Relato: Públicos e Mediação Cultural

Relato sobre a mesa Públicos e Mediação Cultural. 24 de novembro de 2016 - UnB, Memorial Darcy Ribeiro (Beijódromo).

Relato crítico por Yuri Farias

A quinta mesa de debate do “Encontros Interestaduais de Mediação na Arte” em Brasília contou com a participação de Lúcia Maciel Oliveira (USP), Mônica Fonseca (Ibram) e Renata Bittencourt (SCDC-MINC). Thérèse Hofmann, professora adjunta do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UnB, foi a encarregada pela mediação e debate nessa mesa.

As políticas culturais começam a ser abordadas por Lúcia Maciel por meio de sua pesquisa em andamento no Instituto de Estudos Avançados da USP. A pesquisadora propõe como instrumento de pesquisa um filme, ainda não finalizado, que é apresentado a todos. O filme se chama “Dinâmicas, Flutuações e Pontos Cegos” e foi “definido” como filme-ensaio, dado o seu caráter experimental. Sendo assim, esse tipo de ferramenta pode ser mais eficiente que a forma escrita para abordar as questões e inquietações tratadas na pesquisa, segundo as quais as políticas e aparelhos culturais na cidade de São Paulo parecem não dialogar perfeitamente com as ações culturais que ocorrem na cidade. Essa abertura do produto não finalizado proporcionou algumas discussões e perguntas no final da mesa e possibilitou, ainda, contribuições para a pesquisa, como foi solicitado, também, pela palestrante.

As inquietações levantadas por Lúcia em sua pesquisa, apesar de se aplicarem ao contexto da cidade de São Paulo, podem se refletir como questões de políticas culturais em diversos outros grandes centros. O trabalho surgiu a partir de percepções da pesquisadora, que acredita que as políticas culturais em São Paulo não acompanham as ações e as novas dinâmicas culturais. Sendo assim, a pesquisadora busca através de sua pesquisa entender como as relações entre os equipamentos culturais na cidade de São Paulo funcionam e como estes se relacionam com as ações culturais dentro dessa cidade, evidenciando, assim, proposições e investigações a partir das recentes dinâmicas culturais, das novas tecnologias e dos usos dos equipamentos culturais na cidade.

As novas dinâmicas culturais são colocadas pela palestrante como o resultado, também, de questões que extrapolam a cultura e chegam ao político. As experimentações que os grupos propõem por meio da cultura extrapolam o espaço da cultura e atingem as esferas político-sociais. Há uma crise de representação política, uma busca por representatividade advinda da invisibilização de pautas minoritárias e que fluem por uma busca de representatividade por meio de ações culturais. Lúcia levanta, ainda, que as políticas culturais não seriam impermeáveis a todas essas questões, mas que possuem muitas travas no diálogo com as ações culturais.

Dentro do contexto do filme ensaio, que tenta se mostrar como resultado mais amplo do que um texto escrito, Lúcia cita o filósofo Martín-Barbero e faz uma relação com uma de suas entrevistas, particularmente, com o conceito de “falas sociais estendidas”, as quais não se dão apenas no campo da fala verbal, mas também em imagens, em formas de contar, em formas de se estar no território, etc. Assim, é importante o entendimento das novas dinâmicas culturais dentro de uma mutação social que é gigantesca. Sendo assim, entender o que são os ruídos e dissensos nessa complexidade de mudanças e atualizações sociais pode nos ajudar a entender melhor e mais coerentemente as ações culturais. O filme ensaio estaria aí para contribuir na forma de melhor entendimento dessa complexa rede de atuações culturais de hoje em dia, tentando dar voz às diversas formas de ações culturais periféricas e aproximando as discussões entre academia, periferia e instituições políticas.

O filme tem início situando a pesquisa e suas inquietações através de um trecho de Terry Eagleton, em sua obra A ideia de cultura: “Toda cultura tem um ponto cego interno em que ela falha em aprender ou estar em harmonia consigo mesma, e perceber isso é compreender essa cultura mais completamente”. Segue trazendo um pouco, ou mesmo um recorte, do que é a relação das ações culturais na cidade de São Paulo e as instituições formais de cultura da cidade. A relação entre periferia, política e cultura é latente ao longo do ensaio proposto. Nesse contexto surgem as críticas a modelos, políticas e instituições culturais que, por ainda estarem baseados em processos civilizatórios, não conseguem dialogar com as ações culturais periféricas. A burocracia para se acessar espaços públicos culturais que se mostrem próximos e a falta de infraestrutura por parte do Estado são umas das questões levantadas no filme para o surgimento de organizações independentes que ocupam locais abandonados, sendo esse um fenômeno que podemos citar, inclusive, no contexto da cidade de Taguatinga, com o exemplo do Mercado Sul VIVE, que fica a aproximadamente 20 km da capital federal. Importante é o registro das falas e das manifestações culturais no filme, as quais nos trazem exemplos práticos da tecnologia como instrumento de acessibilidade e democratização e de como as comunidades estão fazendo uso dessas ferramentas como forma de empoderamento e busca por representatividade.

Algumas questões são lançadas pós-exibição do vídeo pela pesquisadora: “Como os equipamentos culturais são potencializadores de repertório? Qual a função desses equipamentos? Como eles se inserem nas dinâmicas culturais de forma a terem relevância?” As perguntas são uma provocação e um convite. As experimentações que esses grupos e coletivos estão experimentando no campo da cultura ultrapassam o próprio campo desta e vão para o social e político por se tratarem de uma busca por flexibilização, autonomia e empoderamento. Lúcia Maciel defende, assim, que essas questões não se circunscrevem a uma esfera cultural e de políticas culturais, mas sim a uma esfera maior e a um laboratório social para uma esfera pública mais democrática.

Houve alguns comentários que se situaram no interesse pelo vídeo ensaio da professora Lúcia e de sua possibilidade como solução para uma pesquisa que talvez seja “dura” e acadêmica. Ainda sobre o filme ensaio, questões foram colocadas quanto ao registro e a presença feminina nas resistências culturais e se há um olhar da pesquisadora sobre isso. Além disso, também foi colocada uma dúvida sobre o lugar da pesquisadora enquanto narradora dentro do filme ensaio e sobre como ela poderia se colocar enquanto expressão dentro da pesquisa, uma vez que o filme é feito todo a partir de registros de falas e depoimentos de outras pessoas. Lúcia respondeu enfatizando e corroborando as outras formas de soluções para pesquisas acadêmicas, tais como a sua abordagem e a utilização de filmes ensaio como instrumento de pesquisa, ou seja, defendendo um pouco mais de flexibilidade nesses produtos e resultados de pesquisas dentro da academia. A discussão sobre a nomenclatura para o filme-ensaio, como foi colocado em pergunta por um dos ouvintes, pareceu-me um tanto quanto reducionista, mesmo como observação válida, mas definidora em seu ato de nomear algo que estava tentando se mostrar ampliado e menos definidor.

A servidora do Instituto Brasileiro de Museus – Ibram, Monica Fonseca, foi a segunda palestrante da mesa e sua fala foi sobre uma consulta pública na área de museus ou, mais precisamente, sobre a criação, sistematização e implementação do Programa Nacional de Educação Museal (PNEM) e de como essa política pública foi feita de uma forma participativa. O Ibram, que é onde o programa foi criado, é apresentado e, como introdução para se falar do programa, é traçado um retrospecto da própria história de criação desse instituto, que também foi feita de uma forma que tentasse se aproximar de uma participação popular, a partir da construção da política nacional de museus em 2003.

O PNEM (Programa Nacional de Educação Museal) foi pensado a partir de uma plataforma de diálogo e seus objetivos são o de incentivar e fortalecer a educação em museus e subsidiar a atuação dos educadores dentro desses espaços. Essa construção tenta ser participativa por meio de consultas virtuais (blogs), encontros regionais e encontros nacionais. Na opinião de Monica, construir esse programa de forma participativa já é de alguma forma realizá-lo, uma vez que conseguir juntar as pessoas para o diálogo, gerar debates no âmbito do programa e criar essa rede de pessoas e discussões já seria um dos objetivos de fomento do programa. O blog foi criado com vários eixos temáticos em que seriam discutidas as questões específicas de educação museal dentro de cada eixo, a exemplo do eixo de formação, capacitação e qualificação, que visa a discussão e implementação dessas soluções educacionais dentro dos Museus. O aproveitamento de redes já existentes em volta dos Museus foi feito pelo programa, o qual as ampliou em cada um dos Estados do país. Os encontros regionais foram utilizados como forma de sistematização.

Os eixos temáticos (fóruns temáticos) de discussão levantam alguns pontos interessantes para se pensar a educação como um todo, sendo ela museal, artística, ou mesmo autônoma e ligada a espaços de educação não formais. O envolvimento do educador/mediador em todo o processo que esteja ligado à concepção de uma exposição dentro de um museu desde a curadoria, treinamento, visita, etc. é uma das discussões importantes que esses eixos temáticos se propuseram a fomentar. A afirmação de um lugar próprio para os educadores em museus, ou seja, de que “eles são educadores e não podem fazer tudo”, é o que contribui, também, para a profissionalização de uma categoria que ainda se vê sem muitas perspectivas de crescimento profissional, como um plano de carreira, por exemplo.

Os articuladores foram figuras autônomas que, dentro dessa construção do programa, tiveram muita importância. A partir deles e de suas relações com a comunidade cultural, foi possível alimentar o blog com discussões e debates. As redes de educadores em museus também tiveram um papel importante nas discussões participativas, pois articuladores que estavam soltos em suas regiões conseguiram dialogar mais efetivamente a partir delas. Dessas articulações foram sistematizadas as diretrizes do programa para a produção de um documento com uma demanda de educação em Museus. Uma das demandas levantadas foi a da necessidade de capacitação e profissionalização, o que gerou como resultado uma plataforma que se chama “Saber Museu”, ferramenta ainda em construção, para ofertar cursos de forma virtual.

A principal questão e dúvida colocada no fim da fala de Monica Fonseca disse respeito às tensões dentro do PNEM e a como a servidora poderia falar mais sobre essas dinâmicas que talvez pudessem ter ocorrido ao longo da efetivação do programa. O que foi respondido por Monica é que o espaço para tensão já é parte do programa, uma vez que ele foi uma política pública aberta para o diálogo. Ainda assim as tensões foram poucas pela metodologia ou forma como foi organizado o programa, segundo a palestrante.

A política pública é um dos temas centrais dessa mesa e a fala de Monica Fonseca entre as duas outras participantes conseguiu amarrar e dar relação, direta ou indiretamente, às temáticas desenvolvidas em cada uma das palestras. O PNEM e sua integração entre política pública, tecnologia e participação tocam a fala e o filme ensaio de Lúcia Maciel, assim como a fala de Monica, como uma servidora de uma autarquia federal (Ibram), alinha-se ao final do discurso da terceira palestrante, Renata Bittercourt, no que diz respeito à falta de continuidade das políticas públicas e às transições políticas em que vivemos, ou seja, a um melhor entendimento e discussão sobre os Programas de Estado e Programas de Governo.

O início da fala da terceira e última palestrante, Renata Bittencourt – secretária de Cidadania Diversidade cultural (SCDC) do Ministério da Cultura –, se dá sob uma mudança de abordagem do que iria ser dito sobre os programas institucionais da Secretaria sob sua gestão, devido à saída do Ministro da Cultura até então no cargo. Sua fala se inicia como uma breve fala e uma provocação em que cita o Brasil como um “país de transições” em detrimento de um país de “solidez”.

A imagem do negro na história da Arte é o tema abordado pela palestrante e sua relação/mediação com os olhares atuais e realidades sociais específicas, inserindo-se assim dentro deste seminário que tange de diversas formas esse termo amplo que é a mediação cultural. Por meio de seleções que atravessam épocas, exemplos são lançados e diversas provocações são colocadas pela palestrante sobre esse tema. Inicialmente, a partir de um ponto, que é uma produção figurativa representativa na arte ocidental, a palestrante trouxe uma imagem de uma escultura africana (sabendo das diversas “Áfricas” que essa expressão possa suprimir) que tem imensa “beleza” até mesmo dentro de perspectiva ocidental, sendo assim possível obervar que é uma opção a escolha de um único tipo de representação dentro da história da arte eurocêntrica que prioriza um único tipo de “beleza”.

Os trânsitos, leituras e traduções a partir de obras representando negros e/ou feitas por negros dentro da história da arte é, assim, a mediação proposta por Renata Bittencourt. Desde sempre há uma representação da imagem do negro na arte e vários exemplos são trazidos de forma a embasar tal fato, fazendo um retrospecto de esculturas com traços “negroides” na arte ocidental. São traços, segundo a palestrante, que foram representados com um fim estético e cultural que evidenciam relações políticas, religiosas, de gênero e, finalmente, de poder estabelecendo o peso que se dá a cada um desses elementos em cada época. Em grande parte dos exemplos e caminhos percorridos, trata-se de um vocabulário em que o não branco é retratado como violento ou com violência em potencial, anônimo, com tipologia árabe ou da parte norte da África e que está, por exemplo, no imaginário do europeu do séc. XIX, assim como está em nosso imaginário atual. O negro como símbolo de proteção física e segurança, os quais reforçam alguns estereótipos do tipo negro que nasceram nessa época e permeiam nossos dias, é um desses exemplos.

Por fim, são trazidos artistas negros que falam de suas experiências e suas vivências, coisa que foi furtada de outros negros que viveram a diáspora e não podiam falar sobre essas questões. Nas obras vistas anteriormente havia alguém que falava sobre o negro. Havia um lugar de interpretações sobre e não uma autonomia para falar a partir de si. Experiências que são retratadas de suas vivências com seus pares e sobre a migração negra e seus caminhos podem funcionar como objetos de mediação por suas comunidades e por públicos mais amplos. A vida afetiva negra também é retratada por esses últimos exemplos, a qual está muito ausente de representação em nossa ficção ocidental, seja na pintura, literatura, etc., uma vez que a representação afetiva trata apenas de brancos. Trabalhos mais recentes são trazidos juntamente com questão do negro e da melancolia, a qual é muito presente como tema na história da arte, mas que pouco se relaciona com os negros, uma vez que o negro é muito mais retratado em função do seu corpo físico e não nos seus sentimentos.

Algumas problematizações foram pontuadas em questões levadas à Renata, desde observações, comentários e perguntas que tratavam sobre a questão do negro e sobre a questão política atual. A expressão “arte negra” é uma expressão problemática e contraditória, de forma que se deseja usar para determinar uma produção, mas que cria um contorno sobre o produtor que o restringe dentro da arte e de toda sua possibilidade.  Renata conseguiu sintetizar um pouco de seu pensamento sobre políticas públicas e a questão política atual a partir de sua fala sobre a distinção entre Programa de Estado e Programa de Governo. Servir ao Estado de forma perene é muito nobre e não importa o contexto. A sociedade necessita que as políticas públicas continuem de forma efetiva e perene e não pautada pelas transições.