Texto apresentado por Daisy Perelmutter

1º Encontro das Ações Educativas em Museus da cidade de São Paulo. Mesa 3: História Oral, Memória e Subjetividade - 15/08/2006
Seminário Museus da Prefeitura e Ação Educativa

O recorte temático proposto por esta mesa – História Oral, Memória e Subjetividade - soa de certo modo familiar para mim já que é justamente este campo problemático que tem funcionado como o fio condutor que articula às minhas diferentes experiências práticas e teóricas ao longo dos 20 anos de atividade na área.

Mais do que os fatos propriamente ditos, o que a história oral nos parece trazer de forma caudalosa são as representações da experiência vivida, o sentido atribuído ao passado pelos próprios sujeitos que o protagonizaram. É este sentido, sempre em aberto, sempre se redesenhando a cada novo embate com o vivido, que me parece ser o diferencial do conhecimento engendrado pelo método de história oral em relação aos demais recursos de investigação social.

O reconhecimento da presença imperativa da subjetividade no documento oral e o esforço de compreendê-la históricamente me levou a perscrutar dispositivos conceituais de análise que permitissem abordá-la enquanto processo e não como uma dimensão estável, incomunicável, indivisa, um bunker refratário a todo tipo de intervenção externa. Fica evidente que se nós historiadores nos mantemos aferrados à idéia de uma subjetividade enquanto essência, como algo natural, somos alijados da discussão sobre o binômio subjetividade e história oral. No entanto, a prática de história oral não cessa de contradizer esta máxima já que mesmo de forma imperceptível nunca nos lança ao encontro do mesmo e das redundâncias. O depoimento de história oral é sempre singular, irrepetível mesmo em relação a si próprio (quando refeito com o mesmo informante, jamais se reproduz, assim como quando comparado com o de outro informante com um mesmo repertório existencial, jamais coincide). A equação teórica da subjetividade como algo do domínio de uma suposta natureza humana não explica o que efetivamente ocorre na experiência de campo com a história oral. Se a subjetividade é tomada como o condicionante do documento oral e este se revela como a pura diferença, a subjetividade que lhe serve de referencial só pode estar diferindo de si própria.

O encontro com a obra de Gilles Deleuze e Feliz Guattari me permitiu equacionar este enunciado, oferecendo recursos para o tratamento e enunciação do processo de tessitura da subjetividade. Segundo eles, não existe sujeito teórico, o sujeito é sintetizado pelas experiências e não existe apartado das mesmas. A idéia central deste pensamento é que não há um fundo invariante na subjetividade a ser diferentemente preenchido dependendo dos universos econômico-políticos e culturais em jogo. A subjetividade é a própria trama e não tem um antes já dado; ela é a composição dos diferentes universos que habitam cada existência e se alojam sob a forma de sensação-afeto, sempre versátil aos novos arranjos. Aprender a subjetividade não significa apenas identificar as formas através da qual ela se reconhece e é reconhecida. Conhecê-la implica compreender o processo de produção e emergência das figuras que ela desenha. Como estas figuras estão sempre condicionadas aos universos sociais que as compõem, se estes mudam, elas são invariavelmente pressionadas a mudar. A subjetividade não tem como manter-se refratária às mudanças históricas em curso, assim como a história não pode se esquivar a compreender como a realidade social está se dando ao nível da subjetividade.

Além de não posicionarem a subjetividade em oposição à esfera social, um outro aspecto crucial deste edifício teórico e que favorece a sua incorporação como objeto de análise histórica é o fato de não contrapô-la o domínio do público dado que a subjetividade nos termos por eles propostos não está centralizada no indivíduo. Segundo Deleuze-Guattari, o que afirmamos ser o é quase a ponta final de um processo que começa de maneira impessoal e coletiva e no qual podemos tomar parte de forma ativa ou passiva. Na direção inversa do senso comum, quando eles falam.em subjetividade eles não a associam ao tesouro secreto que cada indivíduo é portador, como se a humanidade fosse um imenso e potencial “museu” de excentricidades a serem reveladas. Para Deleuze e Guattari, a subjetividade não se subsume ao indivíduo. Insistem que a subjetividade pode ser pré-individual, individual, grupal e de massa e que pode ou não singularizar-se dependendo do trabalho que venha empenhar no sentido de criar as suas próprias referências, os seus modos próprios de percepção e sensibilidade. Segundo Guattari em Micropolíticas – Cartografias do Desejo: A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos:ela é essencialmente social e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre os dois extremos: uma relação de alienação e opressão na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como ele a recebe, ou uma relação de expressão e de criação na qual o indivíduo se reapropria dos componentes de subjetividade produzindo um processo que eu chamaria de “singularização”.

Ao contrário do que havia sido privilegiado no período engajado do movimento de História Oral, nos idos da década de 60, quando se procurava dar aval público às pessoas cujas vidas e memórias haviam sido marginalizadas, desafiando de tal forma seus opressores, em sua “maturidade” , alheia ao purismo ingênuo que segregava as histórias genuínas das histórias espúrias, não se intimida mais eleger como objeto de investigação a memória dos grupos hegemônicos – elites políticas, econômicas e sociais – e a memória das lideranças ou da massa silenciosa coniventes com sistemas totalitários de governo – como por exemplo, Itália e Alemanha durante a 2 Guerra ou URSS nos anos de ditadura estalinista – colocando um dilema ético para os historiadores orais sobre o direito ou não de usar as histórias de seus interlocutores para depois interpretá-las criticamente e, em muitos casos, contestá-las. Essas novas tendências fizeram com que as concepções de responsabilidade, dever e função social do historiador deixasse de ser tácitas e latentes, despertando controvérsias sobre o que seja ética no contexto específico do trabalho de história oral. É neste momento que a subjetividade começa a aparecer como questão a ser problematizada. Ao longo da citada fase militante, não houve praticamente menção à sua presença já que a narrativa era incontestavelmente identificada à verdade. A subjetividade representava a contraprova da transparência que a história oral reivindicava para a sua fonte. No momento da transição, ao perder o seu antigo cânon, a história oral começa a identificar novos objetos de pesquisa e relativizar as suas antigas deficiências (como é o caso da falibilidade da memória que deixa de representar um estorvo e constitui-se, ela mesma, conteúdo para análise do historiador), passando a subjetividade então a ser referida.

A insatisfação com as várias formas como ela vem sendo trabalhada – subjetividade enquanto emoção, subjetividade enquanto uma faculdade psicológica semelhante à imaginação e ao sonho, subjetividade como identidade individual ou como inconsciente – é que me levou buscar uma compreensão mais pluralista-construtivista sobre a produção social que está na base de todas as manifestações humanas – sentimentos, percepções, memória, relação com o corpo, com o trabalho – que consiste a subjetividade.

A defesa da história oral como um instrumento privilegiado para se desfiar os conteúdos que dão a urdidura desta trama sensível deve-se à própria especificidade do processo de produção deste conhecimento. O trabalho interpretativo na história oral não consiste unicamente em clarear o suposto “núcleo” do relato, através da identificação dos conteúdos relevantes e descarte dos supostamente coadjuvantes. A análise na história oral deve relevar toda a extensão que a narrativa percorre para consolidar-se. O processo de elaboração sobre os fatos é indissociável dos fatos propriamente ditos. As redes, as trilhas, as associações construídas para explicar a trajetória pessoal ou a participação em um determinado acontecimento social não são aleatórias, neutras e prescindíveis em relação ao conteúdo narrado. O enredo e o roteiro é o que define o contorno e o estofo da realidade apresentada. Outro aspecto que facilita a aplicabilidade do método de história oral para os estudos e pesquisas da subjetividade é o fato do pesquisador compartilhar do contexto no qual as realidades estão ganhando corpo, favorecendo uma interpretação não fetichista do documento. A transpar~encia de seu processo de produção evidencia a sua condição trágica, a sua afinidade com a vida. Não há´como erradicar do documento oral a dúvida, a incerteza, o desvio, a mudança, a vulnerabilidade, as reticências. A comunicação oral ao funcionar obrigatoriamente a partir de uma situação artificial, um encontro, se estrutura a partir desta negociação, que é sempre imponderável.

No entanto o mais contundente argumento que justifica a fertilidade da aliança entre a história oral e os estudos da subjetividade nos termos propostos por Deleuze e Guattari é a presença imperativa do corpo, passíveis de serem identificadas, pelas suas múltiplas manifestações. Neste sentido, o corpo não é uma casca amorfa e apática a tudo que vai se passando na existência e que endossa de forma viscosa as mensagens elaboradas pela consciência. Na realidade, ele tem uma polivocidade potencial que é passível ou não de ser vazada dependendo do grau de fluidez e maleabilidade do território subjetivo que lhe serve como lar. As formas que o corpo encontra para se expressar, o tipo de resposta perante o interlocutor, as variações corporais em relação aos conteúdos narrados, a afinidade entre o ritmo do corpo e o da narrativa; todas estas informações/dados observáveis no documento de história oral passam a contribuir para a compreensão da problemática subjetiva em cheque naquela existência que está sendo interpretada. A polissemia de semióticas que o documento de história oral engendra (sem mencionar a narrativa verbal propriamente dita) – expressões faciais, gestos corporais, timbre e tonalidade da voz, velocidade da respiração, expressividade do olhar – são verdadeiras “jóias raras” que o historiador dispõe na sua busca de compreensão das manifestações humanas.

Além destes fatores, a história oral revela seu caráter quebradiço, transitório e local. O depoimento é um panorama no qual se esboçam algumas das questões, afetos e produções que estão mobilizando o sujeito com o qual dialogamos. Não é casual que alguns depoimentos construam-se predominantemente sobre fatos do passado, outros sobre a aurora dos acontecimentos do presente, outros sobre construções imaginárias e outros respondem mecanicamente aos estímulos provocados pelo entrevistados, parcendo indiferente à força de seus afetos e sensibilidades. O depoimento oral é sempre frágil e contingencial e condicionado por um número infinito de variáveis. Quando se esquece da sua vulnerbailidade corre-se o risco de superestimar a força e o alcance do depoimento, como se fosse uma tradução literal de uma suposta ess~encia, supostamente inata em cada exist~encia. Um depoimento construído de maneira melancólica ou queixosa ou, por outro lado, eufórica e grandiloquente, ao invés de constitui-se como um operador para se compreender as batalhas que agitam o presente do interlocutor, seria considerado a sua marca identificatória, a sua etiqueta e o seu fardo.