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Transcrição Lançamento Periódico Permanente n8 a documenta a partir do Futuro.

Introdução e Agradecimentos

 

Vinícius

Bom dia a todas e todos presentes aqui no nosso encontro no Zoom. Mas, também, ao público que assiste à transmissão ao vivo pelo site do Instituto de Estudos Avançados da USP. Eu gostaria de iniciar com alguns agradecimentos e uma breve apresentação do encontro, e também dos convidados presentes, antes do início do debate.

Então, agradecendo, em primeiro lugar, ao próprio Instituto de Estudos Avançados, que nos deu todo apoio a esse debate. O apoio tecnológico, mas também institucional, de divulgação e organização desse evento. Também ao Fórum Permanente de Museus de Arte, que aceitou, em primeiro lugar, a publicação dessa edição especial do periódico permanente sobre a Documenta.

O Gilberto Mariot, aqui presente, agradeço pessoalmente por, desde o início, acolher essa proposta e acompanhá-la, não só do ponto de vista editorial, mas também das discussões e propostas. Então, agradeço ao Gilberto, ao Martin Grossmann, que agora está conosco. Coordenador do Fórum Permanente. Que, também, além de acolher, incentivou essa publicação, e agora o encontro que hoje a gente tem para discutir a Documenta de Kassel e outras exposições periódicas, do ponto de vista do futuro.

Essa é uma proposta que vem de um dos textos que está no periódico permanente número 8, uma contribuição da professora Nora Sternfeld. Que eu agradeço tanto pela permissão para que publicássemos esse texto. Também à Lorena Vicini que traduziu o texto e fez essa gentileza de nos ceder a sua tradução. E, também, agradeço tanto à Lorena quanto à Nora pela presença hoje aqui conosco, nesse debate.

Também agradeço ao Consulado Geral da República Federal da Alemanha em São Paulo, por nos apoiar nesse evento com a tradução simultânea. Achamos que era importante ter esse evento traduzido para o português, para que a gente pudesse atingir um público mais amplo de estudantes e pesquisadores, que não necessariamente dominam uma língua franca aí do mundo da arte contemporânea, que é a língua inglesa.

[...] Agradeço, as intérpretes, a Cláudia e a Dóris que vão nos acompanhar aqui com essa tradução. Então, agradeço muito por essa colaboração aí na nossa empreitada. E, finalmente, mas não menos importante, aos meus colegas, o Tiago Machado e o Gabriel Zacarias.

[...] E agradeço, bom, finalmente, não posso esquecer, o Thiago de Paula, que aceitou ampliar um pouco do escopo do nosso debate, também com uma experiência curatorial junto à Bienal de Berlim. Não é exatamente o foco da publicação, mas achamos que era importante essa ligação com outro evento que acontece na Alemanha, uma outra exposição periódica, para que não ficássemos tão, talvez, restritos só ao exemplo da Documenta.

[...] Passo a palavra para o Martin Grossmann, antes de seguir com a apresentação do debate dos convidados. Martin, se você quiser fazer uma fala.

 

Martin

Bom dia a todas e todos [...] é bom ver, mais uma vez, essa relação que o Brasil tem lá fora, também. E como ele construiu e vem construindo, e mantendo essa relação com um pensamento mais global. Se ainda posso falar nesses termos, em relação a uma arte contemporânea que está em todas as partes, ubíqua, e que está em correspondência direta com diferentes agentes e produtores da arte em diferentes partes do mundo. Mais uma vez, Nora, aqui você é a representante alemã desse encontro. Mas eu lembro que o Fórum Permanente nasceu no Goethe-Institut, lá em 2003.

Numa relação bastante interessante, porque ela logo ganhou uma ampliação com parceiros, como o British Council, depois o Centro Cultural da Espanha, franceses de vez em quando, holandeses também. E aí, também, com mais instâncias brasileiras da cultura, como o próprio Ministério da Cultura, que hoje está em desgraça. Mas a Secretaria de Estado da Cultura do Estado de São Paulo, a Secretaria de Cultura do Município de São Paulo. E o Fórum tem essa característica de trazer, de reunir, de colocar frente a frente especialistas no Brasil e especialistas em outras partes do mundo.

Desta vez, mais uma vez, a Alemanha. E é uma fortuna crítica que nós temos no site, mesmo. Essa relação com a Documenta 12, quando o Fórum fez, talvez, a maior cobertura que se tem notícia, assim, talvez em outras instâncias. Roger Buergel, inclusive, veio ao Brasil, no finalzinho da Documenta, para participar de um debate que foi bastante caloroso. Ouviu muitas críticas de Suely Rolnik e Lisette Lagnado, enfim.

Então, nós tivemos essa oportunidade de acompanhar um pensamento curatorial. Eu falei para o Vinícius, uma pena, a gente não conseguiu fazer a transcrição da fala do Roger Buergel no encontro do CIMAN, em 2005, aqui na Pinacoteca do Estado. Conhecida mais como Pina, hoje. Mas quando esse encontro reuniu os grandes nomes da arte contemporânea, dos museus, principalmente, nesse encontro do CIMAN. E lá estava Roger Buergel com um texto muito bom. E, obviamente, daquele jeito bastante... Usando o improviso. Mas falando sobre o método curatorial.

Então, essa possibilidade de nós termos aí uma análise dessa mostra que, eu acho que, como todas as mostras, vão enfrentar um período muito difícil pós-Covid. Quando a presença, hoje, é muito... Praticamente impossível estarmos, mais uma vez, no mesmo espaço físico, compartilhando de experiências tão ricas como essas mostras nos trazem. Então, o Fórum cumpre aí o seu papel de acompanhar essas relações entre arte contemporânea, produção, exposição e crítica.

[...] Nora, mais uma vez, nossos agradecimentos a você estar no centro da roda de hoje. É uma roda viva. Com esses jovens críticos e produtores da arte que aqui estão. E bom trabalho, então. E obrigado, Vinícius, por ter aceito o nosso convite de fazer essa curadoria, editoria, do número 8 do periódico permanente. O seu próximo número vai ser sobre história da arte latino-americana.

Vinícius

Bom, o Martin já fez um spoiler da minha introdução, então... Eu acho que muitos pontos eu talvez não precise repetir. Mas eu acho que há uma questão sobre a razão, também, de uma discussão sobre a Documenta, que valeria a pena a gente ressaltar. Ou seja, a relação, também, que Documenta estabelece com o circuito da arte no Brasil. Um circuito da arte que se voltou muito mais, a partir dos anos 50, à Bienal de Veneza.

Ou seja, Veneza foi a referência para a nossa Bienal de São Paulo. E era uma referência, eu diria, até os anos 90 [...] Os prêmios em Veneza, a participação dos artistas na Biennale, eram o grande centro do interesse da crítica de arte no Brasil. E algo muda nos anos 90. O Martin falou também dessa questão de uma globalização do circuito da arte contemporânea. Não sei se o termo continua também válido.

Eu acho que, hoje, a gente já coloca uma perspectiva crítica a essa ideia de globalização. Mas, de qualquer maneira, uma mudança de fato ocorre nesse período. E falando especificamente da Documenta, é um interesse maior dos curadores por artistas brasileiros, que eu acho que inicia um pouco um diálogo maior entre Brasil e Alemanha, no âmbito das exposições periódicas de arte contemporânea. Sobretudo com a Catherine David, em 1997, com a participação do Tunga, Hélio Oiticica, Lygia Clark.

Colocando artistas brasileiros em uma dimensão que, naquele momento, era um pouco improvável. Catherine, que já tinha uma relação, sobretudo, com Hélio Oiticica, a partir de uma retrospectiva, que viajou por vários países europeus. Então, eu acho que isso é um ponto inicial dessa aproximação entre Documenta e o circuito da arte brasileiro.

E uma outra questão é, nesse mesmo momento, o campo das artes passa a discutir questões políticas ou de um mundo globalizado, dentro desse âmbito que, até então, se via um pouco restrito a discussões estéticas ou discussões mais próprias do campo da arte contemporânea. Eu acho que isso também fez com que grande parte dos debates que aconteciam na Documenta de Kassel, passassem a nos interessar para além, simplesmente, dos grandes nomes de curadores e de artistas que apareciam nas listas dessa exposição, no contexto de uma mostra internacional.

E, com isso, ressaltando o que disse o Martin, eu acho que o Fórum Permanente foi, de fato, um espaço privilegiado para um debate sobre essas questões. Privilegiado em dois aspectos. O primeiro: eu acho que o Fórum teve uma abertura muito precoce para essas questões, esses debates, que outras instituições locais levaram mais tempo.

Hoje, a gente vê uma grande discussão nos museus sobre a questão da descolonização dos seus acervos, das suas mostras. Mas, naquela época, eu lembrava também... Acho, iniciei no Fórum Permanente em 2004, 2005, nos primeiros relatos. E, naquele momento, esses temas eram bastante inusitados dentro do contexto brasileiro. E também, como o Martin já assinalou, o fato de alguns curadores, sobretudo o Roger Buergel, ter participado desses encontros.

Encontros que, valeria a pena também ressaltar aqui, foram transmitidos online. Então, hoje, também, essa realidade que a gente tem da transmissão online, do público poder assistir debates como esse pela internet, é algo que o Fórum também iniciou naquele momento. [...]

Eu e Gabriel Zacarias, temos orientado vários trabalhos nesse campo. Os alunos têm cada vez mais interesse pelas exposições de arte, pela curadoria, pela mediação. Então, acho que esse material vai para além do debate sobre a exposição em si, servir também como uma referência para jovens pesquisadores interessados no tema. Então, eu gostaria de agradecer novamente às contribuições e aos participantes do evento.

 

Os participantes


Vinicius:

Vou fazer uma breve apresentação para o público, dos nossos convidados. Iniciando, então, com a professora Nora Sternfeld, da Universidade de Belas Artes de Hamburgo, onde ela leciona Arte e Educação. Entre 2018 e 2020, ela foi professora Documenta na Escola de Arte e Design de Kassel. Então, ela tem, consequentemente, uma posição privilegiada para falar sobre o tema. Além disso, muito do debate colocado hoje, vem de um texto que ela gentilmente cedeu para o Fórum Permanente.

Então, essas foram as questões que acabaram norteando um pouco aqui as nossas reflexões para hoje. Espero que o debate vá ser, também, uma possibilidade da professora colocar isso em outra perspectiva. Uma perspectiva também de diálogo com o público brasileiro e latino-americano, mas também de transformações mais recentes, como Martin já colocou, no campo das artes devido à Covid. Mas, também, algumas mudanças que parecem estar acontecendo num cenário político mais amplo.

Nora também foi codiretora do ECM, um programa de mestrado em teoria e prática de exibição, da Universidade de Artes Aplicadas de Viena. Faz parte da equipe do Schnittpunkt, ausstellungstheorie und praxis. Cofundadora do trafo.K, office for art, education, and critical knowledge production, em Vienna. Nora pode depois fazer correções, talvez, se algo foi atualizado. E como membro da plataforma para pesquisa, educação e produção, freethought, de Londres, foi uma das diretoras artísticas da Bergen Assembly em 2016.

E publica textos sobre arte contemporânea, exposições, política da história, teoria educacional e antirracismo. Outro convidado é o professor Gabriel Zacarias, da Universidade Estadual de Campinas. Além aí desses debates do grupo, ou também de orientações que já mencionei, o Gabriel foi pesquisador convidado da Universidade de Yale no início deste ano, já em plena pandemia. E bolsista do programa Erasmus Mundus, da União Europeia, entre 2009 e 2014.

Ele realizou, também, pesquisa sobre a Documenta de Kassel, com financiamento da Fapesp. E tem também um contato muito próximo com o tema debatido hoje. O Tiago Machado, também um colega pesquisador que há algum tempo tem colaborado comigo, não só nesse, mas em outros debates. É professor do Instituto Federal de São Paulo, doutor em História Social pela FFLCH - USP, com uma tese intitulada Revelar o cenário, emprestar a paisagem: O trabalho in situ de Daniel Buren e o sistema da arte.

E ele escreve sobre a relação entre exposição e a história da arte contemporânea. A Lorena Vicini, que eu já agradeci, mas agradeço mais uma vez, também, pela tradução. É gerente de comunicação do Instituto Inhotim e doutoranda na Escola de Arte Design de Kassel. Foi pesquisadora no Document Studies, uma plataforma de estudos ligada à criação do Documenta Institut.

Coordenou o projeto Episódio do Sul, com o Goethe-Institut de São Paulo. E a Conferência Internacional Ecos do Atlântico Sul, junto com o mesmo instituto. Isso entre 2016 e 2018. E por último, mas não menos importante, o Thiago de Paula Souza, membro da equipe curatorial da terceira edição Frestas, Trienal de Artes de Sorocaba, organizada pelo SESC de São Paulo. Com a curadoria da Gabi Ngcobo, ele criou a plataforma Have you seen your face before, parte do projeto Ecos do Atlântico Sul, do Instituto Goethe.

Foi também educador do Museu Afro Brasil e membro da equipe curatorial We don't need another hero, da décima edição da Bienal de Berlin. Então, agradeço a todos os participantes e também colaboradores da publicação.

 

Primeira Rodada de questões


Vinícius:

Para iniciar uma rodada de questões, eu colocaria a palavra para a professora Nora sobre isso que um pouco foi dito aqui na introdução, talvez você pudesse nos atualizar um pouco.

Estou imaginando a sua reflexão feita em 2018, no momento quando você escreve o texto Algo não estava certo, uma retrospectiva a partir do ponto de vista do futuro, sobre a Documento, mas também sobre essa décima edição da Bienal de Berlim, que eu mencionei, que teve a participação do Thiago de Paula.

Me parecia um momento em que a gente tinha os eventos, como a Documenta e outras exposições de arte contemporânea, muito integradas em uma ideia de globalização cultural que nos parecia unir os públicos e ampliar esse debate para diversos segmentos da população, diversas geografias.

Então, a Documenta quase que me parecia, em algum momento, um epicentro de debates, que depois seguiriam para outras instituições. Servia como uma referência para muitos curadores, jovens curadores e para o público também. O Kassel se tornou, Catherine David já dizia isso em 97, né? A meca do turismo cultural, então... 97, isso. Então, ela já colocava isso, a Documenta como esse local central, quase, no circuito da arte contemporânea.

Então, isso tende a mudar, provavelmente, com a pandemia. Claro que a gente não tem ainda como prever os impactos. Mas, talvez, se algo não estava certo, talvez menos certo ainda agora. Talvez, o ponto positivo seja que isso nos chame a atenção como fazia o seu texto, para um caminho que se endereçava ao futuro que não era muito otimista.

Então, não que hoje a gente tenha talvez perspectivas mais positivas, mas, pelo menos, temos um cenário que nos leva a uma posição mais reflexiva. E uma outra questão, bom, a gente está aqui... Ontem mesmo, foram eleições municipais aqui no país. E a gente tem um dado que é uma derrota da extrema direita, o que parece seguir uma tendência próxima à eleição norte-americana.

Mas, por outro lado, também, um campo da direita ainda um tanto conservador, tomando grande parte do país. Também parecido com uma figura como o Biden. Parece que, se por um lado criamos aí uma resistência a esse avanço da extrema direita, a gente, por outro lado, ainda estamos situados num campo um tanto conservador, sobretudo em questões relativas às lutas de representação que você cita no seu texto.

[...] Eu queria talvez ouvir de você um pouco essa visão do futuro. O que ela muda em relação a esse presente que mudou, de certa maneira, nos últimos dois anos.

 

Nora

Muito obrigada por sua introdução. Sim, algo não estava certo, é o título do meu texto. E eu escrevi, naquela época, numa situação em que eu tentava entender o que estava acontecendo. E eu não achei outra maneira de expressar essa minha angústia, esse mal-estar, a não ser pegar essa perspectiva de uma jovem pesquisadora do futuro e... Digamos, poderia ser, por exemplo, a minha filha que tentasse entender o que aconteceu na Documenta, naquela época. E por que haviam tantas contradições?

O texto fala, justamente, de uma jovem curadora com outros colegas antifascistas. Estão ocupando o museu. E estão, mais ou menos, nessa sombra do vento, meio protegidas. Mas tentam ver o que eles podem fazer. Mas eles não podem fazer quase nada. Então, eles pegam duas pequenas salas no museu. Numa sala, eles falam sobre um ano na Alemanha entre a Documenta e Bienal de Berlim. E porque não havia ainda internet ou, digamos assim, não há uma... Vamos dizer, ela não tem internet, mas ela tem os materiais de colegas.

Ela conseguiu um arquivo da internet daquela época. E aí, ela tenta entender o que foi... Por que alguma coisa estava errada. Mas, no tempo que é o tempo dela, da jovem curadora, as coisas estão ainda piores. Mas ela tenta entender por que as coisas pioraram tanto. E qual é esse contraponto ou esse paradoxo entre as posições críticas e o que estava acontecendo.

A Documenta e, também, a Bienal de Berlin não teve tanto escândalo, mas isso marcou as posições. Com a globalização, com a “Bienalização” do campo cultural, de um lado a gente tem uma leitura crítica maior, mas, por outro lado, também a economização, ou seja, passa tudo a ser uma questão de economia. Por que cada vez tudo funciona mais por critérios de economia e, ao mesmo tempo, de argumentos da esquerda.

Então, esse paradoxo é algo que ela tenta entender para entender esse crescimento do fascismo. E ela faz isso com esses materiais históricos. Hoje, para responder à sua pergunta, será que melhorou, piorou, onde é que nós estamos hoje? Eu acho que a gente está todo mundo sentado na frente do computador. E tentamos continuar trabalhando, não temos muita ideia de como fazer as coisas.

Eu acho que o problema maior vai ser essa crise econômica. Eu acho que não vai ser tão rápido que a gente vai conseguir resolver esses paradoxos. E como a gente pode lidar com isso? Será que a gente tem que só falar com crítica, ou será que nós precisamos começar a agir de forma crítica. A minha avaliação é que essa “bienalização” não é tão contraditória.

Eu vejo, hoje, na Bienal de Kiev ou de Budapeste, esse formato da Bienal, parecido com esse museu que foi ocupado neste texto do futuro. Também é uma forma de ação, de se agir. Dessa sociedade que se torna cada vez mais autoritária, para tentar se ligar a esse debate internacional, com coisas que não dá para fazer lá localmente.

Alguns exemplos. Nós fizemos uma cooperação com Varsóvia e Praga para fazer uma Bienal da Europa Oriental. Eu diria, então, que nós estamos numa situação contraditória. Eu espero que a gente discuta bastante sobre essa contradição. Essa curadora do futuro deseja que, naquela época, a gente tivesse discutido isso. Essas contradições. Como é que a gente não falou sobre isso? E eu acho que, talvez, seja a hora, realmente, de nós também fazermos isso aqui, agora.

 

Vinícius

Obrigado, Nora. Acho que é um ótimo início. Uma ótima provocação, também, para esse debate. Eu vou passar para os colegas participantes as perguntas. De início, utilizo uma ordem um tanto arbitrária, alfabética, talvez. Mas, depois, na medida do debate, eu posso chamar as pessoas de maneira um pouco mais livre, até pelo que já foi dito.

Inicio com o Gabriel. E depois eu sigo com as questões com a Lorena e o Tiago Machado, Thiago de Paula. E depois nós pensamos nessa ordem. Eu posso chamar as pessoas, talvez, de maneira mais livre.


Gabriel

Olá! Bom dia a todos e todas, obrigado Vinícius pela coordenação. Obrigado pelo convite [...]

Estamos fazendo um debate nas condições que nos são possíveis. E que bom. Como você já antecipou aí, já colocaria esse texto que você escreveu numa outra... Pelo menos, você escreveria ele hoje, de outra forma, né, imagino. Porque acho que fazer essa reflexão sobre um futuro a partir do momento que a gente vive, é uma coisa um pouco que muitos de nós fizemos, né? Porque, no momento, o futuro parece muito incerto.

Certamente, projetar o futuro hoje implicaria pensar o que vai ser a retomada de uma certa normalidade. Já era uma normalidade que precisava ser criticada. E que, agora, a gente não sabe muito bem qual cara exatamente ela vai ter. E isso certamente vale para o nosso meio, para o meio das exposições e no funcionamento das instituições. E como vão funcionar essas bienais que implicavam necessariamente nesse contexto pós-global, implicavam necessariamente articulações transterritoriais aí, que é justamente o tipo de situação que se tornou bloqueado no tipo de crise que a gente está vivendo.

Se esse tipo de crise que a gente está vivendo se tornar um tipo de crise recorrente, ou se deixar algum tipo de legado do ponto de vista do controle, dos fluxos de circulação, o que é muito provável, quase certo... Só não diria certo porque, como disse, acho que toda a previsão de futuro no momento é incerta. Ainda é.

Mas essa, talvez, seja uma previsão com boas chances de acerto.[...] A gente vai ter que repensar um pouco como a gente constrói essas articulações de eventos internacionais, de eventos que implicam esses deslocamentos e essas parcerias, enfim. Talvez essa ocupação aí imaginária do museu do futuro, se desse num contexto um pouquinho diferente, ou com demandas um pouco diferentes do que aquelas que estavam apresentadas ali.

De toda forma, acho que o tipo de exercício que você apresenta no seu texto, é um tipo de exercício que a gente tem que fazer agora ainda mais do que antes. Então, realmente, é muito bom que ele tenha sido traduzido e apresentado nesse número. Enfim, a gente provavelmente vai ter um momento aqui nesta discussão que vai girar em torno a essa reflexão, sobre como as insituições vão se posicionar e como a gente pode pensar, talvez até transformar numa oportunidade esse momento de ruptura, para se posicionar de maneira crítica, para transformar um pouco essa antiga normalidade.

Mas, se não for um problema, eu gostaria de puxar um pouco a coisa para o passado de novo,[...] para articular um pouco com o meu texto que está também na edição. E também para retomar uma discussão que a gente estava fazendo na última vez que a gente se encontrou.

Porque acho que a última vez que eu estive em Kassel, eu tinha acabado de abrir aquela exposição sobre a história da Documenta. Exposição oficial sobre o passado da Documenta. Que eu tive ocasião de visitar nessa vez. E que acabou, no fim, essa contingência, o fato de que a exposição tinha aberto naquele momento, naquela última visita que eu fiz ao arquivo, me ajudou um pouco a entender algumas questões que eu estava tentando pensar com relação às Documentas recentes.

Inclusive a Documenta 14, que é um dos grandes objetos do seu texto. E da Documenta 12, que foi já mencionada hoje pelos debates do Fórum. Que era justamente a relação que essas Documentas das últimas edições, sobretudo a partir da virada do século, da entrada no século 21, a relação que elas estabeleceram com o passado compreendida dentro de uma dialética entre uma determinada compreensão do presente que se estrutura por uma apropriação desse passado.

Explicando. Uma compreensão do presente como presente em permanente crise. Que parece ter sido, exatamente, isso não vai mudar depois do que a gente está vivendo em 2020. Parece ter sido um pouco um diapasão das grandes exposições temporárias do século 21.

Entender o século 21 como uma época de crise e, portanto, assumir para a exposição a obrigação de dizer algo sobre o seu presente, de se posicionar com relação à crise da contemporaneidade. Isso está presente em todos os discursos curatoriais das grandes exposições das últimas duas décadas, pelo menos. E isso está muito marcado no discurso da Documenta a partir da Documenta 11 para frente. 11, 12, 13, 14 têm isso muito presente.

E, para mim, foi se tornando cada vez mais evidente o quanto isso foi requalificando a relação com o passado da instituição. Então, constantemente, foi sendo colocado nas últimas edições da Documenta, foi sendo apresentada uma certa versão do próprio passado da Documenta. E essa versão do próprio passado da Documenta foi sendo posta de maneira a legitimar a voz da Documenta nesse presidente de crise.

Então, a maneira como tem sido pouco a pouco construído o mito fundacional da Documenta, ou reconstruído, nas últimas edições, com relação à sua criação na década de 50, no contexto do pós-nazismo, ele serviu, ele foi sendo reconstruído de modo a dar essa legitimidade da Documenta como uma exposição particularmente afeita a um contexto de crise.

Talvez, o momento mais evidente desse tipo de operação foi a Documenta 13. Porque isso se tornou, inclusive, um parâmetro... Quase um artigo de exportação. Porque a Documenta nasceu do pós-guerra, das cinzas da guerra, ela pode agora entrar num país devastado pela guerra e cumprir uma função de regeneração naquele país. Desde o seu berço, ela tem essa função. Ela teria essa função.

Esse foi o discurso da Documenta 13, da Christov-Bakargiev. Então, para mim ficou mais claro ainda,vendo a exposição , como havia ali uma disputa com relação ao passado da Documenta presente nas vozes curatoriais das últimas edições, por conta desse passado ter se tornado extremamente estratégico para a exposição Documenta se legitimar como, como ela se vende hoje, como a mais importante exposição de arte contemporânea do mundo.

E senti um pouco aquela exposição que foi montada em Kassel, como uma espécie de uma reação a essa flutuação de: cada curador vem aqui, reelabora um pouco o passado da instituição, vem reelabora um pouco o passado da instituição, para legitimar o seu discurso curatorial. E, bom, nós aqui na instituição, precisamos estabelecer um pouco o que é esse passado. Então, me pareceu uma resposta da instituição de dar uma certa fixidez a esse passado que estava sendo reapresentado a cada exposição, a cada cinco anos, nas vozes de curadores que são curadores que não têm um vínculo com a instituição. Que vêm e vão.

E como o último curador inclusive gerou muita polêmica, me pareceu que havia uma necessidade de reação nesse sentido. O que ali ficava até mais claro, porque na Documenta 14, o Szymczyk tinha feito aquele gesto de expor, de certa forma, o Arnold Bode. De certa forma, não, literalmente, né? Ele pegou um quadro do Bode, colocou na exposição e colocou numa sala na qual ele contextualizava a criação da Documenta com a época da recuperação do Plano Marshall. E estabelecia a relação que havia ali entre uma certa preferência estética do expressionismo abstrato, com esse esse apoio econômico do governo norte-americano na reconstrução da Alemanha.

E ele colocou isso de maneira crítica na exposição e, agora, a gente reencontrava isso na exposição About Documenta de maneira neutralizada. Isso que poderia ainda ter ali uma dimensão de permitir uma crítica ao momento fundacional da exposição, na sua relação com a geopolítica da época, aparecia agora neutralizado.

O expressionismo gestual sendo apresentado apenas como uma forma de linguagem universal. Como se a gente pudesse agora, depois de todas as críticas do pós-colonial para frente, falar numa linguagem universal de maneira ingênua. A gente chegou a conversar um pouco sobre isso lá, mas eu gostaria de retomar porque foi depois, voltando e sentando para escrever que algumas ideias me ficaram mais claras, como estou enunciando agora.

Então, gostaria de ouvir a sua reação, o que você teria a me dizer, como você vê agora. Você não está mais lá, mas você viu esse processo de reflexão, de reação da instituição e da relação que a instituição estabeleceu com o seu próprio passado. Nesse jogo que não é simples. Como a gente observa aqui no Brasil também com a Bienal de São Paulo.

Quer dizer, você tem uma instituição que existe. Mas ela se apresenta publicamente em exposições que são periódicas, cujo curador se altera. Então, você tem uma dimensão de vozes em constante transformação e uma necessidade de uma permanência ao mesmo tempo. E eu acho que lá em Kassel, com esse estudo das exposições recentes, deu para ver esse conflito se estabelecendo. E como a instituição reagiu a isso.

Então, se talvez você pudesse dizer um pouco sobre a Documenta do passado. Ou como essa Documenta do presente está se colocando como o olhar do futuro sobre essa Documenta do passado e reelaborando esse passado. Nessa disputa entre as vozes curatoriais e a voz da instituição. Eu gostaria de ouvi-la mais sobre isso.

 

Nora

Muito obrigada, Gabriel. Como sempre, você levanta pontos importantes. No ano que vem, no museu histórico alemão, grande museu da história alemã, vai ter uma grande exposição que se dedica à história da Documenta. Principalmente, as primeiras exposições e dois temas vão estar no centro dos debates.

Uma história política da Documenta. Primeiro [...] com aquele mito da grande cisão. Sempre tem uma grande cisão. Mas também se tratará das continuidades. O segundo grande tema, que talvez seja um tema interessante para a história da Bienal de São Paulo, a Documenta é uma guerra fria. Então, uma guerra fria e a construção de uma modernidade específica.

Independente ao museu histórico, debruce sobre essa questão histórica e política. [...] O debate político vem de Berlim. Do museu histórico e da capital Berlin. Que juntou um time muito bom de pesquisadores e pesquisadoras, tentando entrar em algumas coisas  que nós não conhecemos. Uma espécie de coisa sigilosa, meio criminosa, coisas que estavam em arquivos escondidos em diferentes lugares da Europa.

Para justamente falar dessas histórias. Trabalhei com pesquisadores em Kassel que se debruçaram sobre a Documenta. [...] Grande parte deles Trabalha com biografia dos atores das primeiras exposições e as pessoas foram chamadas de nazistas, eu também as chamaria de nazistas. Nazista é membro do partido Nacional Socialista. Então, essas pessoas eram membros do partido. Depois disso, elas trabalharam na reconstrução e E afirmavam que reabilitariam a modernidade. Sempre diziam que iam se dedicar à arte degradada, vamos dizer assim. É um termo dessa época.

Anos 50, vai ter essa modificação. Aquilo que é importante, na verdade, na retórica da exposição nazista, da arte degenerada, é a deformação da modernidade junto com o antissemitismo. E essa arte é retomada agora, mas sem que os artistas judeus sejam parte dessa retomada. Então, isso é um fenômeno que nós encontramos nos anos 50 na Alemanha, na Europa, em vários lugares.

É um tema ao qual a Documenta, no século 21, ainda se dedicou pouco a isso. Como você disse, Gabriel, a Documenta 14 aponta para isso com sua exposição, agora, não deveria ser uma provocação retomar isso na Alemanha. Não nessa Alemanha como ela gosta de se apresentar.[...] Porque ainda no século 21, sob certas condições, isso é aceito. Eu acho que vai ter uma mudança de paradigma nessa exposição do museu histórico.

Eu quero recomendar vivamente para todos os pesquisadores. Porque tem muita pesquisa da história da documenta. Diante desse pano de fundo de tema de crise e cura da documenta 13, vamos certamente ter algumas coisas novas para nós. Não tenho certeza se isso surgiu pelo trabalho de uma pessoa que vem de fora. Os mitos entre aspas  que ela encontra ali. Porque são mitos muito alemães. Uma cidade que foi destruída por bombas, a crise, a fuga é o tema dessa documenta 13. O local onde as armas eram produzidas em Kassel, ainda tem muita indústria de armas, é hoje o campus da universidade e ali há um certo debate. Não é tão crítico como a Alemanha sempre diz que é crítica. E eu acho que seria importante que a universidade fizesse um evento em
que a gente pudesse se debruçar na história dessa produção de armas nesse local onde hoje é a universidade. [...] Kassel é um lugar muito emblemático que é tanto de crise como de cura. A documenta é apresentada como uma fénix que renasce das cinzas e não como  um objeto histórico que também exige um debate crítico em relação a continuidade. Para ser completo, algo que aparece também no meu texto, os nazistas também assassinaram pessoas. Também é tema de publicações da Society of friends of Halit. A questão do político e do assassinato. Então, é um local muito atual devido aos temas. E essa atualidade é muito polêmica. Ela é dúbia ainda.

 

Lorena

Ok, então eu vou fazer a minha pergunta nesse sentido. Primeiro, queria agradecer o Vinícius pelo convite de estar aqui. Para mim é muito, muito bonito, porque estou num evento com a minha orientadora de doutorado, que é a Nora, e com a minha orientadora de mestrado, que é a Cláudia. Então, estou me sentindo muito reconhecida aqui, academicamente, nesse evento. Queria agradecer esse convite estar podendo conversar com vocês.

E a minha pergunta vai um pouco no sentido... Tentei trazer um pouco da minha vivência em Kassel. E das coisas que a gente viveu junto nesse um ano que eu fiquei lá fazendo meu doutorado. Que acho que é o que eu posso trazer um pouco de aporte, diferente dos meus colegas que têm outra trajetória. E daí, Nora, eu queria te perguntar um pouco sobre... Você fala no seu texto sobre como o museu se tornou, desse pequeno museu ocupado em Viena, acabou se tornando um retiro, um lugar onde a gente pode pensar e viver. E a gente viveu muito e conversou muito sobre isso.

E eu queria trazer um pouco seu contexto que também é lincado à minha pesquisa de doutorado. Que tento imaginar quais seriam essas outras possibilidades de instituição artística no futuro, e como a gente pode, através dos trabalhos artísticos coletivos como dispositivos, pensar outras estruturas. E eu queria trazer um pouco o conceito de para-instituição, que você traz no seu texto Para-Museum of 100 Days: documenta between Event and Institution.

[...] Eu queria te fazer a pergunta que é: como esse conceito de para-instituição, como é que a gente como instituições de arte, que eu acho que é o que você traz um pouco no seu texto que a gente traduziu para essa edição da publicação que a gente está conversando agora, pode trazer, pode conduzir para uma necessária mudança de subjetividade. Então, alguns exemplos de como para-instituição, se você puder trazer alguns exemplos, também, coisas que te inspiram ou que você tem visto...

De como o museu pode, de fato, se tornar esse lugar de estudo. Que é o que a gente sempre conversa. Do Each one teach one. Como é que ele pode se tornar esse lugar de troca. E também esse lugar de convivência, em que os acordos de convivência e de coletividade são tensionados e são postos a provas para novas construções de modos de vida, mesmo.

 

Nora

[...]. As para-instituições, eu uso esse conceito, na parte do "para", do grego... Eu entendo isso como sendo parte da instituição, mas também é algo a mais, fora da instituição. Ou seja, é uma possibilidade de fazer algo que ainda não existe, mas realizar já o hoje.

Isso se aplica a grandes instituições, por exemplo, quando, às vezes... Isso significa que o que acontece nas situações, não somente dentro da instituição, mas, às vezes, à sombra da instituição. Mas também práticas em grandes instituições, também levam a pequenas criações. Uma estratégia alternativa de futuro para fazer com que isso aconteça já no presente.

O meu sonho seria que a Documenta fosse alguma coisa assim. Acho que não é possível de se fazer, por isso estou hoje em Hamburg. Mas, como um exemplo em museu, temos o Museu Volkskunst, de arte popular, e o diretor tenta fazer isso. Então, nós somos um museu do povo austríaco. E o que é esse "o povo"? É meio problemático, sabe, com essa ocupação nazista. E foi usado muito pelos nazistas. Mas ele diz: bom, está bem, então, como é que hoje podemos trabalhar com isso nesse nosso edifício, nossa construção? Alguma coisa que seja para as pessoas ou para o povo.

Então, ele entende como um lugar onde você tem vários grupos ocupando isso. Na coleção permanente, há um projeto muito interessante com jovens intelectuais, com curadoras que se refugiaram na Áustria. E que fizeram intervenções nesse acervo com a sua história de fugas. Todas as pessoas que moram na Áustria são o povo. Então, nesse sentido, eu vejo uma para-instituição. Um museu que se leva tão a sério que discute, que questiona quem é o museu e quem somos nós, povo. Um outro exemplo de um contexto menor, por exemplo o museu em Helsinque, um grupo auto-organizado, de artistas mulheres que, juntas, fizeram o museu das formas impossíveis. Isso também já está acontecendo, acho que há seis anos. Acabou de receber um prêmio na Finlândia.

E não é bem um museu, mas é um espaço dentro de um shopping, dentro de Helsinque. Um shopping center construído nos anos 70. E, hoje, é um espaço para negócios se reinventarem. Pequenos negócios, como outras instituições. Então, tem cabeleireiras, tem salas de oração, tem restaurantes.

Então, veja, você tem um cabeleireiro de um lado, uma sala de oração do outro lado. É um espaço que tem também uma biblioteca. É um lugar para criação de arte colaborativa. Por exemplo, um escritor muito interessante veio do Irã e trabalha na Finlândia. Já ganhou prêmios na Alemanha. E lá, ele dá workshops de composição. É um lugar poético, onde as pessoas fazem textos em árabe.

E é muito interessante, porque são pessoas que falam uma língua, mas o mundo que vivemos tem antagonismos entre as pessoas que não falam a mesma língua, que se contrapõem. Mas, nesse espaço, você reúne e cria literatura possível. Filmes coletivos também são criados. São workshops, por exemplo, de bordado. E também os diretores se revezam. Isso seria um outro exemplo, para mim, também, de uma instituição que recria as instituições, aquelas formas que seriam impossíveis, acabam a ser possíveis.

[...]Ao usar alguma coisa, você cria uma utopia ou faz a utopia possível. Então, uma ação concreta faz com que a utopia já se realize hoje. Eu talvez teria outros exemplos, mas acho que a gente pode seguir adiante com a nossa discussão.

 

Vinícius

Agradeço. Acho muito pertinente essa discussão, também, sobre a instituição. Até vou chamar agora o Tiago Machado. Tiago me chamou a atenção em relação ao seu texto, Nora, que ele também é um texto que se situa dentro de uma crítica institucional. Ele tem um aspecto que depois a gente pretende discutir, mais adiante. Esse aspecto que você falou, de uma volta ao passado, de um futuro hipotético. E através de materiais de arquivo... Mas que ele também opera dentro de uma crítica. Então, talvez passe para o Tiago Machado, que pode seguir um pouco nessa direção.

 

Tiago Machado

Olá, bom dia a todos! Enfim, é exatamente isso, Vinícius. Eu estava pensando até em fazer essa pergunta na sequência aí da Lorena. Porque era exatamente essa dúvida que eu tinha formulado aqui[...]. Eu queria então voltar ao texto da Nora, na verdade. Acho que é um texto muito interessante, mesmo. Se uma leitura que eu recomendo para as pessoas que estiverem nos ouvindo. Que acessem realmente essa tradução.

[...]  um texto muito interessante, que faz uma reflexão que eu acho que tem muitas camadas. Muitas camadas que a gente poderia explorar. Eu gostaria de explorar agora, uma que tem a ver com essa questão da crítica institucional e também um pouco com a pergunta da Lorena. Pelo que eu pude entender do texto, esse algo que não está no lugar, me parece que está relacionado com a estrutura geral do funcionamento das exposições, das grandes exposições.

Dito de outro modo, eu falaria mais ou menos o seguinte: uma coisa é você representar as pautas de uma democracia. Outra coisa é você pensar as estruturas de representação que operam para que isso seja possível. Então, nós temos uma democracia, ou pautas representativas dessa democracia, que são representadas nas grandes exposições. Porém, não se discute a estrutura de representação.

Nesse sentido, você mencionou no texto a questão do pós-político. Dessa questão que parece emergir um consenso, no qual, dentro dessa ideia do pós-político, a cultura aparece como um bem administrável no interior do neoliberalismo. Uma coisa que me chamou a atenção no seu texto também, foi a seleção da fotografia da equipe curatorial da Documenta.

Eu acho que ali me parece muito claro... Aparece muito claramente essa sua argumentação de pensar um pouco essa contradição entre aquilo que é representado e suas estruturas de representação. E o texto termina com uma proposta de levar as pessoas que estão vendo essa exposição para uma plenária. Eu fiquei imaginando assim, bom, o que é essa plenária? Entende? Como ela se estrutura? Quem participa dessa plenária? Quais são suas pautas? O que será discutido?

Seria possível, por exemplo, e aí eu extrapolo o texto, com certeza, estou indo fora do texto, mas pensar: bom, será que é possível que uma exposição possa ser discutida com os espectadores? Porque é isso que está implícito, um pouco, no final do texto, né? Então, eu gostaria de... Se você, claro, já pensou sobre isso. Gostaria que você também falasse um pouco sobre o que você imaginaria que seria essa plenária que está lá no final do nosso texto.

 

Nora

Muito bom poder falar com você. E essa pergunta me toca muito. Eu peguei dois pontos que gostaria de trabalhar na sua pergunta. Primeiro: como é que a cultura se mostra no pós-político, e o segundo ponto... É o que a gente conversaria nessa plenária, que seria depois do texto. O primeiro ponto, preciso dizer, eu gostaria de pensar um pouquinho mais, viu Gabriel, da sua pergunta, porque...

Eu estou pensando nisso, justamente, nesse momento. Como é que pode ser que, no nível de representação, todas as críticas podem ser discutidas, mas que não podem ser traduzidas em estruturas. Hans Haacke falou da "gentrificação" com o seu trabalho[...]. Hoje, nós temos uma nova apresentação no MoMA, onde as exigências destas condições de trabalho e condições financeiras estruturais das artistas de 1970 são expostas nas vitrinas.

Mas, ao mesmo tempo, as condições de trabalho são hoje ainda piores do que eram nos anos 70. Então, o MoMA não vê contradição. Ou não vê essa contradição quanto um problema. Então, as instituições não acreditam mais naquilo que elas deveriam representar. É uma coisa muito inquietante isso. É incrível. E, talvez, isso signifique que hoje em dia nós não falamos, ou não falamos tanto de representação. Antes, a gente teria medo, se ninguém acredita em representação, a gente talvez trabalhasse junto.

Hoje, com outros meios... Nós somos regidos com outros meios que não a representação. Por isso, essa crítica da representação não é mais o meio mais importante da crítica. Naqueles cultural studies de 1970, isso ainda era importante. Mas isso me inquieta também, porque quem sabe todas as nossas exposições críticas, essa crítica da representação, elas já eram pioneiras para esse esvaziamento da representação.

Hoje, é possível mostrar tudo. Nós temos muitas artistas negras que fazem suas exposições. Porque não existe mais essa coisa da representação versus a política. Nós já falamos um pouquinho com o texto, mas hoje ainda estou pensando mais sobre isso. Porque eu quero dizer, o que quer dizer essa prática pós-representativa. Ou será que ela é pós-política também, da forma que ela é dirigida? Mas vamos ver, então...

Então, isso era o primeiro ponto. O segundo ponto, o que vem depois do texto, eu já publiquei a continuação. E nesse texto, o que eu tentei responder: o que acontece com essas pessoas que ocuparam o museu. Se elas não estão, somente, ocupando o museu, mas se elas passam a dirigir o museu. Não porque elas são bravas e muito fortes, mas porque ninguém mais tem condições de fazer isso. A gente vê isso na Áustria e nos Estados Unidos.

Então, os diferentes governos perdem, digamos... Então, o governo de extrema direita cai. E agora as ocupadoras podem fazer o que quiserem. Aí vem a pergunta: como é que a gente vai lidar com essa dificuldade? O que nós fazemos, agora que a gente pode fazer alguma coisa? Será que a gente quer abrir o museu? Como nós vamos trabalhar juntos? Como nós vamos criar as condições econômica?

Quem vai... Como vamos decidir? Como é que vai ser o processo de tomada de decisão deste novo museu? Então, eu acho que, na plenária, deveria ser discutido o segundo. Nós podemos pensar em outras estruturas e não somente outras formas de representação. Isso tem a ver com a gente ser solidário, com trabalhar junto a palavra público. A gente sempre pensou nisso junto. De repente, isso foi separado. O público não é uma coisa pertencente a todos. Mas o público, commons, as pessoas, o povo. Mas a maioria dos programas que nós temos, acabam sendo financiados por partes privadas, por pessoas, instituições privados.

Então, nós já não vemos contradição entre ter uma coisa público, privado. E eu acho que aí tem alguma coisa errada. Nós temos que voltar ao público como commons, ou seja, não é só para a plenário, o que nós vamos mostrar, mas como nós vamos organizar ou estruturar, quais são as condições econômicas que nós devemos criar?

 

Vinícius

Eu acho extremamente pertinente essa colocação. Quase uma tradução, Nora, de... No Brasil, o Estado já abandonou os museus há muito tempo. E as instituições privadas tomaram conta do cuidado do que seria público. E a pergunta que talvez fique, bom. Eu vou passar, claro, para o Thiago de Paula. Até faria a proposta, talvez o Thiago já faça duas questões. Já a segundo em relação à arte educação, que me parece ter aí um bom encaminhamento.

Mas só a reflexão que me ficou: se agora o privado abandonar também os museus... Porque o público massivo era o que fazia que o interesse privado fosse aos museus, pelo menos no Brasil desde os anos 90. O patrocínio privado de museus públicos funcionava na medida em que você tinha públicos enormes, exposições próximas de 500 mil pessoas. E agora, a questão que nós vemos hoje é de uma crise de, sobretudo, educadoras e educadores.

E eu vejo isso pelo pelas minhas alunas e alunos que trabalham muito nesse campo. E que perdem os seus empregos. Foram os primeiros demitidos por esses sistemas privados de gestão pública. Então, só esse comentário um pouco sobre a nossa situação local. E eu passo para o Thiago de Paula. Acho que, se Thiago sentir à vontade, ele poderia já colocar as duas questões. Eu acho que a gente poderia já falar, também, sobre essa questão do público e da arte educação.

Thiago de Paula

Sim. Gente, eu acho que tem sido ótimo aqui. Tem sido, realmente, uma ótima seção de estudos, na verdade. Para repensar algumas questões que não estavam mais tão frescas na cabeça. Eu gosto muito dessa noção de pensar algo como estudar junto.

Sessões de estudo são aquelas coisas que acontecem de maneira um pouco improvisada e talvez precária pela distância e pela falta de intimidade que nós temos. E a gente vai se virando como pode para tentar desenvolver os argumentos que a gente quer apresenta hoje.

O texto foi uma surpresa. Na verdade, quando recebi semana passada, eu não havia lido ainda, Nora. Não sabia que esse texto tinha sido escrito. E eu não me lembro de termos trocado, no período que eu estava por aí. Então, acho que foi um misto de surpresa e interesse de saber suas impressões. E eu gosto muito que você parte desse lugar, essa leitura, em um futuro que ressoa algo meio pós-apocalíptico, na falta de uma melhor expressão.

Mas numa grande conversa, num diálogo bonito, com ficções visionárias de feministas queer, feministas pretas, e acho que é um universo que tem oferecido para mim e eu acho que para muitos artistas, um horizonte criativo interessante. Então, acho que é um lugar interessante para o texto estar. Especialmente porque, para muitas pessoas, especialmente pessoas, eu acho, que começam a se envolver ou começam a compor essa paisagem, especialmente no Brasil, uma paisagem artística que não estava dada há 30 anos.

E nisso, o Vinicius, vou tentar conectar as duas questões. Eu talvez me prolongue um pouco, mas vou tentar conectar as duas questões. Eu acho que tem um dado bem interessante, como a gente começou a conversa, do acesso. Então, acho que o lance da tradução era fundamental. E está sendo fundamental para que isso circule. Especialmente entre, acho, que os estudantes das universidades públicas do Brasil.

Que, pelo que as últimas pesquisas apontam, vêm de classes trabalhadoras. E, pela própria desigualdade que marca o país, não fazem parte, não dominam a língua franca das artes contemporâneas. Então, acho que isso já é um gesto bastante interessante. E o que eu vou tentar articular agora, é que eu gostei bastante...

Ser a última pessoa a fazer a pergunta é um espaço para refletir mas, ao mesmo tempo, é uma certa crueldade. Porque parece que faz você reorganizar e repensar sua pergunta a cada novo argumento que é posto. Mas eu vou tentar me aproximar um pouco do que o Tiago trouxe, quando ele discutiu um pouco da, talvez, de uma não reorganização estrutural dessas instituições que apresentam uma crítica.

Ou como a crítica institucional talvez encontre a maior fragilidade, o calcanhar de Aquiles talvez seja a própria estrutura. Não sei se hierárquica. As pessoas que compõem o corpo daquela instituição. Talvez aquilo esteja... O grande problema, o grande deslize da crítica institucional está ali. Então, eu queria propor duas perguntas, Nora, para você. E para a gente pensar juntos e juntas, na verdade.

E o que eu estava rascunhando aqui é que, considerando todas essas contradições que foram apresentadas, e acho que você trouxe grandes exemplos. E eu não sei se você verbalizou dessa forma, mas eu gosto muito da ideia de habitar as contradições que existem e que formam o sistema da arte global contemporânea que a gente vive. Porque acho que só habitando essas contradições, a gente consegue problematizar algo.

Então, acho que vai ser uma única pergunta articulando esses dois tópicos. Se esse Fórum ou essa plenária que você esboça no final do texto, se ele poderia funcionar como uma espécie de... Voltar um pouco. Tem muitos artistas e muitas artistas, e muitos curadores, já estavam trabalhando há algum tempo com esse possível caos que 2020 apresentou. Talvez por conta das práticas precárias, talvez por conta dos espaços que viviam.

E eu acho que já faz um tempo em que se tornou bastante perceptível um pouco da lógica perversa que as políticas de visibilidade apresentavam. Então, ao mesmo tempo em que elas articulam uma valorização de certos posicionamentos, ou de certas práticas artísticas. Então, ao mesmo tempo que artistas de origem africana ou artistas negros, artistas indígenas, artistas queer, e a lista é infinita, passam a ter um certo protagonismo na cena, essas políticas de visibilidade também capturam, neutralizam, enfraquecem a crítica e a potência, talvez, dessas práticas.

Então, o que eu queria que a gente tentasse discutir um pouco, é talvez como articular a recusa. E, voltando para o fórum, será que o fórum poderia ser um espaço de articulação? Poderia funcionar como uma espécie de espaço, de experimentação curatorial ou de experimentação dentro do campo da arte e educação.

Em que a gente pudesse articular recusa como uma maneira de bloquear a captura que essas políticas de visibilidade, pelo menos, no mundo como a gente conhece hoje, são lançadas. Estou pensam isso aqui no calor do momento, então me desculpa se eu sou um pouco não linear. Mas acho que a gente vai conseguir.

 

Nora

Espero que eu tenha entendido, porque o que eu entendi me deixa muito feliz. O que eu entendi da sua pergunta é que, para você, seria importante criar um espaço onde fosse possível viver essas contradições. Um lugar onde todos podem evoluir juntos e articular. Eu acho que eu também entender... Será que esse espaço, Fórum Permanente... O que vem depois do teste, como é que é a plenária, se a gente poderia levar isso muito a sério.

Então, não só o que não funciona, mas já que a gente tem essa plenária permanente no Fórum Permanente, será que ele poderia ser um espaço onde nós podemos discutir e viver e experimentar com um espaço para ação experimental dentro dessa contradição. Outras formas de pensar. Foi essa a sua pergunta?

 

Thiago de Paula

Foi exatamente esse caminho, foi isso mesmo que eu tentei esboçar. E eu acho que eu me apeguei à plenária do texto e mesmo o espaço do fórum, porque eu acredito, talvez, que esses experimentos são efêmeros. Por que? Porque parece que a todo instante, novas ferramentas de controle são articuladas. Então, realmente, é esse lugar.

 

Nora

Sim, eu acho muito importante que a gente comece a fazer experimentos para juntar teoria prática, representação, a crítica, a estrutura coletiva e esses experimentos coletivos. Que tudo isso seja reunido. Eu acho que isso seria realmente incrível, se a gente conseguisse fazer essa coisa de viver as contradições. Sempre tem essas contradições.

Em Vienna, nós pegamos uma contradição da sua vida, porque nós participamos de umas. E a gente escreve sobre a sua própria contradição, e procura um parceiro para ter uma correspondência. E eu pensei, então o meu texto seria sobre essa vitrine no MoMA, onde você tem as exigências da workers coalition, que elas exigiam naquela época e que hoje está numa vitrine lá no museu. E eu estou pensando nesse teste e eu estou buscando um parceiro. E eu vou escolher você, acho que vou te escrever, Thiago, um e-mail.

E eu acho que eu vou pedir para você, talvez, habitar e pensar nessa contradição comigo. É isso que eu queria fazer. E como um próximo prazo, talvez... E talvez também com os nossos estudantes aqui de Hamburgo, porque eu acho que, como cientista, com histórico, essa ruptura entre representação e estrutura, e essas contradições. Acho que é importante a gente trabalhar nisso.


Segunda Rodada de questões

 

 

Vinícius

Eu acho que seria um ótimo momento, talvez, agora, se a Lorena... Talvez, o seu vídeo pode servir como uma pausa também reflexiva. Se você se sentir à vontade, a gente poderia talvez entrar com a sua intervenção agora.

 

Lorena

Vamos nessa. Eu acho que a gente pode... Você que já viu o vídeo também, Vinícius, o que você acha? Eu pensei que a gente poderia passar o trecho do vídeo e depois eu faço a pergunta. O que você acha? Acha que funciona?

 

Vinícius

Perfeito assim.

 

Lorena

Né, vamos assim? Então, só explicando um pouco. Eu vou mostrar um trechinho de uma intervenção, de um trabalho da Documenta 13 feito pela Janet Cardiff, envolvendo a Alter Bahnhof, lá de Kassel. Que é o Alter Bahnhof Video Walk. Então, eu escolhi um trechinho dele, ele é um trabalho de 26 minutos. No YouTube tem um vídeo de 6, 8, alguma coisa assim. Eu escolhi um trechinho bem específico para falar de arquivo. Então, eu acho que a gente pode passar. Se o Sérgio puder passar aí, eu super agradeço. Eu sou péssima com essas coisas técnicas.

 

Vídeo

Quando as bombas caíam, o som era horrível. E a gente via as coisas desmontando de um minuto para outro. A gente via corpos espalhados pelas ruas, tudo espalhado pela rua. Pedras e ruas. Vamos ver o que tem aí nesse carrinho? Isso aqui é um monumento para celebrar os judeus que partiram para os campos de concentração desde essa estação. Foram crianças das escolas locais que escreveram as histórias. Pesquisaram. Embrulharam as pedras com essas histórias. E puseram aqui nessas vitrines como uma exposição. Aqui, os trens que saíram da Plataforma 13.

 

Lorena

Obrigada, Sérgio. Então, a minha pergunta, Nora, vai um pouco nesse sentido, eu acho, de que quando a gente lê o texto, algo estava fora do lugar, algo estava errado. Tem um caráter de uma volta ao arquivo. Desse confronto com o material, mesmo, em busca de pistas. Que eu acho que é, também, o trabalho do pesquisador. Que é: como a gente volta ao passado, tentando dar esse entendimento sobre o presente, e numa tentativa sempre de construir outros futuros.

Então, eu queria primeiro saber um pouco de você como você vê as práticas expositivas, também, como dispositivos que dão visibilidade, materialidade ao passado e ao presente. E eu queria saber sua opinião sobre esse trabalho. Porque é um trabalho que traz a questão do antissemitismo. E eu sei que você já trabalhou bastante sobre isso. Enfim, já fez exposições na própria Vienna. Enfim, queria saber um pouco a sua opinião sobre esse trabalho específico. Obrigada.

 

Nora

Em relação à sua primeira pergunta, o trabalho com arquivo. Eu acho que o trabalho com o material histórico, na verdade, é um trabalho que sempre possibilita novamente refletir sobre a escritura da história. Para mim, o trabalho de arquivo, eu tenho muitas referências. Walter Benjamin, para mim, é mega referência. Eu acho que aquilo que não é história dos vencedores, na verdade... Um bom arquivo... fala a partir do arquivo dos submissos, os subjugados etc...

Nesse sentido, a gente acha coisas que não deveriam ter sido arquivadas. Porque as fronteiras não são facilmente fechadas. Quando a gente faz fronteiras? Elas são sempre transpostas. E aquilo que não é arquivável, também está no arquivo. Por isso que o arquivo tem uma força explosiva muito grande. E o trabalho científico e artístico, justamente, tem a obrigação de fazer isso. É o ponto de corte entre trabalho científico e artístico.

Esse debruçar-se sobre aquilo que não é arquivável, dentro do arquivo. Que já está no arquivo. Para que isso seja forte, se torne norte. Isso, para mim, é o motivo, a razão pela qual eu faço muito das coisas que eu faço hoje em dia. Desde então, eu sou curadora, eu sou cientista. Porque, o que é importante para mim? Entender... Na verdade, eu não quero me deixar dominar pelas interpretações decorrentes. Eu quero debater, eu quero discutir o que foi. E, é claro, também para entender o que é agora. E também para que eu possa imaginar um futuro diferente daquele em que a gente parece estar o tempo todo.

Então, arquivar o não arquivável é a tarefa, tanto do trabalho científico quanto artístico. E o ideal seria que trabalhássemos todos juntos. Eu acho que artistas, nos últimos anos, fizeram muitas coisas, muitos achados, desenvolveram muitas brechas para cristalizarem e fortalecerem aqueles momentos explosivos. Isso é um exemplo. Mas também acho que é, um exemplo, a Documenta 13, onde eu sempre penso que o problema da institucionalização pela prática da memória, pode levar a uma petrificação também.

Nem sempre leva a um momento de abertura e de recomeço. Na Alemanha, por várias razões é complicado, tem muitas pesquisas a respeito, mas também pode se tornar um orgulho nacional. Então, isso pode ser problemático. A narrativa do país. Eu não sei se a gente pode mostrar isso a partir desse trabalho, mas o contexto da Documenta 13 não levou a história da Documenta tivesse sido retrabalhada criticamente. Mas foi marcado com essa estética da cura.

Que, na verdade, não corresponde à minha ideia de se debruçar sobre a história. Mas, mesmo assim, acho um trabalho importante. Eu também fiz isso quando estudante, analisei isso. Foi muito inspirador trabalhar com isso. Aliás, em 2012, algumas das fundadoras estavam em Kassel comigo, que depois fundaram aquele museu das formas impossíveis em Helsinque. Então, esse trabalho é importante. Tem uma estética própria que me envolveu, eu acho relevante, importante. Eu só queria mostrar os problemas disso tudo, também.

 

Vinícius

Eu chamaria agora o Gabriel e depois o Tiago Machado. Meus amigos, colegas pesquisadores. Que talvez façam algumas questões sobre as pesquisas em arquivo, que podem seguir, eu acho, nessa mesma direção.

 

Gabriel

Quer ir, Tiago? Aí, a gente faz... Eu fico por último. Falei primeiro, fico para o final.

 

Tiago

Na verdade, eu queria conectar, então, essa reflexão que a Nora estava fazendo, para ela dar uma continuidade, realmente, a essa reflexão. E pensando então esses dois domínios, tanto do arquivo quanto da arte e educação, eu queria que a gente pudesse conectar uma coisa com a outra.

Porque, além de pesquisador, como o Vinícius mencionou, eu também sou professor. E é muito difícil essa relação entre os arquivos, a produção de conhecimento histórico e o nosso papel enquanto educador. Claro, não são um arqui-educador, eu trabalho numa escola, não trabalho em uma universidade federal, esse tipo de coisa.

Mas a ideia aqui é que, muitas vezes, o arquivo é também visto de maneira não crítica pelos próprios pesquisadores. E, muitas vezes, as exposições que são feitas a partir dos arquivos, elas também representam os arquivos. Ela coloca, por exemplo, numa vitrine. Ela coloca a questão do arquivo como uma representação, também, do próprio arquivo.

Eu queria saber de você, Nora, se você entende ou tem alguma reflexão em relação ao papel da arte e educação, na construção de uma metodologia ativa, no sentido de romper essa caixa acrílica que, que muitas vezes, o arquivo representa para os estudantes ou para os espectadores e até mesmo, em algum grau, para os próprios pesquisadores. Então, é isso.

 

Nora

No meu trabalho, eu trabalhei com tema de educação sobre o Holocausto na sociedade, então tem esse aspecto didático. E era esse ponto de corte entre teoria e literatura na Alemanha, mas os Estados Unidos. E um projeto bem prático, trabalhando com jovens e com artistas. E aí, às vezes, a pedagogia, algumas coisas bem simples, são coisas chave. Algumas coisas funcionam, outras não funcionam. E uma coisa que funcionou muito bem nos projetos que eu acompanhei... Eu também não quero dizer o que não funcionou, mas vamos dizer o que funcionou.

Eles colocaram uma questão de pesquisa. Isso foi muito importante. [...] A primeira parte, as pessoas leram textos, fomos a exposições, fizemos visitas na cidade, no arquivo. Então, o berço do projeto só era dedicado à questão de pesquisa. Nós, pesquisadores, sabemos que ela não se identifica, mas tem a ver com você.

Eu não represento o meu grupo. Isso foi muito importante. Essa pergunta... Quer dizer, as pessoas podiam perguntar o que quisessem, os alunos. Não submissos ou subjugados a um grupo. Eles eram livres, na verdade, para fazer qualquer pergunta que fosse importante para ela. Eu sei que eu quero seguir essa questão até o fim do projeto. Isso é importante. E aí desenvolvemos um método.[...] A gente manipula as pessoas, as perguntas, porque a gente quer que eles façam perguntas onde a gente pode ajudar. Então, a gente manipula um pouco.

Por isso, a gente disse que um terço da verba, a gente vai contratar, vai levar para para especialistas, para as pessoas responderem. Onde a gente não pode ajudar como orientador. Então, a gente convidou especialistas que respondessem aos alunos. E aí, as pessoas ficaram felizes. E junto com pesquisadores e cientistas e artistas, foram trabalhando essas perguntas e encontraram um caminho para experimentar e tentar descobrir aquilo que eles queriam saber.

Isso, a gente achou muito bom. Não era o mais aquela caixa de acrílico, era uma coisa vibrante, viva. Para tentar responder e trabalhar as próprias questões. Eu posso citar alguns exemplos, por exemplo, no meu grupo. No nosso caso, tratava-se de Holocausto. A questão do Holocausto numa sociedade de imigração, nazismo, Shoá, Holocausto, etc. A gente também falou com os alunos sobre a diferença entre sistemas. Ali, que eles formulassem dúvidas. Dois jovens austríacos.

Um que tem origem Sérvia, e outro Croata. Os dois se entenderam muito bem. Mesmo porque no contexto diaspórico. Para eles, a guerra era um tema muito importante. Qual a ligação da segunda guerra com o guerra na Iugoslávia.  Então, esse foi o tema do projeto deles dizia diretamente a eles. Então, fizeram um vídeo sobre isso, uma espécie de talk show, com um pesquisador que entendia dessa questão. Então, a minha resposta a partir da pedagogia é separar menos pedagogia, pesquisa e arte. [...]

Porque todas as pessoas estão no lugar que estão porque perseguiram uma questão que elas queriam saber. E, por isso, todo mundo deveria ter o direito de fazer perguntas próprias que eu não possa responder. E não só algumas pessoas têm o direito a fazer essas perguntas. Eu acho que isso são questões de formação muito importantes, na área educacional. No contexto da possibilidade de formular as próprias perguntas.

 

Vinícius

Gabriel, você vai complementar?

 

Gabriel

Posso fazer uma última observação. Acho que todos aqui presentes, realmente... Reflexões muito interessantes. Algumas palavras chaves, também, aceitando essa ideia que o Thiago falou de estudar juntos. E eu acho que, se vocês me derem licença de voltar aqui para as origens, estudioso do Guy Debord.

Acho que o problema, talvez, aí da representação, gostei muito da Nora ter falado disso. Acho que é uma questão importante da gente pensar: em que pé estamos agora, neste momento, com a crítica da representação. Talvez, eu acho que uma coisa que ainda torna o Debord interessante de ser lido é que o sucesso das situações pós 68, faz parte do movimento que leva ao florescimento dos culture studies e a toda forma de disputa na representação.

Mas, no Debord, havia uma crítica do caráter separado da representação. Eu acho que esse é um lado da crítica da representação que a gente esqueceu um pouco, quando a gente está apenas procurando alargar e incluir na representação, esquecendo que a dimensão tautológica da representação espetacular, acaba criando as condições para que novos elementos sejam incluídos nessa representação, sem que nada de efetivo, para além da representação, seja transformado.

Que acho que é um pouco o problema que a Nora levantou. Então, você pode representar uma série de discursos críticos, dar espaço à representação aos atores excluídos, e ainda assim, a instituição continua a ser exatamente igual ela era antes. Pode estar ali na vitrine à crítica que foi feita à instituição.

Mas seu pressupostos hierárquicos, outra palavra chave que apareceu na fala do Thiago e que está no texto da Nora também, continuam os mesmos. A pergunta do Tiago Machado também trazia esse problema, quando ele questionou se nessa forma de organização mais direta, que era imaginada no texto da Nora com a ideia de uma plenária dos participantes, se esses participantes incluiriam os espectadores.

Se a gente fosse pensar uma organização radicalmente democrática, no espaço de uma instituição expositiva, a gente se confronta a separação fundacional da arte, que é a separação do espectador. Aí, a gente volta, não à toa, toda essa reflexão sobre os limites da representação, nasceram de reflexões que vieram, no primeiro momento, da arte e das vanguardas artísticas, no seu questionamento da própria separação entre arte e a vida. O objeto artístico e o espectador, etc.

Essas questões, acho que a gente ainda continua um pouco assombrados por elas. Elas não estão inteiramente resolvidas. Talvez fosse interessante voltar a pensar essa dimensão separada que, como disse, nasceu de uma reflexão na arte.

Então, isso mostra um certo limite, uma certa aporia da arte naquilo que ela pode representar criticamente. Porque aquilo que ela representa criticamente, não necessariamente vai conseguir exceder a mera representação. É necessário algo a mais. É necessário um passo a mais para que aquilo que está sendo representado criticamente, chegue a tocar, de fato, o real, chegue a tocar como as instituições são organizadas, como o cotidiano é vivido, etc.

E a gente teria que pensar, talvez, o que falta para esse passo a mais. Então, talvez, aí uma outra forma de pensar a crítica da representação seria interessante. Que não sei se é pensar... A Nora usa um termo de estar além, de a gente já estar após isso. De uma pós crítica da representação. Ou se é, talvez, recobrar, algo do início dessa crítica da representação, que nos lembrava o caráter separado da representação. Talvez, pensar uma crítica da separação, acho que continua a ser interessante. Era um termo do Debord lá em 61.

Eu acho que continua a ser interessante. Porque vale para o que acabou de ser dito aqui. A Nora estava falando agora que a gente tem que tentar suplantar a separação entre a educação e a pesquisa. Ou nesse debate sobre o arquivo, a gente está pensando como, de alguma forma, suplantar a separação entre a atualização do material, a atualização viva do material de arquivo e aquele caráter provavelmente arquivado, esquecido, engavetado.

O que parece reger a prática arquivística. Que é um pouco o que está ali no trabalho da Janet Cardiff que a Lorena mostrou. Porque ela pensou um jeito de um uso de uma tecnologia, de forma que você está vendo naquele momento, naquele momento atual, você estava vendo um material de arquivo que aparece de alguma forma...

Ela tem toda a tecnologia para reconectar aquilo com aquele espaço que você está habitando naquele momento. E fazer uma superposição de temporalidade naquele mesmo espaço. Mas que aí seria necessário... Eu acho um trabalho super interessante. Mas que, como a Nora disse, seria necessário também a gente relativizar a inserção desse trabalho dentro da proposta da Documenta 13 como um todo. Que não fez esse passo a mais de pegar esse material histórico, poderia levar a uma reflexão crítica mais profunda da instituição, possível transformação da instituição e exposição, esse passo não é dado.

Porque isso é apenas apresentado como um acabado, algo finito. Não há uma atualidade presente, não há potencialidade aberta. Aquilo que é apresentado, é apresentado como um processo que se deu no passado e que se resolveu. A Documenta resolveu, curou. A cura, como disse a Nora, é a palavra chave nessas exposição. E como se a arte tivesse já curado esse problema do passado histórico.

Então, estou só pensando aqui em voz alta junto com vocês. Como seria interessante pensar, então, talvez... Como suplantar essas separações na relação entre essas diferentes esferas. E que vale para o arquivo também. Se o tema é arquivo, acho que isso vale para o arquivo também. Um problema, a gente teve um período em que o problema do arquivo foi bastante discutido, e um texto que era muito citado era o texto do Derrida. Aquele texto Mal d´archive.

[...]

Só terminar isso, para trazer de volta, porque você colocou o arquivo como tema. Então, também, o problema lá era basicamente isso, esse sentido nomológico do arquivo, que era o comando humano, o comando do arquivo, quem ordena o arquivo.

E eu acho que essa é a separação que a gente tem, que a gente se confronta na arte, na relação com o arquivo. Geralmente, o artista ativa o arquivo. A exposição pode ativar o arquivo, mas ela não comanda a constituição do arquivo. Então, essa dimensão nomológica original do arquivo não está em jogo, nos usos que a gente faz dele. Seria suplantado de alguma forma, se a gente conseguisse pensar a constituição do arquivo já como uma constituição de possível atualização. Que não é como nós a pensamos.

Talvez é uma aproximação, de fato, entrar a prática artística com o trabalho institucional do arquivar, seria interessante nesse sentido. De trazer essa demissão que a arte tem de pensar o arquivo como potencialidade aberta, como elemento de atualização. Talvez, no momento que esse paradigma passa a reorientar o paradigma de constituição do arquivo, aí talvez haja uma mudança de fato qualitativa do que é e foi, até o momento, o arquivo.

 

Vinícius

Talvez a Nora possa comentar essa parte.

 

Nora

O meu comentário é o seguinte, eu concordo em gênero, número e grau com o Gabriel, com tudo o que ele falou.

 

Vinícius

Então, eu passaria a palavra para o Thiago de Paula. O Thiago ficou numa posição muito muito ingrata, na intersecção entre dois temas. Então, Thiago, talvez, se você quiser colocar uma outra questão. Ou mesmo, enfim, recuperar algo que era da sua questão original, enfim. Fique à vontade.

Thiago de Paula

Não. Na verdade, eu fiz uma piada. Não era tão ruim assim. E eu acho que essa intersecção é até bem produtiva, porque a gente está falando sobre o quanto esses temas, esses tópicos, não se morrem, ou eles não estão fechados em caixas ou tudo mais. Então, não tem problema nenhum, não, Vinícius, imagina.

Eu fiquei pensando, primeiro, Lorena, que legal que você trouxe um trabalho, porque a gente estava falando de arte sem artistas. E algo que frequentemente acontece. E foi ótimo que veio. Deu uma arejada e trouxe algumas outras ideias. Eu tenho bastante precaução quando trabalhamos com arquivo, especialmente assim, como uma prática curatorial que se debruce sobre arquivos.

E eu acho que o que me fez pensar muito ou ter mais cuidados... E aqui é mais uma pergunta comentário. E eu acho que nem é só para a Nora. Mas eu acho que todo mundo aqui aparentemente trabalha bastante com arquivos. E eu acho que o que eu vou dizer, talvez possa ser complementado ou criticado, mesmo, por todo mundo aqui da roda. O que eu estava pensando é que... A Saidiya Hartman, a pensadora preta estadunidense, ela tem esse texto chamado Vênus em dois atos.

E eu acho que dialoga muito com o texto da... É anterior a esse, mas também está em diálogo total. Ele dialoga muito com o texto da Nora, porque o que ela argumenta é que, depois de anos em busca por respostas nos arquivos da escravidão, até mesmo tendo ido para a África Ocidental, passando temporadas em Gana, as perguntas que ela tinha jamais poderiam ser respondidas por aqueles arquivos.

E eu acho que isso está em total acordo com o que o Tiago e o Gabriel falaram, sobre quem organiza esse arquivo e os perigos do que se encontra nesse arquivo. E é a partir daí que ela quase como... Ela não abandona o arquivo, mas ela passa a ficcionalizar. Que eu acho que é quando ela cria esse termo, alguma coisa como critical fabulation. Que é, na verdade, olhar para esse arquivo com olhos muito críticos.

Mas o ponto, talvez, o argumento central do texto, seja uma discussão em que ela não consegue descobrir quem é Vênus, que era uma das mulheres negras que estava escravizada. Então, ela sempre era citada ou como uma prostituta, ou como uma pessoa escravizada, mas era impossível realmente entender da onde ela vinha, quem ela era, onde ela morreu propriamente. Então, detalhes que não viajaram ao longo do tempo. E esse é um ponto.

Então, realmente, os limites do arquivo especialmente hoje. Então, acho que isso nos coloca uma questão: como, especialmente aqui no Brasil, como nós olhamos para esses arquivos. E os usos ainda, eu acho, que se fazem desses arquivos, sejam arquivos da ditadura, arquivos da escravidão.

Feito tanto por pesquisadores quanto por artistas. Como a volta dessas imagens não reiteram ou não reencenam uma violência. E que, ao mesmo tempo, a gente poderia pensar: ok, essas imagens ou esses documentos precisam ser vistos... Então, acho que isso vai trazer de novo uma discussão sobre a visibilidade. Essa discussão precisa estar posta, ela precisa ser apresentada.

Mas como a gente não reelabora as cenas de violência, quando nós olhamos para esses arquivos. Que são documentos de violência. Então, mesmo que, frequentemente, eles sejam encarados mais como objetos que carregam uma verdade. Essa verdade quase nunca é entendida como violência. Esse era um ponto.

Um ponto pergunta. Então, talvez, como olhar para esses arquivos sem, realmente, reencenar cenas de violência. Foi legal, foi louco que você trouxe Debord, faz um tempo que eu não pensava nele. Mas tem algo interessante ali no Debord que conecta com o que eu estava pensando também no começo da nossa conversa, que é: o que a gente está discutindo também, o que a Documenta discutiu mais recentemente sobre representação, também tem sido discutido por artistas pretos estadunidenses desde os anos 60, de alguma forma.

E aí, por isso que eu trago o Debord, porque foi alguém que dialogou intensamente com movimentação preta dos Estados Unidos e, de alguma forma, acho que com a cena artística. Apesar disso não ser sempre tão visível. Mas o que eu estava pensando é... Era algo que eu ia trazer na outra pergunta, mas... Nós estamos discutindo também como a Documenta funcionou como uma espécie de arquivo da arte contemporânea.

Mas é também interessante olhar como esse arquivo ignorou reflexões tão potentes que estavam acontecendo nos Estados Unidos nos anos 60. Que eram artistas pretos que se recusavam... Ou não se recusavam só, mas que estavam articulando quase esse binômio visibilidade, não visibilidade. Então, uma série de artistas que se engajou em... Que recusaram a representação, porque... É impossível representar a violência.

Então, a violência opera de uma maneira muito outra, que é impossível representar a violência. Então, que tipo de práticas abstratas, entre aspas, essas pessoas articularam, para fugir dos perigos ou dos limites da representação, dentro desse mundo que a gente vive. Então, eu acho que é isso que é algo interessante. Porque quando a gente olha para a história da arte contemporânea, a gente frequentemente ignora esse momento, que é crucial para o que a gente vive hoje, eu acho.

Então, ele é um momento que não se resolveu. Então, é um arquivo muito recente, talvez a gente poderia olhar dessa forma, mas é algo que não se resolveu. Que não está propriamente nos anais da arte contemporânea. E é fundamental para a gente olhar para o uso do arquivo, para a gente entender o que a gente tenta materializar hoje como arte contemporânea.

Esse é o comentário. Então, por isso até abri, porque não era uma pergunta e eu não queria respostas, porque acho que não era simples assim. Mas é esse lugar. E daí, pensar em alguns outros artistas, como o próprio Tony Cox, que tem utilizado esses arquivos. A maneira como revolta de pretos estadunidenses foram transmitidas na televisão. Especialmente, como a narrativa oficial foi organizada em cima daquelas revoltas. E ele se alimenta muito do Debord. E de toda uma crítica ao valor. E também tem, como a gente não olha muito para o que aconteceu na cena de arte contemporânea dos anos 80, na África do Sul, durante o estado de emergência.

Então, o que significava fazer arte quando você tem que se manter vivo, né? Eu acho que esses exemplos que eu trouxe aqui, na verdade, era só para a gente pensar um pouco como arquivos para o futuro. Eu acho que, se a gente tem dúvidas ou se 2020 traz algo que nos deixa meio, não sei, ansiosos, talvez, sobre o futuro, acho que é sempre interessante olhar para esse passado recente como uma maneira de entender que é possível rearticular. Tipo um papel, talvez, de práticas artísticas rearticulando vidas, é meio esse lugar.

Vinícius

A Nora reagiu várias vezes à sua fala. Infelizmente, o público só vê quem está com a fala. Nora, então, talvez você queira verbalizar essas reações. E também comentar o que disse o Thiago.

 

Nora

Muito obrigada. Tantos comentários, tanta coisa que eu gostaria de discutir com mais detalhe. Em primeiro lugar, em relação à sua pergunta. Aquilo de arquivável ou não arquivável, isso vem desde que eu li Waywards lives beautiful experiments. E está aqui, esse é o livro. É um livro muito importante para a questão que nós estamos discutindo, e tem a ver com o que o Thiago falou. E ela acha nos arquivos uma coisa que ela buscava. Ela não acho... A auto-representação das mulheres que viviam naquela sociedade racista.

De um lado, elas estavam expostas à violência, vivem a escravidão. A gente entra nos arquivos, também, por um direito de entender essa situação. Elas chegam no arquivo com suas próprias ideias. Hartman trabalhou durante dias, meses e anos com essas imagens. E ela procura ver com isso, entre a ficção e os arquivos, para ver isso e desenvolver uma linguagem, que essa auto-encenação e esse potencial sensual que vem dos olhos das coisas que não foram vistas.

Essas coisas que não foram arquivadas. Como você pode mostrar isso? E eu diria que sim, está certo. Os arquivos representam a lógica colonial, da força dominante, da polícia, que levou a essas divisões. Mas não somente isso. Assim como a gente tem limites no mundo, como nações e essas classificações racistas, mas sempre tem gente que supera essas barreiras, essas fronteiras. E os arquivos também têm as coisas que contradizem essa classificação ou essas mudanças.

Então, se você vê as fotos e você vê, também, as lacunas, o que falta. O que falta também são pistas. E dessa auto-imagem... E ela disse isso... Não arquivável, mas ainda assombra os arquivos como fantasma. E, para mim isso é uma obrigação de explorar. Temos que explorar esses fantasmas que assombram os arquivos. Então, essa seria a minha perspectiva. O arquivo como uma infraestrutura espectral, uma infraestrutura não somente do que é dito, representa a história.

Mas também representa de outras reformas que, talvez, não era a intenção de quem fez o arquivo. E contra esse pano de fundo, talvez passamos à outra história... Eu acho que a nossa tarefa, se a gente quer falar disso, eu acho... O que eu tento fazer no meu trabalho, também por causa da minha cooperação com a Lorena, esse cânone, procuramos expandir esse cânone dessa história da arte, a história dessas exposições.

Vamos ver em 2022, também, com a próxima Documenta. E também temos um podcast de 10 anos, é o último episódio. Vai ser feito em inglês. E com o texto do Thiago, que eu espero que ele consiga terminar até o fim do ano.[...] Se a gente pensa no começo dos anos 50, 60, nos Estados Unidos, William Greaves, cineasta americano muito interessante, também tem a ver com a representação, resistência, porque...

Eu acho que Debord também ecoa em seus filmes experimentais. [...]. Com essa prática colaborativa. William Greaves, e o que eu acho interessante da história da Guerra Fria, em 66, ele é mandando para atacar, por uma organização americana, para documentar o que está acontecendo.

Está lá no YouTube, você pode ver, mas isso nos mostra a importância de uma exposição em Berlin. Que também em Paris foi exibida no mesmo ano. O filme é um documentário muito bonito, do ponto de vista de um afro-americano. E que mostra, dentro dessa lógica da Guerra Fria... E os russos também mandaram outro time, então...

Ao lado da sua tarefa, ele também mostra essa possibilidade de ter uma interação interativa ao se debruçar e pensar junto nessas formas de expressão artística. E também sobre a diáspora africana. Tudo isso aconteceu no Festival de Dacar daquela época. Olhando hoje, se a gente comparar esse filme sobre o festival, os materiais da Documenta dos anos 60, por exemplo, de 68... Mas uma que foi antes de 68. Acho que era um material muito menos relevantes se a gente olha hoje, do ponto de vista hoje, especialmente porque Benin, isso aconteceu junto com essa exposição e tudo.

Ou seja, nós precisamos fazer uma revisão dessa história da arte contemporânea. Os arquivos podem nos ajudar. E eu acho que a gente deve prosseguir fazendo essa nova análise a partir dos arquivos, para reescrever a história da arte contemporânea.

 

Considerações finais

 

Vinícius

Excelente. Eu acho que a Nora fez um bom fechamento. Infelizmente, nós não temos perguntas do público que nos assiste ao vivo. Mas, como foi dito aqui, da ausência de artistas, temos um artista presente que é o Gilberto Mariot. Então, perguntaria, de repente, se o Gilberto, para encerrarmos, que também já estamos chegando no nosso horário. Se o Gilberto ou Martin gostariam, de repente, de fazer as últimas questões ou comentários. E então encerramos.

 

Gilberto

Bom, esse tipo de acusação que eu sofro, de tempos em tempos, é parte da nossa relação aqui profissional. Mas estava aqui pensando e colocaria, não uma pergunta, porque eu acho que o nível do debate, enfim... Já colocou grandes questões. Mas colocaria uma abertura possível. Quer dizer, eu percebi que aqui, enfim, houve muitas boas reflexões, inclusive disparadas aí pela edição da revista.

A Periódico Permanente é uma revista, enfim, tem muitos limites gráficos, eu diria. Ela é modesta, graficamente. Mas eu colocaria que, enfim, acho que uma ideia fundamental do Fórum, não só da Periódico, mas do Fórum Permanente desde seu início, é ser esse lugar de contradição que o Thiago muito brilhantemente colocou como uma possibilidade. Thiago de Paula Souza colocou hoje aqui como uma possibilidade.

E eu faria o convite, deixaria totalmente aberto para se vocês tiverem a paciência de propor coisas ainda para esta edição e para outras... Quer dizer, eu acho que seria maravilhoso se essa conversa continuasse na própria edição ou edições subsequentes. E acho que, de qualquer maneira, ela não está fechada. A gente ainda vai receber alguns conteúdos, imagino, que ainda estão sendo traduzidos. Ainda vai haver um relato crítico sobre essa conversa.

Ainda podemos fazer outros links. E o funcionamento do Fórum, de maneira geral, é feito desses links. É uma plataforma que tenta se pensar criticamente como plataforma. E, consequentemente, coloca a questão do arquivo, que aparece aqui já desde a sua fundação. Então, é um convite que eu faço a vocês para, enfim, qualquer participação e qualquer desdobramento, seria uma alegria para nós. E é isso. De resto, agradecer pelas participações de vocês, pelas contribuições na revista. E pela conversa hoje. Abraços.

 

Martin

Eu só vou complementar... O spoiler acontece não só com você, Vinícius, mas o próprio Gilberto, agora, conhecido carinhosamente como Giba, colocou. Quer dizer, Fórum, desde a sua gênese, é de fato essa plataforma, essa interface para um debate em processo.

Então, nós estamos completamente abertos. Seja à sua contribuição ou ao seu insight. Thiago de Paula Souza, porque aqui nós temos dois Tiagos, então é bom deixar claro para quem estou me dirigindo. E, obviamente, a todos e a todas que estão aqui. Nora. Eu queria colocar uma pergunta, mas eu não vou fazer uma pergunta. Vou só fazer um comentário que eu acho importante, porque eu achei a dinâmica...

Parabenizo o Vinícius pela moderação. Como vocês interagiram entre vocês. Mas eu vou colocar uma inquietação para você, Nora, para os alemães. Uma vez que eu tenho essa relação já de longa data. Eu sou um Grossman, que tem uma parte judaica, mas tenho a minha mãe de origem alemã. Mas eu não falo alemão. Então, eu sou um estrangeiro em qualquer lugar que eu vá. Porque eu sou considerado, pelo sobrenome, como alemão. Pela figura, homem branco, enfim. Etc.

Mas o que me chamou muito a atenção, que vem me chamando muita atenção, e eu acho que não é só a Alemanha, eu acho que todas essas estruturas eurocêntricas, de que fazemos parte, para o bem e para o mal, ainda tem muito a contribuir e a de fato absorver, em relação a todas as críticas que foram levantadas aqui e em outros momentos. Como bem lembrou Vinicius, desde o momento que o Fórum começou.

Quer dizer, essa discussão toda de processos descoloniais e dessa crítica, ela vem acontecendo em diversos níveis. Thiago de Paula lembrou dessa contribuição de uma crítica de ativistas, de negros, mas a gente vê isso em relação aos índios. Somente nos Estados Unidos, no Canadá, dessa relação mais crítica dos nativos, dos povos originários, em relação à própria função do museu em terras colonizadas.

Eu vejo isso na Alemanha. Eu trabalhei e trabalho ainda relacionado a esse cluster da Humboldt-Universität, que é representante da própria universidade no novo museu, no Humboldt-Fórum. O Humboldt-Fórum começou com três homens brancos. Hoje é um diretor também homem branco europeu, alemão. Naquele momento que eu passei quatro meses em Berlim, a exposição no Museu Histórico, que você agora me deixou muito curioso em relação a essa exposição da Documenta.

Mas a exposição do colonialismo germânico, como se chamava? Fragmentos do passado e do presente. Era curada por uma alemã branca. Eu tive alguns debates e a assessoria não tinha muita assessoria de povos africanos para isso.

O Humboldt-Fórum perdeu uma chance histórica de questionar a tipologia dos museus. Ao manter a origem e a originalidade, principalmente das duas grandes coleções que fazem o Humboldt-Fórum, que é o museu de arte oriental e o museu de etnologia. O Humboldt-Fórum poderia, se não é uma construção também contemporânea, é uma reconstrução de um palácio prussiano barroco, poderia propor uma nova tipologia de museu. E perdeu uma chance histórica para fazer isso.

Então, me chama atenção como ainda essas estruturas nas quais estamos e somos, também, responsáveis, estamos ligados e conectados, enfim... Ainda precisam de muito choque de colonial. Então, acho que neste momento aqui, a sugestão do Thiago de Paula Souza de ativar um lugar experimental para o debate contemporâneo em tempo real, é muito interessante.

E o Fórum, mais uma vez, está aberto a isso. Mas isso não é nada contra você, Nora. É um certo desabafo em relação a essa visão crítica que eu tenho, enfim, do velho continente. Ainda como o velho continente precisa... Espero que, por exemplo, essa exposição histórica da Documenta traga visões como a nossa aqui do Brasil em relação à Documenta. Esse nosso fascínio e nosso respeito por essa grande exposição. Mas também essas críticas que aqui foram colocadas diante de algo que ainda continua sendo o paradigma para qualquer exposição de arte contemporânea no mundo.

Mas e, com isso, agradeço mais uma vez, principalmente você, Nora, pela participação. Enfim. Vinícius, pela curadoria, pela articulação. Os nossos convidados debatedores, Giba, editor do Periódico Permanente, nosso pessoal do base aqui do IEA e do Fórum Permanente. E esperam encontrá-los em breve.

 

Vinícius

Eu passaria então para a Nora, se ela gostaria de comentar o que disse o Martin. Ou, também, de fazer uma fala conclusiva sobre o debate, as suas impressões gerais. Enfim. Deixo para você esse tempo que nos resta ainda. À vontade.

 

Nora

Em primeiro lugar, muito muito obrigada. Eu concordo com o Martin Grossman, eu também acho que poderia ter sido feito bem mais. Outras palavras poderiam ter sido encontradas. É uma instituição que está construída sobre as ruínas do Palácio da República. Foi feito uma reconstrução, uma cruz. E aí se mostra uma coleção que mostra a história, que faz definições sobre poucos. E não é instituição assim... É bem problemático que a gente tem se questionado, se é um lugar que a gente pode fazer crítica. Ou que tipo de crítica a gente pode articular dentro desse ambiente, desse palácio, que tem toda essa carga cultural. Então, com outras artistas que criaram esse grupo Humboldt 21, a gente faz um questionamento. Nós fazemos também uma coleção de assinaturas. E a gente disse que nós não queremos participar desse projeto, por causa dessa contradição. Eu também sou uma das signatárias.

As instituições são necessárias. Mas a gente tem que ter uma outra estratégia e tática diferente, para a gente poder pensar diferente. Em vez de só voltar dentro de condições existentes. Também as decisões que foram tomadas são coisas com as quais a gente não concorda. Essa discussão foi ótima. Estou tão feliz de ter tido essa oportunidade de pensar juntos. E eu ficaria muito feliz de poder continuar essa conversa.

Lorena, muito obrigada. O que nós discutimos, que agora tem um solo fértil que a gente vê como as pessoas conseguiram ler e entender e poder jogar e brincar com isso. Isso me deixa muito feliz. Muito obrigada, Lorena, por sua ajuda

 

Vinícius

Bom, então, para encerrar, eu queria dizer que fiquei numa posição um pouco ingrata. Eu queria ter feito tantas questões. Mas, de qualquer maneira, eu fiquei muito feliz de ouvi-los. Como disse a Nora, espero também que esse seja um primeiro momento. Então, imagino que ainda teremos muitas oportunidades, todos nós, de nos encontrarmos e debatermos novamente.

E aonde eu poderia então fazer as minhas questões logo em breve. E revê-los pessoalmente. Sobretudo meus amigos, colegas queridos. Esse debate me deu, além de tudo, bastante alegria. E acho que, de alguma maneira, eu queria voltar para uma questão que a Nora colocou no início. Ou seja, quando ela produziu o texto, esse questionamento: como não falamos sobre essas contradições e paradoxos?

Então, de alguma maneira, hoje falamos, ainda que seja um pouco. E acho que falamos sobretudo numa perspectiva de pensar o que seria ainda uma ação utópica possível. Então, eu acho que a reflexão crítica é uma prática, também. É uma prática política, uma prática educativa, uma prática critica.

Então, eu acho que isso ficou também muito presente. E talvez esse sentido um pouco dialético, até, da proposição da Nora inicialmente. Ou seja, olhar do futuro para um presente, mas também, como colocou o Gabriel, esse olhar do futuro para o presente, ele volta ao passado. Então, eu espero que também esse sentido dialético, transformador...

 

Thiago de Paula

Ou seja, se podemos pensar o passado e o presente de forma crítica, talvez o futuro ainda possa ser construído de uma maneira mais positiva, talvez, do que a visão um pouco pessimista que nós temos nos dias de hoje. Então, eu queria agradecer a todas. Sobretudo Nora e a Lorena, de fato, por ter dado esse texto para nós, e que levantou todas essas questões. O Gabriel, também, que teve esse contato mais próximo com o Document Studies. E dentro do nosso grupo de pesquisa, nos trouxe também essa reflexão que acontecia lá em Kassel e que alimentou muito do debate.

Enfim, o Gilberto, pela interlocução e pela aceitação dessa proposta, por todo o apoio. Aí, o apoio institucional, também, do Fórum Permanente do IEA. Todos que nos auxiliaram. Enfim, o Tiago Machado, também, que teve, eu preciso destacar, um papel que ele teve de multitarefas: tradutor, editor, enfim. Não levou todos os créditos merecidos nos rodapés. Mas dizer que a revista não teria saído sem esse apoio invisível dele.

Thiago de Paula, que chegou ao nosso grupo agora. Mas, enfim, cuja participação se mostrou fundamental nas questões que ele colocou. Eu acho que eu fico muito feliz com o que nós fizemos hoje. Então, só tenho a agradecer e esperar que a gente tenha muitos outros debates. E, finalmente, mas também não menos importante, as nossas intérpretes, que fizeram essa tarefa monumental.

De acompanhar um debate com um padrão, um nível teórico tão complexo. Mil agradecimentos. E também ao Consulado Geral da República Federal da Alemanha, que possibilitou essa mediação do idioma, e que também a gente espera ter essas transcrições, os relatos críticos, tudo isso apoiado por eles. Para que possa gerar também outros materiais, outras discussões futuras. Então, acho que eu estou feliz. Gostaria de agradecer a todos e todas.

 

Lorena

Obrigada, gente. Foi ótimo!

 

Todos

Obrigado! Gente! Obrigado, abraço! E abraço a todos. Tchau tchau.