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O artifício da história: IV conversa com objetos no Museu Afro Brasil

Conversas com Objetos, 4ª edição | 29 de outubro de 2016, sábado, 11h00 Museu Afro Brasil, instituição da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Organização: Goethe-Institut, em parceria com o espaço museológico e a Bienal de São Paulo. Coordenação da professora Claudia Mattos Avolese (Unicamp) e participação do escritor, crítico e curador Marcelo Rezende, do artista, curador e professor da PUC-SP Ayrson Heráclito, da artista israelense participante da 32ª Bienal de Artes de São Paulo Michal Helfman, da pesquisadora e historiadora Juliana Bevilacqua.

Por Julia Buenaventura

 

“Conversa com objetos” é uma série de eventos organizados pelo Goethe-Institut em diversas cidades do Brasil. As regras do jogo são claras. Primeiro, a obra eixo da discussão só é apresentada na chegada dos participantes, logo, ninguém pode preparar discursos com antecedência. Segundo, o auditório é organizado em círculos ao redor do objeto, de forma que tanto os convidados quanto o público, ficam olhando para o mesmo ponto: a obra. E, terceiro, os convidados só dispõem de cinco minutos para expor suas apreciações, depois, uma cadeira fica a disposição para as pessoas do público fazerem seus comentários, tendo o mesmo tempo que os especialistas.

 

Regras simples –impossibilidade de antecipar o discurso, organização circular do espaço e integração do público– que conseguem um objetivo específico: desarticular a hierarquia inerente às palestras acadêmicas.  Desarticulação que, nesta conversa particular, conseguiu estabelecer uma relação direta com o objeto a ser discutido, uma escultura em madeira, de um pai com o filho nas pernas, do artista baiano Agnaldo Manoel dos Santos (1926-1962)

Após a apresentação de Claudia Mattos, que enfatizou a tentativa do evento por fugir de uma história imperialista marcada pela cultura ocidental, tomou a palavra Marcelo Rezende. Rezende diz compreender o Museu Afro Brasil como um espaço do inconsciente brasileiro, um pequeno resumo dos traumas do país, para agregar: “se compreendermos o museu assim, podemos compreender a peça”, que seria uma espécie de imaginação antropológica ou surrealista. Para terminar, o crítico disse que, de qualquer forma, cada vez que vemos uma peça, a imaginação tem uns 50 por cento de responsabilidade na sua compreensão.

 

Ayrson Heráclito começou por afirmar que sempre, antes de entrar nesse museu, se dava a bênção, e lembrou que hoje era o aniversário de seu falecido pai, filho de Ogún. Com isso, Heráclito deixava claro um pertencimento à cultura que o museu envolve e, mais ainda, ao reconhecer o museu como uma lugar sagrado, dissolvia a separação moderna-ocidental entre arte e ritual, ou entre a obra de arte e o objeto sagrado. Assim, desde o começo Heráclito tomou uma posição específica em relação a essa história da arte ocidental e a suas categorizações. Em seguida, Ayrson Heráclito falou um pouco da trajetória de Agnaldo, afirmando que deve ser tirado do nicho de artista popular, para ser enxergado simplesmente como artista, sem motes ou denominações. Igualmente, o professor contou como a obra de Agnaldo foi primeiro reconhecida na África, onde paradoxalmente o escultor nunca esteve. Foi Pierre Verger, o fotógrafo e etnólogo franco-brasileiro, quem fez os contatos que possibilitaram enviar a obra do escultor à Bienal de Dakar, onde obteve o primeiro prêmio.

 

Em seguida Michal Helfman, artista de Israel que participa nesta edição da Bienal, tomou a palavra. A artista enfatizou como a obra dava conta de um momento universal: o pai com o filho nas pernas, apresentando um balanço entre os dois corpos. Michal também falou do material, a madeira, e sua condição orgânica, para finalmente fazer referência a Freud pela relação –sempre complexa– entre o pai e o filho.

 

Juliana Bevilacqua se apresentou como uma devota de Agnaldo e criticou o costume de associar o escultor com um trabalho inconsciente, assunto que acontecia –afirmou–  por se tratar de um artista negro e pobre. Juliana assinalou como Agnaldo não fazia nada de forma inconsciente, ressaltando que foi plenamente consciente no estudo da arte africana para resolver as suas peças. De igual forma, falou da participação do artista na IV Bienal e sua relação com Pierre Verger, mas criticou a eleição de Agnaldo para uma “conversa com objetos” e não com “obras de arte”. Assunto frente ao qual a coordenadora dos encontros Claudia Mattos respondeu que tinham decidido denominar todas as obras dessas conversas como “objetos”.

 

Com essa intervenção acabou a primeira roda dos convidados e a palavra foi dada ao público que participou com entusiasmo. O lugar estava lotado, muitos artistas, o curador da Bienal Jochen Volz, e várias pessoas do mesmo museu estavam presentes.

 

Mas antes de passar a essa segunda parte, vou assinalar o seguinte: a única dos convidados que falou especificamente da peça foi quem nada tinha a ver com a ela, Michal, a artista de Israel, ainda que logo recorresse ao Freud para deixar de olhar e discorrer sobre algo já sabido. Essa dificuldade de falar do objeto, de comentar aquilo que é visto sem passar por uma teoria prévia, seja histórica, antropológica ou estética, foi assinalada por Claudia, a coordenadora, que tomou o microfone para comentar que pelo menos 80 por cento do que tinha sido dito, girou em torno de Agnaldo e não da obra exposta.

 

Comentário prontamente respondido por Heráclito. É simples, disse, fosse Brâncussi não teríamos de explicar quem é o autor da peça. Dai, Rezende anotou que justamente o interessante desse exercício radicava na obrigação de “escapar à história da arte”.

 

De qualquer forma, é difícil escapar da história da arte pois ela, como já foi falado mil e uma vezes, é o relato do poder. De fato, o exercício de percorrer a história da arte consiste em seguir rosário de impérios, um após o outro. Assim o relato costuma começar em Roma, cujo passado são a Grécia e o Egito, e acabar nos Estados Unidos, cujo passado é a Europa toda. É por isso que nós continuamente nos sentimos sem passado, ou numa espécie de tangente da História.

 

Como ver esse “objeto” sem recorrer ao discurso sobre o passado e, com ele, a toda a hierarquia que o nosso presente envolve? Como ver o objeto nele mesmo? Mais ainda: é esse exercício possível?

 

O primeiro a intervir do público, Tiago, assinalou a densidade da madeira e a falta de arestas da obra, que tinha uma volumetria semelhante ao nosso próprio corpo, e agregou que o tamanho da peça fazia dela um objeto transportável e portanto vendível. Novo assunto que catalogaria ao Agnaldo como artesão, que é quem produz obras para vender. (Mas segundo isso, Damien Hirst não seria o maior artesão da história humana?).

 

Eu, que também intervim, basicamente assinalei que só de olhar o objeto, já sabia que tinha uma relação com a África, mas que não era uma escultura “primitiva” porque não resolvia suas formas unicamente por signos sintéticos, mas por soluções naturalistas, o que envolvia uma relação do artífice com Ocidente. Rosa, antropóloga, reparou nas orelhas desse pai: dois grandes círculos muito demarcados, e se perguntou se tinha algum significado, talvez uma preeminência da escuta sobre o visão. Isto porque uma das pessoas do público tinha apontado o olhar do pai em direção ao filho, enquanto os olhos de filho dirigiam-se para um lado.

 

Um participante que vinha da República Democrática do Congo assinalou que, quando entrou na sala, estava seguro que o objeto era da África, que só agora sabia que era uma obra brasileira, e logo após comentou que o pai tem a obrigação de olhar para o filho, ainda que o filho dirija seu olhar para um outro ponto. Imediatamente depois um jovem homem negro que se apresentou como banqueiro, falou que a conversa estava sendo uma experiência forte para ele, pois seu pai era evangélico e essa classe de imagens estavam proibidas na sua casa, de forma que sempre tinha percebido essa arte com um profundo incómodo. Esta conversa significava uma reconciliação. Mais ainda se lembrarmos que estávamos vendo um pai com um filho sobre suas pernas.

 

Uma outra pessoa se perguntou se para ser contemporâneo era necessário cortar a raiz. Questão que estava dirigida a comentários anteriores, especificamente um de Claudia, que tinha anotado como a chamada “arte contemporânea” não incluía nela obras da “tradição afro-brasileira”. Assunto instigante pois revelava –além de um problema de inclusão e exclusão–, como as denominações “contemporâneo” ou “primitivo” não tem nada a ver com a cronologia, com a sucessão, mas com o cânone que rege o ponto de vista de quem olha.

 

E quem olha sempre tem a ilusão de estar no futuro, sem perceber sua própria condição presente. Lembro de Diego Rivera pintando os indígenas mexicanos que lhe eram contemporâneos, como se fossem o passado de México, quando eram e continuam sendo o presente desse país (estou me referindo a esses murais de Rivera que costumam ser linhas cronológicas: de Montezuma a Marx). Assim, África pareceria ser o passado do Brasil, quando é uma condição presente, tanto no Brasil quanto no resto da América, e não falo de América Latina, estou me referindo ao continente todo, desde o Uruguai de Pedro Figari até o Mississipi de Mark Twain.

 

(Aliás, quando entrei na sala e vi o Professor Ayrson Heráclito, reparei em seus sapatos –peculiares, de couro branco–, e pensei que era um acadêmico de Barranquilla ou de Havana. Um segundo depois me dei conta que era da Bahia. E me perguntei como ou por que usam os mesmos sapatos? Há um fio que amarra o Caribe todo com esse Brasil da Bahia, uma corrente que se chama África, e que de forma alguma é um passado remoto, mas um presente comum.)

 

Em resumo, o que tínhamos nessa manhã no Museu Afro Brasil era uma discussão sobre o artifício da história, do tempo histórico que se apresenta como um corrente de fatos. Nesse contexto, uma afirmação de Michal foi chave: “talvez precisamos de outros termos, pois só conseguimos ver o que sabemos”.

 

Rafael, do público, tomou o microfone e descreveu algo que todos vimos mas ninguém mais anotou: o caráter fálico da escultura. Com efeito, quando entrei na sala, não vi um pai com um filho, vi um senhor com um falo enorme. Todos agradecemos Rafael a gentileza de assinalar isso que em nossa cultura é tão de difícil nomear, tanto assim que o tema jamais voltou ser abordado.

 

Para fechar a conversa, uma pesquisadora do museu, anunciou que parecia haver um erro, de nossa parte ou da catalogação da obra, pois a ficha técnica indicava se tratar de uma mãe com seu filho. Nesse altura do caminho, todos ficamos perplexos. Primeiro porque teríamos que duvidar de uma boa porção do falado, segundo, porque, essa afirmação, por fim, nos levou a um exame rigoroso do objeto, todos os olhos se concentraram no Agnaldo, especificamente no peito da figura principal. E é preciso dizer que esse torso era uma tábula rasa. Em resumo, os catalogadores, assim como os historiadores,  e como nós, foram incapazes de ver aquilo que estava ante seus olhos. Mas isso parece uma condição humana. O exercício da reflexão na arte ou na história ou em qualquer outra área do conhecimento é justamente um constante batalhar para enxergar o objeto, assunto que só é conseguido, de alguma forma, quando desenvolvemos a capacidade de ser cientes de nosso próprio olhar (cânone e eixo de poder). Essa Conversa com objetos, acontecida no sábado 29 de outubro, foi uma oportunidade ótima para treinar essa capacidade.