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Museu, Identidade e Reflexão

Relato crítico do 1º dia (Daniel Rangel e Solange Farkas), por Ludmila Britto

A Bahia é repleta de museus. Principalmente na sua capital, Salvador, tais instituições apresentam e guardam acervos históricos e religiosos em sua maioria. Não é de se estranhar, já que Salvador foi a primeira capital de um país com mais de quinhentos anos de história – isso se tomarmos como marco a chegada dos portugueses em terras brasileiras, pois, se formos considerar nosso passado pré-cabralino, são milhares de anos de história. Somente no Centro Histórico - Pelourinho – encontramos centenas de  casarões históricos tombados (assim como o Centro Histórico em sua totalidade, patrimônio da humanidade  da UNESCO). São esses casarões, espalhados pela cidade, que sediam a maioria de nossos museus. São antigos palácios, residências e engenhos da época da exploração da cana de açúcar, como é o caso do Solar do Unhão, onde funciona o Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM – desde 1960. Em seu conjunto arquitetônico podemos encontrar uma capela, um cais privativo, aqueduto, chafariz, senzala e um alambique com tanques.

Diante de tal carga histórica, como pensar, num contexto local, a arte contemporânea? Como transformar em museus – com estruturas adequadas de salvaguarda, climatização, etc. - tais edificações, em sua maioria tombadas, e que, como tais, não podem receber um único prego em suas paredes? Esses foram alguns dos questionamentos que passaram pela minha cabeça ao assistir as palestras de Daniel Rangel (à frente da DIMUS – Diretoria de Museus) e Solange Farkas (atual diretora do MAM - Museu de Arte Moderna da Bahia).

Antes da gestão de Solange Farkas, há cerca de 4 anos atrás, ao percorrerem as instalações do MAM, os visitantes tinham a opção de jantar em um restaurante de comidas típicas baianas, que funcionava no prédio da antiga senzala do Solar do Unhão. Lá, onde os escravos dormiam, se alimentavam, e na maioria das vezes, eram maltratados, vivendo em condições sub-humanas, os visitantes locais e turistas podiam agora vislumbrar espetáculos de capoeira e se deliciar com as iguarias locais, em uma ironia do destino. A mesma dança/luta, sinônimo de resistência racial e cultural, era naquele momento apresentada de forma folclórica e caricata. Uma das primeiras providências de Farkas foi fechar o tal restaurante, com a intenção de aumentar o espaço expositivo do MAM, fundando a Galeria dos Arcos. Essa atitude, ao meu ver, iniciou uma série de reformulações estruturais nesse museu, – um dos centros culturais mais prestigiados de Salvador -  que marcaram definitivamente a cena artística e institucional local.

Um dos pontos focados na palestra de Farkas foi justamente essa necessidade de reestruturação do MAM, que se iniciou em 2007 junto com Daniel Rangel, quando este era seu assessor. Descobrir o número exato de obras existentes no acervo do museu foi um dos primeiros de tantos desafios que possibilitou a publicação de um catálogo detalhado, que mostra todas as obras devidamente fotografadas. Outro desafio, atualmente, é dar continuidade às reformas espaciais/conceituais que tanto enriqueceram à acessibilidade ao MAM. A reserva técnica, por exemplo, necessita ser reformulada urgentemente, devido à sua proximidade com o mar, onde as obras ficam expostas aos efeitos da salinidade, sol e vento. Certa vez, todo o acervo lá armazenado teve que ser removido às pressas para outra instituição, por conta de uma inundação inesperada.

 

Solar do Unhão 

Solar do Unhão (fonte: www.mam.ba.gov.br)

 

Daniel Rangel, durante sua fala, explicou as diretrizes que nortearam as mudanças ocorridas no MAM, que serviram de modelo/piloto para a reestruturação dos outros museus ligados ao Instituto do Patrimônio Artístico Cultural da Bahia – IPAC -  e à DIMUS. Tais mudanças têm como cerne uma gestão horizontalizada, onde as funções são subdivididas em núcleos de produção, comunicação, arte-educação, núcleo museológico e administrativo. Dessa forma, foi possível fazer uma atualização conceitual e política nos museus do Estado – lembrando que as instituições do “interior” apresentam diferenças gritantes em relação aquelas da capital – , com profissionais pensando os espaços, diagnosticando suas carências e potencialidades, pensando no papel social e relacional do museu em uma esfera mais ampla. Tal gestão iniciada no MAM contrasta com a anterior, extremamente verticalizada e centralizadora. Poucos tinham acesso às informações desse importante centro cultural, como também poucos artistas - principalmente os locais -   tinham o privilégio de usufruir desse espaço quase “sagrado” e “intocável” até bem pouco tempo atrás.

Ao reinaugurar o Palácio da Aclamação, após longo processo de restauração, Rangel trouxe para Salvador a exposição Faustus, do artista visual paraibano José Rufino. Rufino criou um site specific, um esqueleto gigante, feito de gesso e mobiliário colonial, personagem que teria sido o primeiro morador do Palácio, num resgate da memória do local. Nada mais propício para um artista que trabalha os temas memória e identidade. Foi assim que a arte contemporânea convidou os visitantes do Palácio recém restaurado a refletirem sobre a história do lugar. É assim que Daniel Rangel convida a todos a refletirem sobre Museu e Contemporaneidade.

Além das reformulações necessárias dentro das instituições museais frente às demandas da arte contemporânea, acredito que esta deve ser pensada como um campo fértil de experimentações sociais, como um espaço parcialmente poupado à uniformização dos comportamentos.[1] Faz-se necessário pensar o museu não como um espaço estático, mas sim em constante transformação e aberto a mudanças, um local de relações acima de tudo. Dessa forma, o caráter problematizador da arte contemporânea pode ampliar e potencializar os diálogos possíveis com a história/identidade de cada espaço/instituição, que deixa de ser um “armazém” de obras e objetos, tornando-se um local singular, irradiador de reflexão e pensamento crítico.


[1]    BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.13.