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Entre Segall e Kandinsky. Entre Fotografia e Pintura – relato das mesas II e III.

Relato por Julia Buenaventura

Ciclo de Debates Museu Lasar Segall 50 Anos. 1967 – 2017

 

Mesa II: Arquivo de documentos com a participação de: Vera D´Horta, Ana Magalhaes e Daniel Rincón (Mediador); e da Mesa III: Acervo fotográfico com a participação de Helouise Costa, Rubens Fernandes e Rosa Esteves (mediadora).

Relato por Julia Buenaventura

 

Após escutar as mesas de conversa acontecidas no dia 4 de outubro de 2017, em comemoração dos 50 anos do Museu Lasar Segall, fica claro que o acervo da instituição é uma mina de ouro, um poço de documentos cuja singular riqueza seria uma fonte de estudo para futuros pesquisadores.

Porém, também fica claro a debilidade do interesse por parte desses novos pesquisadores, situação perceptível na frente de um auditório praticamente vazio. Falta de quórum que leva a vários questionamentos sobre a apatia circundante. Em palavras de Vera D´Horta, encarregada do acervo do Museu durante mais de vinte anos: “Eu não vejo futuro promissor. A própria instituição corre risco. Todos os que começaram a trabalhar lá no começo de 80, estão se aposentando ou já se aposentaram. E se o Ministério de Cultura não fizer algo, não há como continuar. Os setores do museu estão se esvaziando.”.

Vários dos presentes nesta comemoração estiveram no festejo dos 25 anos do Museu, mas é evidente que o entusiasmo não deve ser o mesmo. Assim, dois fatos resultam contraditórios: de um lado, a apresentação de pesquisas extraordinárias; de outro, o marasmo geral na frente dessas pesquisas. Em resumo, a pergunta que vem na minha mente é: o que está acontecendo para nós, intelectuais e acadêmicos, estarmos ficando com os auditórios vazios. Mas deixo essa questão em aberto e vou diretamente às mesas, que tiveram momentos belíssimos.

 

Mesa II: Arquivo de Documentos.

Participantes: Vera D´Horta, Ana Magalhaes e Daniel Rincón (Mediador)

Magalhães começou sua fala apresentando o tema de sua pesquisa: o núcleo italiano no acervo do MAC-USP, uma série de obras adquiridas por Matarazzo para o museu durante sua época de colecionador. Dois assuntos foram apontados pela pesquisadora. Primeiro, o problema com o arquivo do mesmo MAC, pois este poderia ser definido a modo de uma entidade tricéfala ou tripartida – tal como a primeira obra a ganhar uma Bienal –. Tudo porque, ao ser conformado o Museu de Arte Contemporânea em uma estranha assembleia de 1963, uma parte do arquivo foi enviada para o novo museu (MAC), outra ficou com o antigo MAM e uma terceira foi à Fundação Bienal. Assim, desde 1963, há uma espécie de caos nos documentos, o que causa dificuldades na pesquisa. O segundo assunto, assinalado por Magalhães, é bem interessante e refere a nova febre pelo arquivo que vive nosso presente. Disse Magalhães: “De uma década para cá, isto (o arquivo) tem se convertido em um campo importante, até com especialização curatorial”. Aquisição de arquivos que está colocando documentos históricos num campo intermédio, pois sendo documentos são tratados como originais ou obras de arte. Assim, se antes conseguir um catálogo de uma exposição clássica não suponha uma grande dificuldade, agora pode virar uma verdadeira caça. O caso trazido pela palestrante é claro: o catálogo da exposição “Cubismo e arte abstrato” organizada por Alfred Barr no MoMA na década de 30, catálogo que, faz 15 anos, podia ser adquirido ao preço de um livro normal, enquanto hoje é impossível encontra-lo por menos de 700 dólares.

Nesse contexto, Magalhães citou várias compras memoráveis de arquivos. A aquisição do acervo do Grupo Fluxus pelo MoMA; a compra do arquivo fotográfico e a biblioteca de Aby Warburg pela Universidade de Londres, que já conta com curadorias do reputado filósofo Didi-Huberman. E a aquisição pelo Instituto de Pesquisa Getty do arquivo e a biblioteca de Harald Zeeman, curador da clássica mostra “Quando as atitudes viram forma” (1969) – e aqui Ana observou que era importante para os pesquisadores que aplicassem a uma bolsa do Getty ter como foco uma dessas coleções especiais, pois, disse a palestrante, “os projetos de pesquisa são modos de qualificar essas coleções”.

Especificamente sobre o MAC-USP, Magalhaes assinalou que o acervo estava dividido em três grandes núcleos: o artístico – as obras –, a biblioteca e os documentos. Divisão que funciona bem, mas que como toda categorização encontra alguns problemas quando tem de organizar as coisas do mundo. O caso particular de onde colocar a coleção de cartazes de cinema polonês de Walter Zanini é um claro exemplo disto. Onde guardar esses cartazes? Na biblioteca, na condição de obras de arte ou nos documentos históricos? O problema, como o leitor compreende, já não é do lugar em si, mas de como são compreendidos, categorizados, os diferentes itens do acervo e, mais ainda, como fazer o caminho mais simples para qualquer pesquisador chegar  neles.

Ana Magalhães fechou sua intervenção comentando a tendência de alguns artistas contemporâneos de ter o arquivo como matéria prima da obra plástica. Campo em que especificamente referiu o caso de Mabe Bethônico ou a mesma exposição do arquivo da Fundação, na 28a Bienal, curada por Ivo Mesquita sob o nome “Em vivo contato” (2008).

Dai tomou a palavra Vera D´Horta, professora e pesquisadora que trabalhou com o arquivo do Museu Lasar Segall desde começo da década de 80 e que, recentemente, passou o seu cargo para Daniel Rincón, mediador da mesa. A intervenção de Vera seguiu um tom mais pessoal, de alguém que está falando da própria vida.

Vera se vinculou à instituição quando Maurício Segall, filho do pintor, decidiu abrir as gavetas, e então começam a aparecer tesouros: correspondência com Kandinsky e com Otto Dix, fotografias e documentos. “Era como se fosse um gabinete de maravilhas”, afirma a pesquisadora. O primeiro a ser feito foi um inventário que deu na conta de uns 1000 documentos, agrupados em: correspondência, documentos pessoais e negócios, cadernos de anotações, um caderno que Jenny – a viúva – fez após a morte de Segall, recolhendo informações sobre os primeiros anos do pintor. De igual forma, está a coleção de rótulos de charuto em que Segall escrevia comentários sobre o gosto e qualidade de cada um, e um pergaminho que o pai de Segall, que era estudioso da Torá, fez em homenagem a sua esposa morta, onde gravou motivos da iconografia judaica. Também está um cartão postal, feito com uma litografia original de Paul Klee, enviada pelo mesmo Klee y Kandinsky a Segall. Uma foto do navio em que Segall chegou no Brasil, uma carta erótica a sua futura esposa e, entre toda a papelada, um documento quase escondido no final de um baú: o atestado de circuncisão de Segall, pelo qual sabemos que o pintor nasceu em 1889 e não em 1891, como ele se empenhava em afirmar.  De fato, no evento muitos ficaram surpresos com essa informação, pois em livros, catálogos e até na mesma Wikipedia, continua estando a antiga data. A pergunta que me surge é, porque Segall tirava dois anos de sua idade? Seria numa atitude como a de Frida que, nascida em 1907, gostava de afirmar ter nascido no ano 10, isto é, junto com a Revolução Mexicana.

Vera D´Horta terminou sua intervenção lendo passagens de uma correspondência reveladora, acontecida entre 1938 e 1939 entre Segall e Kandinsky. Então Kandinsky é completamente otimista e acha que a guerra está longe de acontecer, enquanto Segall vê a guerra ficar cada vez mais perto. Quando a guerra explode, Kandinsky escreve:

“Nunca deixo de me alegrar por não ser político, e sim pintor, assim, eu fecho a porta de meu atelier e o mundo, ou o que eles hoje chamam de mundo, desaparece. Muito mais importante do que Checoslováquia, é a questão de saber se este azul está bem colocado com aquele marrom, se a extensão e direção da línea combinam totalmente, se os pesos foram colocados de maneira feliz”.

Na frente do qual, Segall responde:

“O senhor, caro Kandinsky, é o mais feliz, o senhor tem força para se fechar ao mundo exterior e, no seu próprio mundo, seu atelier, dedicar-se com tranquilidade ao seu trabalho e considerar os problemas da arte como mais importantes que os fatos do mundo de hoje, com os quais todos, querendo ou não, estamos estreitamente ligados, e dos quais somos infelizmente como pessoas e como artistas completamente dependentes”.

O figurativo, social, vê o mundo, enquanto o abstrato, autónomo, está abstraído de suas mágoas e quebrantos. Qual dos dois posicionamentos escolher? Mais ainda, frente a um Brasil – e um planeta – cada vez menos tolerante e mais virado à uma rigidez ideológica, pelo demais, e como toda rigidez, bastante estúpida. No panorama de hoje, Segall – e talvez seu pessimismo – é um contemporâneo. Argumento do professor Rubens Fernandes, na seguinte mesa de conversa.

 

Mesa III: Acervo fotográfico.

Participantes: Helouise Costa, Rubens Fernandes e Rosa Esteves (mediadora).

É possível afirmar que as temáticas de Rubens Fernandes e Helouise Costa deram em uma dupla afortunada, pois enquanto o primeiro abordou o arquivo de fotos de Segall desde as relações entre fotografia e pintura, a segunda trabalhou o Segall fotografado a partir da câmera de Hildegard Rosenthal. Tudo isto somado a presença de Rosa Esteves na mesa, como mediadora, pois ela tem trabalhado na sistematização do arquivo do Museu desde 1981.

A intervenção de Rubens Fernandes foi de uma profundidade e beleza singulares. O depoimento de um pesquisador, um acadêmico, que não separa arte e vida, estudos e mundo, mas que muito pelo contrário, vai procurando signos escondidos no cotidiano.

Fernandes, que esteve faz 25 anos na comemoração dos 25 anos do Museu, começou sua fala contando como, certa vez, foi chamado por um vendedor de autógrafos e curiosidades. O vendedor que costumava ficar pelo MASP, estava enfermo, assim, Fernandes decidiu comprar várias coisas mais por pena que por interesse, entre elas, um autografo de Lasar Segall. Porém, quando abriu o envelope, percebeu que não era só uma assinatura, muito pelo contrário, era uma fatura de venda de uma obra na exposição de Segall em 1913. Documento que Fernandes doou ao arquivo de Museu. “Foi muito interessante como aquilo caiu nas minhas mãos”, comentou Fernandes, para concluir: “não dá para compreender algumas coisas”.

Ter um recibo de uma das primeiras vendas de Segall no Brasil – se é que não é a primeira – é algo de suma importância, pois mais do que objeto de culto, empresta ao pesquisador dados sobre o valor, o médio, como se desenvolviam as trocas, em fim, uma série de minúcias que constituem a matéria de qualquer pesquisa.

Dai, Rubens passou a contar outra história.

Desta vez, o palestrante está na praça Benedito Calixto, um sábado na manhã, quando encontra uma imagem que chama sua atenção pela Casa Fotográfica Zanella, mais do que pela mulher retratada. Então decide adquiri-la. Tempo depois, vendo um catálogo no Museu, percebe que a retratada é Berta Singerman, famosa cantora nascida na Argentina, mas de pais russos, quem causou verdadeira sensação no Brasil, na década de 30. De fato, foi retratada ou comentada por Flávio de Carvalho, Ismael Nery, Jorge de Lima, Mario de Andrade, Carlos Drumond de Andrade e o próprio Lasar Segall.

Neste último caso, em uma pintura que tem estreita relação com a fotografia adquirida por Fernandes um sábado de manha na praça Benedito Calixto. Dai, o palestrante começou a expor as complexas relações entre fotografia e pintura, através de uma série de casos que foram desde Picasso até Courbet. Mais adiante, sobre o quadro Menino com Cavalo-de-pau de 1929, Fernandes afirmou: “Vemos claramente que Segall transforma um snapshot muito provavelmente de sua autoria, centrado na relação de luz e sombra, num elaborado arranjo de linhas e cor”. De igual forma, as relações estabelecidas entre o Bananal, uma das obras emblemáticas da arte brasileira, e um retrato de Olegario, velho preto de fazenda do interior, foram agudas. É preciso perceber, explicou Fernandes, “a presença da fotografia como parte do processo criativo. Seja como referência para novas experiências visuais, seja como mola para novas experiências e sínteses. A fotografia é indissociável de Segall, assim como o desenho e a gravura”.

Eu não posso transcrever aqui tudo o que foi dito, mas o que eu apreendi com a exposição dessas relações fotografia e pintura foi enorme. De fato, me lembrou muito os estudos de Antonio Berni, na Argentina, pela mesma década de 1930, para fazer o quadro Manifestação, a partir do emprego da fotografia. Em resumo, o que Rubens Fernandes expôs através de exemplos concretos, foi como o arquivo não é um simples cofre de lembranças, mas uma fonte extremamente rica para percorrer a intrincada trama de relações que envolve qualquer obra de arte.

A continuação, Fernandes trouxe na sua fala o quadro Navio de Emigrantes relacionando ele com algumas imagens atuais procuradas na internet e assinalando as palavras do mesmo Mário de Andrade: “Os seres representados em Navio de emigrantes são de todas as nacionalidades.”.

É com essa obra que o pesquisador fechou sua intervenção na mesa:

O quadro de Segall, Emigrantes, evidencia um senso de escala incomum para a época em que foi realizado. A tremenda experiência ao ver esse quadro hoje, cuja imagem principal advém de uma fotografia, reforça que essa pintura não tem nada de passado, é arte contemporânea e, entre aspas, não há nada de histórico nela, já que a imagem ainda nos fala desse mundo deste momento, onde as ondas migratórias estão em evidencia”.

Tal como comentei no começo desde segmento, Helouise Costa, do MAC-USP, focou sua fala, na relação entre a fotografa Hildegard Rosenthal e Lasar Segall. Rosenthal visitava o ateliê de Segall para fotografar o pintor e suas pinturas, isto com dois objetivos. O primeiro, formar essa imagem pública tão importante para o artista desde o século XIX; o segundo, divulgar as obras tanto nos jornais, quanto em pequenas postais que eram entregues pelo pintor aos seus visitantes.

Dai, Costa explicou a composição de algumas fotos. Como Hildegard arrumava o cenário, e fazia de Segall parte da composição da imagem. Assunto que resulta claro em duas fotografias analisadas pela pesquisadora, nas que Segall está justamente na frente do quadro Navio de emigrantes. Na primeira imagem, Segall está com um pincel comprido, fazendo arranjos no quadro, o curioso é como as linhas estruturais da pintura estabelecem um jogo com o pincel e com a mesma cabeça de Segall, que fica sendo “assinalada” pelos diagonais da tela. A foto é extraordinária, mais ainda porque da notícia dessas dimensões, dessa escala, da pintura que foi assinalada parágrafos atrás. Na segunda imagem, Segall se encontra no vértice das paredes do ateliê, entre o estudo para o quadro e o quadro, então é possível perceber a preparação da obra, os desenhos que antecedem a pintura. De igual forma, Helouise fez questão de nos fazer ver a mesa, como esta foi arrumada para conseguir uma distribuição espacial balanceada. Em resumo, através desta palestra percebemos uma espécie de composição da composição, de imagem da imagem. Como um teatro dentro do teatro, ao modo de uma Calderón, ao modo de um Shakespeare.

Finalmente, Helouise trouxe um fragmento de correspondência entre Stefan Zweig e Lasar Segall, então, o primeiro tem aconselhado ao pintor fazer um quadro com um motivo de emigrantes, na frente do que Segall responde:

Justamente, há um ano e meio, trabalho, naturalmente com interrupções, num grande quadro chamado Navio de Emigrantes, pelas fotos em anexo, o senhor pode ter uma ideia da concepção e da composição, naturalmente não com o mesmo efeito que a pintura.”.

É preciso dizer que Rosenthal parou de fotografar em 1948, poucos anos antes da morte de Segall. Assim, sua obra passou por uma etapa de esquecimento, e só começou a ser divulgada até 1974, quando Walter Zanini, então diretor do MAC-USP, organizou uma retrospectiva de suas fotos. Em 1996, o arquivo da fotógrafa foi comprado pelo Instituto Moreira Salles.

Uma das perguntas que lançou Helouise durante sua intervenção, foi o porque não era possível encontrar recibos do trabalho que Hildegard Rosenthal emprestou a Lasar Segall. Questão que, no final da mesa, foi respondida pela mesma filha da fotografa:

“Nunca foi encontrado um recibo, porque esse trabalho nunca foi pago. Ele introduziu a ela na vida artística de São Paulo, logo ela fez só por gratidão todas essas fotos. Uma amizade mesmo. Então, vocês não vão achar recibo, não.”.

Hildegard chegou em São Paulo em 1937, com poucas coisas e uma carta, em que era apresentada a Lasar Segall. Assim, foi ele que abriu as portas da sociedade paulista e arrumou contatos, isto é emprego, para ela. Dai, não existem recibos das suas fotografias do pintor, pois era uma outra troca.

Porém, estas respostas, estes assuntos, só podem ser conhecidos ou descobertos no cruzamento de fontes, no diálogo com o arquivo, mas também entre as pessoas, na verdade, o verdadeiro arquivo se faz na memória e na conversa entre os pesquisadores. Dai a minha preocupação pela falta de estudantes no evento, de um novo público que venha a pôr suas memórias nesse conhecimento. Pois, repito, o verdadeiro arquivo se constitui no diálogo, na conversa, no cruzamento de fontes e de histórias; em resumo, o arquivo vivo está em nossas relações humanas. O resto é fantasmagoria e culto ao documento.