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Protagonismos possíveis: das instituições aos públicos

Relato da mesa de debate no Instituto Tomie Ohtake, sob o prisma de uma colaboradora do Instituto.

Por Divina Prado

O encontro teve como cerne a discussão acerca da atuação dos públicos no Instituto Tomie Ohtake a partir das ações propostas pelo Núcleo de Cultura e Participação, apresentadas pelo diretor Felipe Arruda. Anteriormente chamado de Ação Educativa, o atual Núcleo de Cultura e Participação teve a mudança de nome vinculada, principalmente, à diversidade de ações realizadas no âmbito da arte e da cultura, que demandou um nome que pudesse abranger as diferentes frentes de trabalho. Essencialmente, o núcleo está dividido em quatro áreas que realizam diferentes ações: Ação e Pesquisa Educativa, Projetos Socioculturais, Cursos e Premiações.

A equipe de Ação e Pesquisa Educativa tem grande parte das ações vinculadas às exposições em cartaz no Instituto Tomie Ohtake. Além dos ateliês e das visitas mediadas às mostras, a equipe produz as publicações educativas e audioguias, realiza formações com os outros funcionários do instituto, propõe conversas com professores, educadores e mediadores de outras instituições, cria dispositivos autônomos de mediação e desenvolve ateliês de técnicas de reprodução de imagens abertos ao público. A área de Projetos Socioculturais realiza as ações de cunho inclusivo, que buscam tanto trazer os públicos que têm acesso restrito à cultura institucionalizada quanto aproximar o próprio Instituto Tomie Ohtake a outros lugares da cidade. Assim, as ações acontecem dentro do instituto e em espaços públicos e instituições parceiras, como abrigos, casas de acolhida, bibliotecas e outros. Os cursos realizados pelo Núcleo de Cultura e Participação têm como foco a discussão sobre arte e cultura e, também, a formação de artistas. As Premiações vinculam-se a áreas de atuação do Instituto Tomie Ohtake, como arquitetura e arte contemporânea, e do Núcleo de Cultura e Participação, como projetos pedagógicos.

Felipe Arruda mencionou as principais ações do Núcleo de Cultura e Participação, transitando entre elas resumidamente. De sua fala apreendem-se algumas preocupações centrais do trabalho; a saber, a vocação para a pluralidade das propostas e uma perspectiva de excelência na realização. Os diversos projetos e programas desenvolvidos partem de um processo de segmentação cujo intuito é criar ações que sejam interessantes para os diversos públicos e se adequem às dinâmicas do Instituto Tomie Ohtake.

Gilberto Mariotti e Diogo de Moraes, que falaram logo após Felipe Arruda, apontaram como ponto forte do trabalho desenvolvido pelo núcleo a consideração das diversas tipologias de públicos, o que gera uma vasta oferta de oportunidades para diferentes segmentos que nem sempre constituem foco de atuação das instituições culturais. Em contraponto à visão de categorização de públicos que se dá a partir da lógica da democratização de acesso à cultura e aos bens culturais, Diogo introduziu uma outra visão acerca do processo de segmentação, pautada nas reflexões de Foucault sobre o sujeito e o poder. Para que o exercício de poder aconteça, é necessário objetificar e atribuir identidade ao outro, nas palavras de Diogo, “uns agirem sobre a ação dos outros”. No entanto, é importante citar que isso não significa estritamente o cerceamento do outro, mas uma tentativa de gestão. Deste modo, contrapõe o papel da instituição, que cria ofertas para os públicos, às possibilidades de novas agendas que não passem necessariamente pelo crivo institucional.

A seguir, Márcia Ferran deu início à sua contribuição mencionando a importância das ações tentaculares das instituições diante da progressiva virtualização de aparatos que, a despeito do discurso de conexão e criação de redes, aumenta as distâncias físicas. Assim, o desafio que se coloca no âmbito institucional é promover uma aproximação de maneira crítica e sair do espaço disciplinador, criar uma espécie de contiguidade física, de certo modo, entre a instituição e os territórios. Nesse sentido, coloca em questão a mediação que se dá unicamente na exposição, vista como o momento específico do desencadeamento de processos. Tanto as ações extramuros quanto as atividades que não têm vínculo direto com a programação curatorial carregam a potência de subversão da distância e dos códigos do espaço expositivo disciplinador.

A atuação dos públicos no contexto institucionalizado está sujeita a várias camadas de discursos e imposições. No que tange à programação cultural da instituição como um todo, há uma dependência de agendas específicas, como as exposições e atividades de cronogramas feitos, às vezes, com anos de antecedência. Posteriormente, chega-se à camada ocupada pelos setores que se dedicam ao atendimento ao público. Ainda que exista um desejo de abertura a novos públicos a partir de programações específicas, ainda é notável o fato de que a agenda se constrói de um lado para outro, sem muita permeabilidade.

Os principais museus e instituições culturais de São Paulo têm recebido cada vez mais exposições ditas blockbusters, com grandes nomes da arte, intenso investimento em propaganda e o claro objetivo de atrair um grande número de pessoas. As filas e aglomerações estão incluídas no pacote de fruição de arte e cultura. Esse tipo de programação pode facilmente eclipsar a atuação dos setores de atendimento aos públicos, que veem-se restritos à criação de programação tolhida pela própria estrutura da exposição, que demanda rápida circulação de pessoas. Por outro lado, a programação criada para os públicos pode funcionar como muletas de exposições que demandam a movimentação de catracas, mas não são suficientemente interessantes aos públicos que desejam atrair.

Os agentes institucionais que ocupam a linha de frente, os educadores ou mediadores, têm experimentado um trabalho de maior protagonismo desde o fim do programa Cultura é Currículo da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Antes, grande parte da atuação dos educadores e mediadores se dava no atendimento aos públicos dentro das exposições propostas pelos curadores. Hoje, com o fim da oferta de ônibus e a consequente diminuição da presença de grupos escolares nas exposições, os agentes da linha de frente tiveram que reinventar um lugar de atuação, evidenciando um protagonismo na criação das agendas oferecidas aos públicos. Este panorama já alterou sensivelmente a relação das instituições com os públicos, visto que, agora, há uma abertura maior a projetos que considerem a arte e a cultura em termos mais amplos.

Se consensualmente a instituição é sempre propositora, direcionadora e segmentadora, é necessário fazer uma leitura a contrapelo e explorar protagonismos nos espaços extrainstitucionais. Pensar os públicos a partir das ações potencialmente requeridas é diferente de pensá-lo a partir da programação oferecida. É possível, ainda, ir além na complexificação do pensamento acerca da atuação dos públicos nas instituições. A programação potencialmente requerida continua sendo substancialmente diferente da programação demandada, aquela que vem ou poderia vir de proposições do próprio público. A visão institucional é sabidamente limitada, tanto por fatores estruturais já enraizados quanto por desafios de gestão, sendo impossível dar conta do mundo e da vastidão dos saberes, vontades e necessidades.

O que entra em questão, então, é um protagonismo por parte dos públicos, reflexão que aponta para os mecanismos de atuação do poder na sociedade, não só nos equipamentos culturais. São poucos os lugares, situações e eventos em que os públicos e contra-públicos têm voz. Um exemplo potente da operação dos mecanismos de poder diante das possibilidades de protagonismo é a própria estrutura da educação formal, responsável pela inserção do sujeito, já na transição entre a segunda e a terceira infância, na esfera da vida que se dá a partir dos contratos e acordos sociais. Ao pensarmos que a maioria das escolas se erige sobre os moldes da educação tradicional, a estrutura peca pela anulação ou ausência de estímulo ao protagonismo das crianças e jovens. Se não cabe aos públicos a decisão ativa sobre o conteúdo oferecido, torna-se extremamente difícil atribuir tal papel aos contra-públicos e aos não-públicos, ainda mais ao considerarmos o histórico processo de silenciamento de vozes por parte das instituições.

Assim, coloca-se em pauta a porosidade das instituições aos debates que se dão no âmbito extrainstitucional e que corporificam, de certo modo, as vontades dos públicos e contra-públicos. As urgências das agendas extrainstitucionais criam processos de diálogo e possibilidades de interação imprevistas e potentes, como aconteceu no último ano com a ocupação das escolas. Uma situação de pressão e encurralamento criou condições para que o protagonismo, muitas vezes calado, dos secundaristas aparecesse de forma ruidosa. Os alunos se auto-organizaram e criaram programações de atividades e aulas que fossem do interesse de todos. Tal protagonismo não teria acontecido em situações de normalidade, ou seja, uma situação de crise possibilitou que a estrutura institucional estivesse à disposição das agendas criadas pelos públicos.

Diogo apresenta uma visão do público “como entidade que se autoproduz a partir daquilo que o interessa”. Felipe Arruda afirma que “não há um lugar onde a cultura está, e sim um lugar onde a cultura é legitimada e formalizada." Da intersecção das duas ideias, é possível apreender que a necessidade de levar os diversos públicos às instituições de arte e cultura é uma vontade unilateral. O anseio de suprir necessidades dos públicos, apesar do discurso bem intencionado que o engendra, beira a colonização. No entanto, constitui uma oportunidade muito potente de criação, diálogo e aprendizado colocar diferentes sujeitos em contato e ocupar os diversos lugares e instituições, desde que tal contato esteja baseado em relações democráticas de troca e debate.

A discussão, hoje, não trata estritamente de formação de públicos, mas de prospecção e aceitação de protagonismos plurais e diversos. Os mecanismos de segmentação dos públicos e não-públicos representam um caminho interessante, pois prospectam protagonismos que têm a potência de usar a estrutura institucional para a proposição de agendas horizontais. A instituição só pode se contaminar e se moldar pelas questões do mundo se, de algum modo, esgarça a trama das estruturas de poder e mostra-se disposta a aceitar outros protagonismos. Respostas, tanto as esperadas quanto as imprevistas, aparecem quando a instituição mostra-se permeável ao contexto, mesmo que por meio da segmentação e criação de agendas específicas.