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Relato: Encontro 2 - Bruce Clarke, o Homem em Pé

Por Lais Myrrha - Junho de 2015 Exposição Africa Africans – Encontro Internacional com Artistas

Bruce Clarke nasceu em Londres numa família recém imigrada da África do Sul. É artista visual, fotógrafo e ativista político tendo se envolvido com a luta pelo fim do Apartheid e com o genocídio em Ruanda, que em 1994 vitimou milhares de pessoas. O projeto apresentado pelo artista, chamado Homens em pé, foi desenvolvido junto às vítimas do genocídio e à entidades dedicadas a apoiar essas pessoas para as celebrações entorno dos vintes anos do massacre.

O artista e ativista, antes de falar propriamente sobre o projeto Homens em pé começou fazendo uma distinção bastante lúcida entre suas atividades como artista e  como ativista. Sem deixar de reconhecer uma permeabilidade entre essas duas instâncias, marca claramente os limites e os problemas que podem decorrer do encontro entre elas.  Neste relato não pretendo me ater propriamente ao projeto Homens em pé, mas à alguns pontos específicos da apresentação de Clarke que dizem respeito à construção de lugares e de atos de memória e os discursos que isso tece e ao mesmo tempo envolve.

Como ativista político, conta que vivia na França durante os três ou quatro anos anteriores ao massacre e atuou no sentido de conscientizar a população da iminência desse acontecimento, para o qual as autoridades francesas fizeram vista grossa mesmo sabendo que genocídio era algo bastante plausível de acontecer (falava-se, naquela momento, de uma solução final). Após o massacre foi à Ruanda para fazer um trabalho de fotojornalismo e acabou sendo convidado para desenvolver um primeiro projeto artístico que ajudasse ao sobreviventes  a construir lugares de memória. O  artista apontou para a importância do processo e do contato efetivo com essas pessoas para que o memorial tivesse força suficiente para ajudá-los a começar o trabalho de luto. Assim foi construído O jardim da memória. Segundo Clarke, mais importante do que o aspecto material/visível desse memorial foi o ato simbólico e ritualístico envolvido na sua configuração: durante dez anos, no dia dedicado à rememoração do genocídio (sete de abril), cada um dos sobreviventes, deveria depositar, um a um, uma única pedra destinada a simbolizar entes queridos mortos durante o massacre, dos quais, muitas das vezes, não restava nenhum vestígio material que os lembrasse, que comprovasse que um dia tinham existido. Assim, em O jardim da memória, o que está em jogo são atos individuais de memória que, ao repetirem um mesmo gesto, inscrevem cada uma dessas memórias particulares numa mesma coletividade que realiza um trabalho de luto partilhado e funda, ao mesmo tempo, um lugar de memória.

Me lembro de ter lido, não sei bem onde, sobre um projeto de Christian Boltanski  para realização de um memorial para o holocausto judeu durante a segunda guerra mundial. Consistiria em um púlpito localizado em uma praça (não me lembro mais se em Viena ou Berlim) onde estaria disponível a lista com os nomes das vítimas do holocausto. Durante 24 horas por dias, todos os dias, voluntários deveriam revezar-se de 15 em 15 minutos lendo esses nomes em voz alta. Segundo o artista, quando as pessoas não mais se interessassem em manter o memorial vivo, e com isso a memória que lhe concerne, ele desapareceria. Se bem me recordo esse projeto data do final dos anos de 1990 /começo dos anos 2000.

Embora nunca realizado, a ideia contida nesse projeto vem de encontro e ajuda a pensar, sob muitos aspectos, sobre o “Jardim da memória”. O primeiro deles seria que em ambos há a instauração de um ritual comum por meio do qual se funda e constrói um lugar de e para a memória. Nem um dos dois projetos prevê ou objetiva ser um monumento, ambos destacam o ato de rememoração como aquilo que funda, dá significado e mantem vivo os lugares da memória. Outro aspecto é que ambas as propostas tratam de histórias de genocídios. Mas, enquanto aquele cometido contra o povo judeu tornou-se, por diversas razões a epítome das atrocidades e crimes cometidos contra a humanidade durante o século XX e do qual já se tem distância suficiente para seguir à diante, o de Ruanda ainda é ferida aberta mal contada e noticiada pela imprensa internacional.

É fácil identificar o uso de pedras para simbolizar a memória dos mortos, com o costume judaico de depositar uma pedra sobre o túmulo como um ato de respeito ao falecido que tem por função marcar visivelmente o lugar de sepultamento evitando assim que os mortos sejam esquecidos.  Embora as pedras utilizadas no Jardim da Memória sejam bem maiores que as comumente usadas no matzeivá, há um gesto comum que contamina uma e outra história, criando layers que projetam uma sobre a outra. Mesmo sabendo que o Jardim da memória foi um projeto concebido coletivamente, que o costume de usar pedras para marcar lugares de interesse seja ancestral e ainda que essa relação não seja intencional, não há como deixarmos de entrever tal conexão. Sobretudo se lembrarmos do início da fala de Bruce Clarke em que ele diz que antes do genocídio em Ruanda já se falava, ao pé da letra, em uma solução final.

Contudo, tal associação se dá mais de modo espectral do que como uma construção discursiva deliberada e nos faz indagar como e porque o processo de articulação desse genocídio que durou pelo menos 35 anos, segundo Clarke, não foi interrompido. Em 1993, um ano antes do massacre, as salas de cinema  foram inundadas de lágrimas vertidas pelas plateias que assistiam ao filme A lista de Schindler. Não fosse pelo trabalho do artista chileno Alfred Jaar, eu talvez não soubesse que em 1994, a Newsweek entre 06 de abril e 04 de julho, período que durou o massacre em Ruanda, não deu uma matéria de capa sequer sobre o assunto. A primeira capa desta revista dedicada ao genocídio em Ruanda foi publicada apenas em primeiro de agosto daquele ano.

Dentro dessa discursão sobre o papel da grande mídia e das artes na construção de imagens e de discursos que pretendem rememorar ou denunciar as tragédias acarretadas por esse tipo de evento traumático, Bruce Clarke critica abertamente o filme “Sal da Terra”. Segundo ele as imagens que Sebastião Salgado usa para mostrar o sofrimento causado pelo genocídio em Ruanda  são de um campo de refugiados no Congo onde vivem os assassinos que agora querem se fazer passar por vítima daquilo que eles mesmos criaram. Me pergunto como esse filme seria recebido em Ruanda, qual seria a reação dos sobreviventes ao ver seus algozes retratados como vítimas. Depois refaço a pergunta: A quem essa memória fabricada por Sebastião Salgado do sofrimento pós-massacre se endereça? Certamente não às vítimas. E essa é uma das perguntas, sejamos artistas, ativistas ou ambos, que nunca devemos deixar de nos fazer quando resolvermos adentrar o campo da memória de eventos traumáticos. Bruce Clarke parece saber disso muito bem: o que incluir, o que excluir, a quem destinar os lugares e atos de memória.