. O museu, ao adquirir uma obra digital, deverá comprar também os equipamentos para os quais a obra foi projetada.
As obras que abordam a efemeridade, a intangibilidade, aquelas que têm um fim programado, as que contemplam a ação, o evento, a performance, só deixarão como herança, eventuais resíduos, além de uma também eventual documentação ou registro. Teria sentido sua reconstrução num museu, quando a obra foi concebida para ser vista fora dele? Teria alguma pertinência ‘imortalizar’ algo concebido como efêmero? A voz do artista, quando vivo, é fundamental nestas questões. Porém passados alguns anos, seus herdeiros ou proprietários, terão a mesma atitude? Provavelmente, não. Caberia ao museu, enquanto um ‘guardião’ dos rastros da cultura, reconstruir tais obras, ou ainda operar como um maestro que, diante da partitura e da orquestra interpreta uma obra? O ensaísta francês Jean Galard, que atuou durante vários anos no serviço cultural do Louvre, comenta em entrevista a Lisette Lagnado:

Como restaurar uma cultura de poeira de Marcel Duchamp – é um problema de ordem prática , inclusive apaixonante. (...) O problema reside numa "materialidade" que começa a levar aspas já com a arte cinética, quando estamos diante de uma obra constituída de luz, projetada sobre tela. Qual a materialidade de uma obra de Bruce Nauman? O que é a materialidade de uma "fórmula" deixada por um artista, cuja realização poderá ser múltipla, em diferentes momentos? O museu se torna um centro de conservação de "instruções" a serem realizadas, atualizadas e reatualizadas em diferentes lugares do mundo por quem comprar os direitos. (LAGNADO, 2004).

Jon Ippolito propõe o conceito de “variable media” que poderia responder a algumas dessas questões: os trabalhos criados em suportes efêmeros, deveriam ter um certo grau de flexibilidade em suas especificações, permitindo que no futuro possam ser transpostos para um outro meio quando aquele para o qual foi criado tornar-se obsoleto. Essa flexibilidade permitirá a manutenção do trabalho e também sua recriação ou duplicação. Segundo o autor, para a aquisição de uma obra que utiliza suporte efêmero o museu deveria, antes de mais nada avaliar se ela possui uma flexibilidade, intencional ou não, que permita sua preservação e manutenção. Em seguida, o museu deveria consultar o artista para saber se sua obra tem uma data de expiração; coletar o maior número possível de informações sobre a obra visando esclarecer se ela pode ser montada em dois locais diferentes, ser distribuída livremente e ser recriada em diferentes escalas (por exemplo, num monitor de 15” ou num vídeo wall). Outro ponto refere-se à documentação sobre estas obras e sua construção - um esboço, notas, fotos etc. -, cruciais para sua re-criação futura. Esta documentação deverá estar à disposição de todos aqueles que queiram remontar a obra e o museu terá um novo papel: dar sua aprovação – ou desaprovação – aos trabalhos recriados a partir das informações fornecidas. (IPPOLITO, 1998)

Helio Oiticica
Museu de Arte Contemporânea de Barcelona - CC3-Maileryn. Quasi Cinema
(Block-Experiment in Cosmococa-Program in Progress) - Hélio Oiticica e Neville de Almeida.  -  Foto: Durval Lara (dezembro de 2004)


O plano dos propósitos ou finalidades

É possível encontrar respostas para as inúmeras questões sem sair do plano funcional, porém elas nada mais serão do que ‘soluções técnicas’. Acreditar que tal forma de agir – a atuação apenas no plano funcional – possa levar os museus a enfrentar as questões contemporâneas pressupõe uma visão ingênua e que acredita numa neutralidade possível. Por trás dessa aparente neutralidade existem propósitos, explícitos ou não, que irão nortear as respostas. O mito da neutralidade – das nações, dos espaços e das idéias - vem de um período onde a busca pela objetividade e a verdade absoluta perpassava o jornalismo, a ciência e até mesmo algumas manifestações artísticas. Para Teixeira Coelho, “este procedimento epistemológico da modernidade nunca foi puro, ingênuo, nem radical; era um procedimento engajado e comprometido, porque não interessava à teoria moderna investigar o processo de formação do conhecimento. Pelo contrário, existia a tentativa de investigar um processo de conhecimento que levasse à verdade” (s/d).

As funções do museu seguirão diferentes trilhas dependendo de como forem definidos seus propósitos. É no plano dos propósitos que se colocam as questões relativas à política cultural da instituição. O que o museu representa – ou deve representar - para a comunidade onde se insere? O museu deve ser visto como um centro de disseminação de informações, como um meio de comunicação ou é uma ‘outra coisa’? Como o museu se relaciona com seus vários públicos? Como o museu deve relacionar-se com o artista e a obra contemporânea? A instituição museu terá que ser totalmente repensada em seus propósitos, reconceituada, redesenhada e talvez até, em alguns casos, descartada enquanto unidade física e arquitetônica tal como hoje a conhecemos.

O privilégio da conservação sobre a fruição (ou de uma função sobre um propósito), é um aspecto que caracteriza o museu desde o século XIX e ainda se encontra presente nos dias atuais. O processo de reificação que leva o museu a encarar a obra como sendo o objeto na sua materialidade, coloca a preservação do ‘objeto único’ acima da fruição e da experiência, revive o conceito de aura, do sagrado, daquilo que é apenas para se ver à distância e com respeito. A rigidez que se impõe, impossibilitando qualquer ação que não seja ‘adequada’, tolhendo o percurso de qualquer caminho que não esteja previsto e impedindo qualquer comportamento que não seja o de contemplação, mostra o quanto o museu precisa caminhar e repensar suas relações com as obras contemporâneas e com o público. Por que não criar réplicas para manuseio quando as obras solicitam uma participação do público? Desta forma não se subtrai a possibilidade lúdica da obra e a experiência do público. Mas para que isto ocorra é preciso que o museu se veja não mais como um reino do olhar e da contemplação, mas um espaço de experiências onde o “momento-arte” possa ocorrer. “O momento-arte é (re)criado quando há uma interação entre a proposta-arte da artista, a disposição/presença (estética) dos objetos e a participação efetiva (consciente/intelectual) do usuário (não mais observador)” (GROSSMANN, 2001: 25).

Porque os museus ainda assemelham-se às catedrais em sua suntuosidade e monumentalidade? Se antes isto estava vinculado à ostentação do poder – já que saber e poder sempre caminharam na mesma direção – não estaríamos hoje em condições ao menos de discutir esta interdependência? Num momento pós-modernista, a tendência é a busca da separação entre saber e poder: o saber não deriva do poder, o saber está à deriva em relação ao poder O poder não é meta, o que se busca é autonomia, que os hippies ensaiaram e que foi desfraldada como a grande bandeira inovadora de maio de 68 (TEIXEIRA COELHO, 2001:216).


1. Em 1946 o ICOM adotava a seguinte definição para o termo Museu:” The word "museums" includes all collections open to the public, of artistic, technical, scientific, historical or archaeological material, including zoos and botanical gardens, but excluding libraries, except in so far as they maintain permanent exhibition rooms.” Em 1956 ocorrem algumas mudanças:” The word of museum here denotes any permanent establishment, administered in the general interest, for the purpose of preserving, studying, enhancing by various means and, in particular, of exhibiting to the public for its delectation and instruction groups of objects and specimens of cultural value: artistic, historical, scientific and technological collections, botanical and zoological gardens and aquariums. Public libraries and public archival institutions maintaining permanent exhibition rooms shall be considered to be museums.” Em 1961 altera novamente sua visão de Museu, que perdura até nossos dias (2001): “ICOM shall recognise as a museum any permanent institution which conserves and displays, for purposes of a study, education and enjoyment, collections of objects of cultural or scientific significance.” http://icom.museum/hist_def_eng.html, consultado dem 8 de abril de 2004.
2. Em 1974: “A museum is a non-profit making, permanent institution in the service of society and of its development, and open to the public, which acquires, conserves, researches, communicates and exhibits, for purposes of study, education and enjoyment, material evidence of people and their environment “
E em 2001, última atualização do conceito de Museu, o ICOM acresenta: “cultural centres and other entities that facilitate the preservation, continuation and management of tangible or intangible heritage resources (living heritage and digital creative activity);” http://icom.museum/hist_def_eng.html, consultado dem 8 de abril de 2004.
3. Dan Flavin's fluorescent light installations are a case in point. Flavin deliberately chose only the eight or so standard colors of fluorescent tubing readily available. When the Guggenheim and Dia Center for the Arts mounted a retrospective of his work a few years ago, the curators discovered that one of those colors, the deep cherry red, had been discontinued because exposure to a toxic pigment coating the interior of the tube presented a workplace hazard to its manufacturers. As a consequence, the collectors of Flavin's work have had to buy up all the cherry red bulbs they could find to store them for use in future shows. What an irony that works based on the seemingly infinite reproduceability of industrial fabrication are now stored in the Guggenheim's warehouse like so many Kandinskys and Picassos!

 

REFERÊNCIAS:


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Durval de Lara Filho é designer, arquiteto e mestre pela ECA/USP.

 

Em Perspectivas para o museu no século XXI, Ricardo Basbaum ataca algumas das mesmas questões mas com foco direto na relação entre o trabalho de arte e o Museu, enquanto Carola Barrios examina soluções e impasses da arquitetura moderna em Transcrições arquitetônicas: Niemeyer e Villanueva em diálogo museal.