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Criatividade como um modo de revolução em cenários de transgressão

Criatividade x Revolução: perspectivas artístico-educacionais Brasília, Memorial Darcy Ribeiro (Beijódromo) em 24 de novembro de 2016

Relato crítico por Danilo Piermatei

 

Felipe Canova Gonçalves e Stela Maris Sanmartin apresentaram na mesa “Criatividade x Revolução: perspectivas artístico-educacionais”, com mediação de Cayo Honorato, uma visão entrelaçada do criativo e do revolucionário pela teoria e prática.

Entender a criatividade como uma forma de revolução é o ponto de partida da fala de Stela, sugerindo uma aproximação desses conceitos. Ela entende que a revolução se dá por uma mudança violenta, capaz de transformar, e coloca em questão se a ação criadora não passaria pelo mesmo caminho. Aponta que no decorrer da História a criatividade já foi associada ao dom,  ao sobrenatural, à bruxaria e também à loucura, perdendo ao longo do tempo seu grau de nocividade, ao ser associada à hereditariedade. Já nos tempos modernos, a criatividade é estudada na psicologia pelas teorias associativa, comportamental, gestáltica, psicanalítica, humanista e desenvolvimentista. Algumas abordagens que aprofundam o tema são, por exemplo: a cognitivista, estudada por Guilford; a educacional, por Torrance; a psicofisiológica, explorada por MacCallum, Glynn, Torance e também Mourad; a sociológica, desenvolvida por Csikszentmihalyi; a psicodélica, em Treffinger, Isaksen & Firestien, Rugg e Mackinnon; a instrumental, por Sternberg e Lubart. Ao longo das últimas décadas, destacam-se algumas abordagens que evoluem do foco psicológico e individual para o pragmático, vivencial e sócio-ambiental. Entre as décadas de 1950 e 1960, surgiram abordagens psicoeducacionais e educacionais, tais como a teoria cognitivista de Gilford, que estuda o pensamento pela interação do raciocínio divergente-criativo e do convergente-lógico. Menos abrangente, Torrance elabora indicadores para mensurar habilidades criativas específicas em busca de resultados qualitativos a respeito da criatividade. Já o brainstorm, técnica publicitária desenvolvida por Alex Osborn, popularizou-se como prática de despejar livremente ideias no papel em branco. Entre as décadas de 1970 e 1980, o método de Solução Criativa de Problemas, proposto por Osborn e Parnes utiliza um questionário objetivo para ativação de ideias resolutivas. O método do Pensamento Lateral de Edward De Bono induz o uso de informações complementares a respeito de conceitos predefinidos para então reestruturá-los, propiciando novas informações. Stela aponta também a difusão da meditação no Ocidente como indutora de criatividade através do relaxamento e concentração, ajudando na experimentação de novas formas de pensar.  Na década de 1990, há uma tendência para a vivência com atitude criativa, da qual se aproxima Isacksen, ao entender a criatividade como comunicação de diferentes pontos de vista, que possibilitam selecionar alternativas para resultados significativos. Nessa perspectiva, integra-se a visão sistêmica de Csikszentmihalyi, que entende a criatividade como consequência das interações entre o indivíduo e seu contexto sociocultural avaliadas por especialistas.

A partir desse referencial histórico, é possível fazer uma analogia com o ensino da arte e suas diretrizes pedagógicas para percebermos que a criatividade se renova continuamente, como demonstra Stela ao citar Tierry De Duve em suas tríades, as quais caracterizam os paradigmas acadêmico, moderno e  contemporâneo. Resumidamente, o primeiro valoriza o talento e a imitação do mestre, o segundo instiga o inventivo e o terceiro a desconstrução. Stela compara cada uma das tríades a uma metodologia de ensino, correspondendo a Escola Tradicional ao paradigma acadêmico, pelo acúmulo e repetição de conteúdos; a Escola Nova ao moderno, pelo aprender fazendo; e a Abordagem Construtivista e Progressista ao contemporâneo, pela associação entre teoria e prática com estímulo ao pensamento crítico. Aponta a crítica de De Duve que permite entender algumas desconexões entre esses paradigmas, como a não superação dos mestres pelos estudantes da Bauhaus – no caso moderno – e a depreciação da criatividade sem apresentação de uma contrapartida, fazendo com que a atitude crítica substitua o talento e o desconstruir torne-se um método de fazer e ensinar arte – no caso contemporâneo. Por esse ponto de vista, Stela percebe um ambiente educacional propenso à gambiarra, ao espontaneismo e com pouco estímulo ao conhecimento, indicando por fim uma perspectiva sistêmica para se avançar no ensino de arte; uma perspectiva que busque uma unidade entre teoria, prática e pensamento crítico, considerando conhecimentos prévios do indivíduo e sua interlocução com uma cultura universal. Além disso, possibilitando um fazer autônomo, crítico e integrado, sem relegar a importância do professor como mediador desse processo.

Por sua vez, Felipe traz à mesa uma perspectiva prática, comentando sua experiência em cobertura jornalística, no ano de 2011, durante o golpe militar em Honduras. Ele se lembra de, nessa ocasião, comparar uma sensação de amparo, ao atravessar a fronteira para a Nicarágua, com a experiêcia de repressão e violência vivida no país vizinho – fato que o estimula a investigar os reflexos de uma revolução anterior na Nicarágua para aprofundar essa percepção inicial.

O palestrante apresentou um breve panorama histórico que antecede a Revolução Nicaraguense, pautado por disputas de poder internacional no território, em especial, pela influência dos Estados Unidos na política local, fomentando uma ditadura que persistiu por 43 anos sob controle da família Somoza. A resistência contra o domínio estadunidense, inicialmente liderada por Augusto Cesar Sandino, morto em 1934, inspira a formação das Frentes Sandinistas que culminaram na Revolução Popular Sandinista ocorrida entre 1979 e 1990. Após a queda do regime ditatorial, com um saldo de 50 mil mortos, indústria e agricultura paralisadas e baixa reserva financeira, o novo governo contava com um desafio para colocar em prática um novo país. Mesmo nesse cenário crítico, o investimento em cultura e educação foi uma das estratégias adotadas para a manutenção das diretrizes da revolução, que se expandiram para um projeto de política cultural, pautado pelo resgate da identidade nicaraguense e pelo desenvolvimento de uma cultura democrática e anti-imperialista. Felipe evidencia algumas ações governamentais para a formação do novo homem nicaraguense, como a cruzada de alfabetização, o apoio a rádios comunitárias, a regulação da comunicação de massa, a transformação da frente armada em redes de segurança localizada, a criação dos centros populares de cultura e também de institutos de cinema, editora e gravadora, para fomento da produção nacional. No entanto, o embargo econômico e a guerra contrarrevolucionária desestabilizaram os projetos em curso, acirrando conflitos internos. O projeto cultural começa a se deteriorar, inflamando divergências entre Ministério da Cultura e Associação dos Trabalhadores da Cultura e distanciando governo e artistas. Essa decadência culmina no fim do Ministério da Cultura a partir de um ajuste econômico e, posteriormente, na derrota eleitoral em 1990, dando vitória ao governo neoliberal.

Podemos alcançar com as falas de Felipe e Stela paralelos com o cenário brasileiro em sua atual crise política, com interferências no âmbito da educação e cultura. Encontramos semelhanças entre os golpes de estado replicados pela América Latina, mesmo que em diferentes momentos, em moldes equivalentes e com graves danos a esses países. Ditaduras de longo prazo, embargo econômico,  favorecimento de setores e instituições alinhadas aos regimes, controle ideológico, repressão e violência são alguns exemplos de práticas aqui aplicadas, que exigiram grande esforço e muito tempo até que se conseguisse alguma emancipação – sacrifício que não se limita ao período ditatorial, mas também às etapas seguintes  de reestruturação, dificultando o crescimento e autonomia dessas economias. Cruza-se aqui a fragilidade da educação brasileira e a constante ameaça representada pelo interesse internacional na manutenção da dependência econômica e cultural. A descontinuidade dos projetos educacionais nacionais é uma constante, o que reforça o citado clima de improviso e vulnerabilidade. Muito mais que pela atualização de abordagens, as “rupturas” em nosso sistema de ensino procedem, em grande parte, por demandas políticas não necessariamente interessadas na valorização da educação. Vivenciamos recentemente uma tensão de transição política em que a atual gestão traz propostas de reformas e alteração na Constituição, com justificativa de alteridade fiscal, mas com desaprovação considerável da população. A forma como respondemos a essas provocações, desde práticas simplórias cotidianas até ações de maior amplitude que afetam as políticas públicas, pode influenciar os rumos de uma escola, uma comunidade ou um país. O exercício da criatividade vem a ser então um meio de responder a essas demandas e, para isso, vale recorrer a experiências e métodos anteriores, assim como reinventá-los.

Como referência, foram citados nessa mesa a concorrência em sala de aula entre o interesse dos alunos por conteúdos de uma cultura visual com grande influência da mídia de massa (desenhos, personagens, novelas e marcas) e o conteúdo programático de artes, refletindo a questão de dominação cultural. Por isso, o uso do contexto extracurricular em conexão ao conteúdo programático é uma boa sugestão para a ampliação dos repertórios e diminuição do isolamento tanto da escola em sua comunidade quanto do aluno e suas fontes de informação, como também de uma população em relação à geopolítica em que se insere – o que permite um horizonte maior de ações como as recentes ocupações das escolas e universidades pelos próprios estudantes, contra a redução do investimento na educação, entre outras pautas. Importante ressaltar que, durante esse encontro, a Universidade de Brasília também estava ocupada por uma frente de seus estudantes. Assim, é salutar conhecer, ter acesso ao contexto histórico, ao referencial teórico e ter domínio do próprio discurso, para articular e pensar, com melhor desenvoltura, diante de interesses convergentes e divergentes, que tipo de educação e país queremos.