Saltar ou assaltar a linguagem institucional?

Relato crítico do debate “Mediação Cultural e seus Processos de Tradução”, por ocasião do lançamento da revista Periódico Permanente #6 - Mediação Cultural, ocorrido no Instituto de Estudos Avançados da USP, em 13/09/2016”

Por Leandro Ferro

 

 

Lucas Oliveira, Mônica Hoff, Thais Olmos e Valquiria Prates foram os mediadores-tradutores convidados a falar de sua experiência com a tradução dos textos publicados nesta edição da revista, mais especificamente sobre como os textos traduzidos contribuem para suas pesquisas e práticas em mediação, e também sobre entendem a relação das práticas de tradução no contexto da mediação. Gleyce Kelly Heitor foi a mediadora-leitora convidada a expor sua experiência de leitura e multiplicação do debate acerca dos textos publicados na revista. O debate também contou com a participação de Martin Grossmann, editor-chefe da Periódico Permanente e diretor do Instituto de Estudos Avançados – IEA USP; e de Cayo Honorato e Diogo de Moraes, mediadores-editores deste número da revista.

“Falava completo a língua da gente, porém sotaqueava[1]

Fazendo coro a uma serie de apontamentos apresentados ao longo deste debate, no que se refere ao exercício da mediação cultural, não poderia me furtar, já na elaboração deste relato, aos meus papéis como mediador: desde o aglutinamento de minhas experiências nesta atividade, me autorizo a assumir a condição de endereçar a reiterada crise de representatividade da mediação em relação aos seus próprios discursos, que, endereçados ao aparelho institucional, demandam a si sua parcela de institucionalidade; como público das discussões, me autorizo a enunciar outra agenda ao debate, utilizando-me dos espaços não atribuídos diretamente a este exercício de relator;  por fim, como leitor dos textos, pretendo me valer de certa função autoral, ou daquela que, segundo Barthes, opera por meio da morte do autor[2], estendendo essa correspondência à leitura desse relato; Sob uma escuta em deriva, algo dessa conjectura me pareceu recorrente ao longo das três horas de conversa. Ouvindo os relatos dos mediadores-tradutores e dos editores sobre suas motivações, escolhas e inquietações em relação as suas experiências com os textos publicados na revista, bem como o relato da Gleyce Kelly Heitor e como leitora desta, é possível notar um encadeamento das problemáticas apontadas. É claro que há grande mérito da edição da revista ao selecionar os textos, bastante alinhados a temas emergentes descobertos de atenção por outras publicações e do setor. Além disso, também tem seus reflexos positivos elencar ao exercício das traduções um grupo de mediadores que, se por um lado, não tendo expertise técnica com tradução, relataram a experiência como campo áspero – ao menos inicialmente –, por outro, estando bastante integrados aos respectivos textos desde suas práticas, puderam assim contornar o desafio imprimindo às traduções mais do que notas de rodapé, mas reflexos de uma ética mesma da mediação. De todo modo, para tentar formular possíveis indícios do que seria essa ética, pretendo me apoiar, com base nas linhas de tensão geradas no debate, em uma equação na qual o mediador seria um Neutro, ou seja, aquilo que burla um paradigma”, como afirma Barthes. E ainda: “Paradigma é o quê? É a oposição de dois termos virtuais dos quais atualizo um, para falar, produzir sentido”[3]. Quais seriam, no entanto, os paradigmas que a mediação cultural vem enfrentando?

Ao longo de três horas de debate foram enunciadas inúmeras questões, às quais pretendo pinçar e orientar aqui, em linhas gerais, sob três instancias: a conceitual, onde os relatos buscaram trazer à tona códigos e contextos-chave para a elaboração dos discursos da mediação; a representativa, onde se evidenciaram os problemas de irrepresentabilidade dos setores de mediação ante narrativas institucionais;  e a pragmática, em que se tentou elaborar que tipo de ações poderiam ser adotadas como alternativas para o contexto local das práticas de mediação – uma vez que os textos trazidos apresentam experiências realizadas em outros países[4].

De cara, é possível notar como cada instância está conjecturada, exercendo força uma sobre a outra, o que se fez perceber no debate.

Sob a esfera conceitual, foi reiterada a importância da publicação dos textos traduzidos pela contribuição que estes trazem aos deslocamentos de um “vocabulário” específico, a uma mudança de conceitos relacionados às práticas de mediação, bem como a possibilidade que isto produz em ampliar a circulação destes textos e conceitos – consequentemente aprofundando o debate em torno dessas práticas. Trata-se, portanto, segundo os relatos, de uma estratégia de constituição e documentação de discursos fundamentais à mediação cultural que tem como um dos seus efeitos a experiência de desvelamento: por meio da leitura/tradução, pode-se criar vínculos de identificação, “dar nome aos bois”, navegar - por meio de distanciamentos e apropriações - por lugares que, ao mesmo tempo, apresentam experiências radicalmente diversas a um contexto sem deixar de falar deles. Tais conceitos, amplificando a lógica narrativa da mediação, é de fundamental interesse para se transitar das práticas às práticas discursivas. Ao entendimento da mediação como característica transversal dos museus – em que todas as suas ações, nas diferentes esferas de atuação (do setor financeiro ao texto curatorial), seriam ações mediadoras –, por exemplo, vislumbrou-se a necessidade de adequações simbólicas para as diferentes formas de enunciação: tradução de contextos, linguagens, intencionalidades etc.

O paradigma, neste ponto, se refere ao circuito pelo qual tal discursividade tem ocorrido:  pertinentemente reiterada nos debates sobre os sentidos da mediação cultural – ainda que sob efeito de desgaste provocado talvez pela rotatividade de pessoas característica das equipes de mediação –, mas sem a mesma força em seu necessário endereçamento às outras esferas institucionais, inclusive a esfera pública. A questão que se mostra diz respeito às maneiras como esses discursos produzidos em torno da prática da mediação cultural têm sido traduzidas para o aparelho institucional que, na maior parte das vezes, parece agenciar não só outros discursos, mas outras intencionalidades, produzindo então efeitos desvinculados dos nossos.

A questão leva a pensar sobre a dimensão representativa tanto dos museus, quanto dos públicos e da mediação, numa cadeia de disputas por poder. Foi trazida a proposta de um museu como lugar potencial de disputas políticas, justamente por ser capaz de convergir, ainda que virtualmente, inúmeras possibilidades narrativas. No entanto, a construção de identidades institucionais estaria fadada aos investimentos imaginários (da ordem do desejo) de seus agentes e públicos e vice-versa. Para um museu, como foi apontado, o público pode ocupar o lugar de mero “fiador” de seus interesses, sendo ignorado ao longo do processo de elaboração de sua programação, mas convocado ao final quando dele se precisa. As equipes de mediação, por sua vez, não conseguem identificar no aparelho institucional ressonâncias da sua voz. Não reconhecem seu espaço autoral, para além do exercício de reprodução dos discursos previamente estabelecidos – seja na esfera institucional, seja no campo da cultura – e da lógica de atendimento de visitantes. Faltariam aos setores de mediação dentro dos museus autonomia propositiva ou deliberativa e orçamentos capazes de sustentar suas ações – e não as bloquearem. Os setores de mediação cultural de muitos museus, no entanto, ao demandar certa institucionalidade a si mesma, parece por vezes também esquecer dos papéis e atuações dos públicos, passando a gerir programações (educativas, interventivas, projetuais) cuja interlocução é endereçada a si mesma. Por fim, os públicos, que podem usufruir de foro privilegiado, uma vez capazes a abnegar as demandas a eles endereçadas, bastando para isso que estas não estejam minimamente vinculadas a dinâmica de seus desejos.

Dada a complexidade deste estranho jogo de espelhamentos identitários, o endereçamento dos enunciados discursivos pode ter seus destinos extraviados na tentativa de constituição de uma esfera pública nas instituições culturais. À despeito destes circuitos onde cada instância parece endereçar a outras demandas pelo reconhecimento de seus discursos, me parece oportuno pensar no trânsito entre os lugares de sujeitos do enunciado ao de sujeitos da enunciação: tendo a escuta como condição inseparável do exercício da mediação, é dela mesma que o mediador pode denotar condições estratégicas para o desenvolvimento de suas posições interventivas. Além de traduzir os enunciados dos públicos para os espaços internos das instituições, seria também, por meio da escuta responsável de seus próprios anseios, que os setores de mediação cultural poderiam se colocar como público de suas próprias ações, a partir onde é possível interrogar-se sobre como melhor manejar os efeitos de sua própria voz.

 

Sob o ensejo de se discutir as possibilidades de tradução aproximadas ou distanciadas das práticas de mediação cultural, no que me refiro como a instância pragmática das discussões apresentadas, o que mais se vislumbrou foram os modos possíveis de circunscrição de plataformas colaborativas (seria melhor dizer democráticas[5]) de atuação nos museus, garantindo assim que as múltiplas formas de apropriação discursivas – as agendas dos públicos, as demandas por maior representatividade da mediação enquanto ação cultural – tenham seu espaço dentre as disputas narrativas institucionais – corporativas, artísticas, políticas, do desejo.

Voltando ao papel assumido como mediador, ocorre-me afirmar que minha fala é constituída pelas aproximações e distanciamentos em relação ao campo de experiências práticas e leituras dos textos respectivos à esfera da mediação. Mas também vinculado aos discursos da psicanalise, à criação literária, aos textos da filosofia com os quais reconheço identificações. Constituo, assim, minha voz, com todos os meus sotaques. E nisso não sou diferente dos tantos mediadores que também falam de/desde/contra a mediação cultural e suas imbricações institucionais. Quando somos público de nossas próprias ações, quando escutamos, com certo distanciamento, as escolhas por onde inventariamos a tessitura do nosso próprio discurso, podemos perceber o contexto desde o qual adotamos referências e quem são os públicos aos quais endereçamos os nossos desejos. No entanto, um recado advindo de uma estrutura linguística delirante, intermitente, pode demorar a ser decifrado, correndo o risco de não alcançar outras interlocuções. Por bem elaborado e urgente que seja, todo discurso corre o risco de perder a potência de seus enunciados caso se limite à disputa e acumulo de poder.

A pertinência dos temas abordados tanto pela elaboração editorial da revista quanto pelo que o debate trouxe é inquestionável, bem como a precisão das escolhas que envolveram a construção da revista. Mas, no que se refere a alusão posta ao final do debate sobre a sensação de sermos lançados novamente ao mar a cada vez que pensamos alcançar alguma etapa mais conclusiva, faz sentido emprestar a alusão aos objetos de análise debatidos como o que escapa ao olhar direto, sendo “pelas beiradas”, pelos efeitos colaterais, que estes nos apresentam seus indícios. O que gostaria de frisar, enunciando aqui minhas conclusões, é que não podemos nos esquivar, no campo das práticas da mediação cultural, do entendimento desse lugar como plataforma de convergência e profusão de múltiplas vozes e escutas. Me questiono, assim, sobre quantas vozes se aglutinam na formação dos discursos de cada mediador, e quantas delas são suprimidas ou sublinhadas nas escolhas de tradução que fazemos diariamente, como mediadores, ante o Outro, seja ele a instituição, os públicos, a equipe ou o próprio campo de atividades ao qual chamamos mediação cultural.  Neste sentido, seriam nas “notas de rodapé” que os verdadeiros textos estariam apontando para um lugar de ‘fora’ desta mediação que parece, tal como seus públicos, sempre estrangeira aos circuitos hegemônicos da cultura. Precisaríamos, então, “dominar” essa língua do Outro? A resposta mudaria de acordo com o que se pretende. Kafka, por exemplo, não sendo alemão, se utilizou da língua alemã para elaborar esteticamente não somente os absurdos de suas instituições, mas de todo o aparato simbólico de pretenciosa hegemonia da cultura alemã de sua época. E como isso continua atual!

Acredito que por aqui seguimos falando completo a língua da gente. Porém, às outras esferas, sotaqueamos.



[1] ROSA, João Guimarães. No Urubuquaqua, no Pinhém – Corpo de Baile, 3ª edição. Livraria José Olympio Editora, RJ – 1965. No conto “O recado do Morro”, de João Guimarães Rosa, uma comitiva formada por dois estrangeiros – sendo um deles um pesquisador -, um dono de terras e dois sertanejos atravessam o Sertão. Ao que nos interessa, os conflitos de entendimentos e deslocamentos operam no conto por meio das diferentes formas de apropriação da língua, transubstanciando a linguagem. O recado emitido por um morro é no conto recebido, transmitido e retransmitido por sujeitos “marginais” à esfera da civilização. Recomendo também o vídeo da aula do professor José Miguel Wisnik sobre este conto, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BE64BrBt52E

[2] Roland Barthes escreve: "Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; (...) para devolver à escrita o seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor." Texto publicado em: O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004]

[3] Roland Barthes. O Neutro. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[4] Refiro-me aqui, sob esse viés, a minha escuta com base nos relatos sobre os textos discutidos neste debate por seus mediadores-tradutores. A revista Periódico Permanente #6 é constituída por uma série maior de textos, muitos deles criados com base em experiências em museus ou instituições brasileiras.

[5] No entanto, a democracia cultural não deve ser confundida com democratização cultural, terminologia aplicada sobretudo às políticas de acesso institucionais. Para ampliar as discussões sobre esse assunto, recomendo a Seção 2 da Revista.

 

 

Leandro Ferro tem a maior parte de sua experiência em atividades como mediador, tendo atuado no Sesc, Bienais, Pinacoteca, Itau Cultural, entre outros.