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Artes do som: oposições

Rodolfo Vaz Valente

 

Havia uma lousa pequena, onde liam-se as apresentações que viriam. Primeiro experimentações sonoras, depois uma apresentação musical. A primeira a cargo do inglês Matt Lewis e do brasileiro Giuliano Obicci. A segunda com o escocês Chris Stout e o austríaco, radicado no Brasil, Thomas Röhrer. A organização do evento fora cuidadosa na nomenclatura, prevenindo mal-entendidos e possível escândalo por parte do público, em parte heterogêno e não especializado.

 

No entanto, tal oposição não parece ser ingênua nem mero capricho organizacional. A meus ouvidos, tal oposição entre a chamada sound art e a chamada música, que sob o aspecto propriamente sonoro gera uma segurança falsa e provisória, acaba por conformar de maneira inequívoca cada uma das propostas.

 

Matt Lewis parte de uma idéia cara às artes visuais contemporâneas: a interferência na cidade. No seu caso específico, escolheu interferir através do som. Após uma apresentação musical breve (ou seriam experimentações sonoras?), passou a discorrer sobre dois projetos em andamento. Um deles é o  Sonic Graffiti, que consiste em instalar dispositivos sonoros em muros da cidade, subvertendo de forma bastante original a idéia tradicional do grafite. Afinal, para ele, desde que a propaganda foi banida das ruas de São Paulo, ouve-se melhor a cidade. Em outro projeto, Mr. Shordy, a ser realizado em Londres, a idéia é interferir através da substituição da música tradicional dos carrinhos de sorvete da cidade.

 

Já Chris Stout e Thomas Röhrer partem de outra idéia, desta vez cara à música popular: a autenticidade do material sonoro e sua conseqüente valoração de acordo com a identificação de origens etnográficas diversas, no caso o quanto havia de brasileiro ou escocês em suas experimentações sonoras (mas não era uma apresentação musical?) ou, mais diretamente, o apontado embate entre o scottish fiddle e a rabeca brasileira, basicamente o mesmo instrumento aclimatado em tradições musicais distintas.

 

É interessante notar que os exemplos, aqui colocados desde o início em suposta oposição, carregam uma diferença que não é incomum nos campos específicos das artes visuais e da música: a valoração distinta entre conceito e técnica, esta entendida como o fazer artesanal envolvido na atividade artística (a partir daqui, lidamos com o perigo das generalizações).

 

No trabalho de Lewis, como que naturalmente para um sound artist, parece predominar o conceito, em detrimento da elaboração do material sonoro propriamente dito. No trabalho de Giuliano Orbici, que participa do projeto Performídia junto com Lewis e outros artistas, como Leonardo González da Colômbia, o peso conceitual parece ainda mais evidente. Defende-se as texturas decorrentes da baixa qualidade do material transmitido via Internet. “Baixa qualidade, “baixo materialismo”, “glitch” e “gambiarra” são idéias valorizadas, assim como a própria precariedade do meio. Busca-se assim “tornar sensível a ferramenta”. Assim, diversos vídeos são transmitidos simultaneamente em streaming, podendo ser combinados e equalizados livremente.

 

Há que se fazer aqui uma observação. Estamos assinalando uma pouca ênfase na técnica com que o material é tratado, que não deve ser confundida com a tecnologia envolvida. Nem sempre a tecnologia se converte em técnica, sendo muitas vezes incorporada como uma espécie de ready-made ao trabalho, sem que o artista tenha uma maior possibilidade de manipulação da ferramenta.

Já o trabalho de Stout e Röhrer, por estar dentro de certos moldes da música popular instrumental,  aparenta ser conceitualmente mais modesto. A “mistura de influências” geográfica ou etnicamente distintas tornou-se lugar comum nos releases da música pop nos anos 90 em diante, período em que a world music aparece como respiro comercial à endogenia da indústria musical anglo-centrada. No entanto, embora o conceito já esteja incorporado ao senso comum, ainda tem força por carregar a noção de identidade cultural e seu peso político-administrativo. Mas se conceito não prima pela originalidade, tecnicamente o trabalho é impecável, levando em conta a interpretação dos músicos  dentro de estilos pré-estabelecidos.

 

Há que se apontar, no entanto, mais um sinal de modéstia conceitual. Os músicos agem dentro de certos padrões melódico-harmônicos e rítmicos catalogados por tradições específicas. Pode-se dizer que agem dentro de estereótipos, por mais agradáveis aos ouvidos que estes estereótipos sejam. A especulação sobre ritmo, harmonia e timbre para muito além do senso comum não pode ter lugar, pois esse tipo de elaboração conceitual tende a chocar de frente com a idéia de autenticidade dos materias da qual esse tipo de trabalho invariavelmente parte.

 

Sob o aspecto dos estereótipos sonoros, podemos voltar ao início, quando Lewis apresentou suas experimentações sonoras em seu laptop, usando basicamente sonoridades de ondas quadradas e o material do Sonic Graffiti (samples de bem-te-vis e helicópteros tratados no computador). Embora o material sonoro fosse radicalmente distinto daquele da apresentação musical posterior, havia um aspecto recorrente: o uso de padrões rítmicos repetitivos. Se Stout e Röhrer utilizavam fórmulas rítmicas recorrentes, advindas da música popular e folclórica, Lewis utilizava seu similar mecânico: o loop, ou seja, a repetição cíclica de pequenos trechos (o que estimula a percepção de fórmulas rítmicas recorrentes). Não preciso aqui lembrar que as bases rítmicas da música comercial que se utiliza de baterias eletrônicas (e similares) se assentam exatamente sobre fragmentos colocados em loop. Se havíamos falado em oposição até agora, sob o aspecto da recorrência rítmica, propostas tão diferentes parecem ainda falar sobre assuntos bem parecidos.

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