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O potencial transformador do museus, e seus desafios numa era globalizada

Por Beto Shwafaty – Relato da apresentação de John Orna-Ornstein, diretor do Arts Council England

Por Beto Shwafaty

 

Relato crítico da apresentação de John Orna-Ornstein, diretor do Arts Council England

Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus Encontro Paulista de Museus

Essa seção do 8º Encontro Paulista de Museus foi aberta por Lucimara Letelier (diretora adjunta de Artes do British Council Brasil), que apresentou John Orna-Ornstein. Em sua breve introdução, ela frisa ser esse evento uma das ações voltadas à celebração da parceria do British Council com a Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, parceria de quatro anos e que tem como um de seus focos o programa Transform Museum[1], iniciativa que apoiou a implantação do Sisem-SP[2]. John é diretor do Arts Council of England, órgão (uma autarquia) que desenvolve e implementa políticas públicas na área de artes do Reino Unido, e cujos financiamentos são oriundos do tanto de verbas governamentais quanto de uma loteria nacional criada em 1996.

Orna-Ornstein inicia sua fala abordando o envolvimento de comunidades com museus, utilizando uma parábola: quando ele atuava no British Museum, um dos programas comunitários propunha uma avaliação e o engajamento de pessoas que nunca haviam ido ao museu com um único objeto. Havia o emprego de diversas linguagens artísticas para tornar este acessível, assim como o acompanhamento de um curador.

Um dos objetos abordados consistia em uma representação das mais específicas e antigas sobre o amor (com cerca de 35 mil anos). Ao longo de uma semana, a equipe e participantes se envolveram com o objeto, num processo que culminou com uma interessante troca entre uma jovem de 16 anos e a curadora – fato esse que marcou John. Nessa troca, a jovem afirmava “que era a primeira vez em sua vida que era ouvida”. Há uma beleza nesse caso que denota a potencialidade de sermos impactados pelos museus. E de outro lado, há também a afirmação da curadora, a respeito do impacto desse processo e da fala da jovem, em que a curadora afirmaria que “nunca mais poderia observar esse objeto da mesma maneira novamente, devido à intervenção e resposta da jovem em relação ao mesmo”. Esse caso concreto exemplifica as possibilidades existentes nos museus, de impactar nossas vidas e alterar a forma com que encaramos nosso contextos mais imediatos, assim como outros pautados, por exemplo, pela história da cultura. As possibilidades de mudança a partir desses contextos e processos – algo que se torna importante segundo John – nos levam a considerar também esse potencial latente das instituições culturais num cenário de crises globais diversas, que se impõem agora não só no Brasil mas em diversos países. Tais crises geram incertezas que, por sua vez, afetam o financiamento público à cultura.

John fornece um rápido panorama histórico da formação dos museus cívicos e públicos no Reino Unido, processo que se inicia no século XVIII e cresce no XIX (acompanhando o estabelecimento de bibliotecas em todo o país). O objetivo era melhorar a sociedade, o desenvolvimento público e cultural geral. Ele aponta ainda para o padrão desses museus, pois a grande maioria foi estabelecida nas regiões do interior e no Norte, que eram áreas industriais onde novas riquezas floresciam. Desse modo, John nos conta que havia certa concorrência entre as cidades, na tentativa de construir belos edifícios para os museus e dotá-los de ricos acervos, tanto com exemplos de produções locais quanto de outras partes do mundo. Já no século XX observa-se a consolidação desses modelos de museus cívicos, e posteriormente, por volta de 1970, vemos o surgimento de museus privados e independentes, comerciais até (ou seja, não financiados pelo governo). Atualmente, existem no Reino Unido mais museus privados e independentes do que públicos (cerca de mil). Nos últimos 20 anos, conta John, houve um ambiente de excelência em termos de financiamentos e programas, que acarretaram subsequentes investimentos na força de trabalho e nos prédios dos museus, proporcionando um incremento na qualidade, modernização, profissionalização e programação das instituições (eram gastos e distribuídos cerca de 100 milhões de libras ao ano somente para museus).

Assim, dada a grande soma investida nessas instituições, podemos observar um enfoque social nesses museus, que os conduz a engajarem-se em criar e manter um impacto social com suas mostras e programas (aqui ele frisa que tal fato foi também influenciado pelas políticas públicas dos últimos governos trabalhistas do país). Assim, se observarmos os últimos dez anos, veremos que os museus ocupavam uma posição estratégica nas políticas culturais. Porém, recentemente, tudo se alterou muito rápido, segundo John. Devido ao estado de crise econômica em que se encontra o mundo ocidental, não foram mantidos os apoios locais (municipais), setores que sofreram os maiores cortes, afetando assim em cerca de 30% de redução nos apoios. Esses impactos serão sentidos em breve, e onde os museus cívicos estão mais presentes, situação que certamente gera um desafio cada vez maior para suas respectivas manutenções.

John cita também outros dois desafios, apontando que não se trata apenas de uma questão financeira. Dada as drásticas mudanças em nível global, como a imigração maciça, o pluralismo se torna um ponto de trabalho, que acarreta alterações sociais no país. A importância dessa constatação se dá pelo fato que, segundo John, os museus ainda não estão refletindo essas alterações nas comunidades – e essa observação pode nos levar a perguntar se, no Brasil, os museus se preocupam em tentar refletir sobre as situações sociais atuais, e de que modos o fazem…

Orna-Ornstein cita, ainda, outro desafio que reside na faixa sociocultural e étnica dos profissionais de museus. A maioria, como ele mesmo observa, são brancos, com boa educação e formação universitária. Somente essas características talvez não sejam mais suficientes para enfrentar os desafios sociais que surgem em uma sociedade multiétnica e global como a do Reino Unido. Ele também aponta que muitos museus não têm um conhecimento profundo sobre seu público (ele cita como oposição a isso o fato de as grandes cadeias de supermercados saberem quase tudo sobre o perfil de seus consumidores). Uma série de transformações culturais e demográficas está ocorrendo, e encará-las torna-se parte do trabalho das instituições.

Outro desafio que John cita está na questão dos trabalhos com os acervos. Devido à forte história imperial (e colonial) do Reino Unido, este possui uma vasta gama de coleções que buscam representar muitas partes do mundo (lembremos que são em grande parte aquelas subjugadas pelo domínio colonial inglês). O desafio aqui é como enfrentar essa necessidade de contar a história do mundo por meio dessas coleções. Aqui, abro um parêntese: de fato, tal empreitada torna-se uma necessidade premente, e, ao mesmo tempo, temos que pontuar os perigos e a natureza complexa desse ato, pois quem determina o que será contado e como? Em quais bases históricas e éticas esse regime narrativo, sobre as histórias de lugares do mundo, se pautará?

John ainda informa que as coleções são muito vastas, chegando a afirmar que “há mais objetos que pessoas no país”. São centenas de milhares de objetos, situação incrível, mas que gera custos altos de manutenção (cerca de dois terços dos orçamentos das instituições); além disso, os desafios de conservá-los gera muitas vezes dificuldades acerca das transformações necessárias para abordá-los, gerando ao final uma espécie de conservadorismo. Entretanto, ele cita alguns exemplos de museus que vão na contramão dessa situação conservadora, que apontam para as possibilidades das transformações que ele frisou anteriormente. Nesses, as formas de exibição, de inclusão do público, de criação de narrativas alternativas parecem ser rearticuladas diante das situações atuais[3]. Mas, mesmo que sejam iniciativas ímpares, ele nos lembra que é impossível ser um museu de tudo e para todos, pois é a caracterização e especificidade sobre o que é o museu, seu acervo, programa e a qual público esse se volta que os tornam importantes. E é assim que ele coloca um ponto muito expressivo de sua fala: deve o museu se adequar às novas formas de abordar sua coleção e estabelecer canais com o público, e não o inverso.

De outro lado, John aponta que a maior parte dos museus também é formada por empresas, e, assim, são entidades comerciais. Esse é um fato impossível de reverter, e aceitá-lo torna-se necessário para a própria sobrevivência das instituições e do sistema. Os problemas que surgem dessa situação estão, talvez, no desafio de encontrar um equilíbrio entre a esfera pública e os interesses privados.

Uma última característica, e principalmente desafiadora para os governos locais (ele cita especificamente os municipais), relaciona-se com dar a devida liberdade para que as instituições se comportem da forma que lhes pareça ser a melhor para cumprir seus objetivos, sejam essas instituições comerciais ou não. Isso talvez envolva tanto rever as formas de expor, de contar e falar dos acervos exibidos como dos modos como se criam conexões com a comunidade.

John ainda comenta da atuação do Arts Council, que foi estabelecido logo após a Segunda Guerra Mundial, há cerca de 70 anos. A importância do trabalho cultural no pós-guerra foi identificada, e a partir desse momento a instituição tomou forma. Por intermédio desta são distribuídos cerca de 600 milhões de libras para diversos órgãos do Reino Unido, recursos, como já citados, oriundos do governo e da loteria nacional. O Arts Council é uma autarquia, mas sem ligação direta com o governo[4], e possui cinco objetivos específicos que guiam sua atuação: fomentar uma arte grandiosa, que essa seja acessível a todos, que seja sustentável em termos ambientais e resiliente economicamente, o apoio à força de trabalho e liderança para as instituições e a garantia do acesso à cultura para jovens e crianças.

John ainda defende manter o estatuto de autarquia, a fim de preservar uma autonomia no que se refere a poder implementar políticas culturais que possam influenciar a sociedade, assim como participar de sua economia, tornando-as mais fortes. Nesse sentido é primordial o financiamento à cultura, uma ação cujo impacto é holístico. O papel, cada vez mais necessário, é o de defender as instituições que fornecem serviços culturais, que fomentam valores que promovam o progresso social e igualitário, respeitando aspectos locais, seus públicos e especificidades. Encontrar formas de reagir às necessidades locais com precisão é fundamental para os museus, coloca John; assim como responder às comunidades que a eles se conectam.

Finalizando, ele cita o referendo que ocorreria alguns dias após sua palestra, em que seria decidida a permanência ou não do Reino Unido no bloco europeu, afirmando, que dados os desafios políticos e econômicos atuais, é também desafiador para os museus tentar não fechar suas bordas, impor limites, mas sim ampliar nosso entendimento sobre a realidade, semeando a tolerância, facilitando a comunicação e a coexistência. Essa deve ser, segundo John, a alma de nossos museus. E, visto que o referendo já ocorreu no momento em que relato essa fala (e sabemos de seu resultado), os desafios esboçados por John Orna-Ornstein tornam-se, de fato, realidade.



[1] Disponível em: http://transform.britishcouncil.org.br.

[2] Disponível em: http://www.sisemsp.org.br.

[3] John enumera alguns museus que, segundo ele, exemplificam iniciativas de transformações ímpares em termos de programa e engajamento com a comunidade, tais como o Museu Horniman (http://www.horniman.ac.uk) localizado no sul de Londres e que conta com uma coleção ampla de etnografia, história natural e música; o pequeno museu na vila de Ditchling, (http://www.ditchlingmuseumartcraft.org.uk); ou ainda um museu que está sendo construído em parceria com a comunidade, na cidade industrial de Derby (http://www.derbymuseums.org).

[4] No Brasil, teríamos como exemplo próximo os Sistemas “S” (Sesi, Sesc e Senai), porém estes atuam de forma mais institucional e corporativa e sem mesma envergadura de fomento externo do Arts Council inglês.