Perspectivas futuras: museus sob a dimensão do luto

Fernanda Lucas Santiago Relato crítico síntese do 11º Encontro Paulista de Museus: “Museus, Sociedade e Crise: do luto à luta”

Fernanda Lucas Santiago - 2021

 

Relato crítico síntese do 11º Encontro Paulista de Museus: “Museus, Sociedade e Crise: do luto à luta”

Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus

 

 

O contexto pandêmico que atravessamos fez com que diversos encontros acadêmicos fossem adiados, ou até mesmo cancelados. O Encontro Paulista de Museus conseguiu realizar sua 11ª edição, em novembro de 2020, a primeira edição no modo virtual, trazendo o tema Museus, Sociedade e Crise: do luto à luta. O tema não poderia ser mais oportuno, diante de tantas mortes ceifadas pela covid-19 (na época 168 mil[1] e agora 414,6 mil[2]); da intensificação da crise econômica; do secular genocídio da população indígena e negra; da falta de investimentos no setor artístico e cultural e da perda de identificação do público com os Museus. Nesse cenário de luto, urge a necessidade de lutar pela vida, em defesa da cultura, da reorganização do espaço museal de maneira que garanta a segurança e a saúde dos funcionários e do público. Como manter os museus vivos, num momento em que nossas vidas estão em xeque?

Há mais de 10 anos a ACAM Portinari em parceria com o SISEM-SP organizam o Encontro Paulista de Museus, no qual convidam diversos profissionais da área, com a finalidade de adensar as reflexões sobre o tema gerador e compartilhar ações e novas ferramentas tecnológicas. Nesta 11ª edição durante os 5 dias de evento foram realizadas diversas conferências e mesas de debate, das quais seria impossível em poucas linhas trazer a potência de toda a programação, mesmo assim, destacarei algumas atividades que nos permitem compreender a diversidade de temas abordados, mantendo a coesão ao discutirem a luta necessária para manter o espaço do Museu vivo, em termos de público, profissionais qualificados, a manutenção econômica e a sustentabilidade.

Na mesa de abertura foi realizada uma homenagem póstuma a Júlio Abe Wakahara. O arquiteto e museólogo foi premiado com a Medalha do Mérito Museológico Waldisa Rússio Camargo Guarnieri. A organização do evento pretendia prestar-lhe uma homenagem em vida, o que não foi possível por questão de dois dias que separaram seu falecimento da data de abertura do evento. Mesmo assim, graças à prontidão da organização, foi possível gravar previamente o discurso de agradecimento, no qual podemos acessar o breve relato de Júlio sobre sua trajetória profissional de mais de 50 anos, e dos diversos projetos em parceria com Waldisa. Certamente seu legado permanecerá vivo, oferecendo rico exemplo a todos profissionais do campo da museologia.

A Conferência de Abertura ficou por conta da cantora e compositora Ellen Oléria, que inverteu a lógica de falar das dores que o racismo provoca, preferindo falar de toda a riqueza cultural do povo negro, convocando as pessoas brancas a se despirem de seus privilégios e perceberem-se como parte fundamental na luta antirracista na organização prática da vida cotidiana. Nesse ponto, podemos entender que a perspectiva brancocêntrica precisa morrer, para que haja vida possível para os museus, ou seja a narrativa museológica não pode estar fechada em uma perspectiva única, eurocentrada e excludente das múltiplas identidades raciais que compõem o povo brasileiro. A falta de identificação do público com as exposições representam simbolicamente a morte do público.

Jochen Volz, diretor da Pinacoteca de São Paulo, apresentou e mediou a Mesa Provocações: museus para quê?, sugerindo a necessidade de articular essa questão com outras duas: Por quê? E para quem? O professor Jacques Marcovitch, da USP, contextualizou o caráter dessa crise no âmbito sanitário, econômico, social e político, apresentando como possibilidades de respostas a essa crise o uso da nossa cultura como um espelho, um lugar onde podemos refletir sobre nós de modo que consigamos nos enxergar.

Continuando as “provocações”, Ana Carla Fonseca, representante da Garimpos Soluções, empresa que trabalha com economia criativa e desenvolvimento territorial, falou sobre os desafios e experiências concretas de museus que estão investindo em comunicação de maneira que o público integra os projetos. Dessa forma o museu deixa de ser visto como um mausoléu, um lugar que preserva o passado, e passa a ser percebido como um lugar vivo, onde circulam frequentadores, onde há possibilidades de “ressignificar, reposicionar e contextualizar o passado no presente”, sendo capaz de lançar propostas futuras à sociedade. Ou seja, cabe aos museus a função de provocar a sociedade, evidenciando as permanências com o passado, bem como as rupturas e as possibilidades futuras que estão ligadas à dinâmica própria de cada local. Ainda sobre a importância de manter a vida nos/dos museus, o pensamento de Hampaté Bâ[3] pode nos ajudar a pensar em formas de manter a memória e as tradições vivas. Podemos aprender a importância da oralidade e da cadeia de transmissão das histórias, mesmo em nossa sociedade, tão marcada pela escrita. Sabemos da capacidade natural que cada ser humano tem para narrar sua própria história de vida e do mundo que o cerca, portanto não só no museu há conhecimento: seus frequentadores carregam consigo memórias, e torna-se necessário fazê-las circular. A desburocratização da estrutura do museu pode ser um facilitador de diálogos entre público, gestores e exposições.

Encerrando as “provocações”, o diretor do Museu Afro Brasil, Emanoel Araújo, também enfatizou a importância dos museus na salvaguarda de memórias e histórias, a função social na ativação do pertencimento racial e nacional. Estamos em luto também pelo genocídio da população negra. Das vítimas de homicídio no Brasil, 75,7%[4] são negras. Considerando que no Brasil a população negra é de quase 60% do total, esse índice torna-se ainda mais significativo. Para Araújo, os museus podem funcionar como “um espelho de autoestima”, um lugar onde o público pode enxergar sua própria imagem e admirá-la. Assim como Marcovitch, Araújo também utiliza a metáfora do espelho em relação à função dos museus, de refletir em suas exposições a imagem do público, fazendo este refletir de maneira profunda sobre nossa cultura, sociedade, política etc.

O Brasil é o 5º[5] país no mundo em taxas de feminicídio; considerando as pessoas trans o país está em 1º lugar no mundo[6]. Estamos em luto também pelas mulheres e pessoas trans assassinadas. São necessárias ações punitivas e educativas capazes de mudar esse cenário. Nesse ponto a função social e educativa dos museus pode ser trabalhada, incluindo exposições permanentes sobre a importância das mulheres e pessoas trans na história, assim como explicitar a produção artística de mulheres e pessoas trans.

Para organizar a vida financeira dos museus neste momento de crise econômica, o painel “A importância do advocacy no cenário futuro dos museus” apresentou alguns caminhos. A presidente do Conselho Internacional de Museus (Icom-BR), Renata Motta, o presidente da Associação Brasileira das Organizações Sociais de Cultura (Abraosc), Paulo Zuben, e o coordenador do Instituto Alana e membro da Impacta Advocacy, Pedro Hartung, compartilharam suas percepções sobre a importância do advocacy como ferramenta fundamental para o setor cultural. Renata iniciou definindo o termo advocacy como um conjunto de práticas coletivas que visam a promoção de políticas públicas. Portanto, é uma ferramenta que pode potencializar ações de transformações sociais. Como exemplos de advocacy, Renata citou a aprovação da Lei Aldir Blanc, que injetou R$ 3 bilhões no setor cultural, e a Campanha Coalizão Negra por Direitos.

Sobre a permanência da vida humana e do planeta, a mesa de debate “Os meios e os fins conectados” abordou o tema da sustentabilidade econômica dos museus, contando com a apresentação de Victor Magrans Julià. O gerente do Museu Nacional de Arte da Catalunha refletiu em torno da definição de sustentabilidade formulada pela Organização Mundial da Saúde (OMS): “satisfazer as próprias necessidades”. A partir dessa definição, decorre outro questionamento: quais são as necessidades? Magrans propõe pensarmos a sustentabilidade de maneira ampla, considerando o aspecto ambiental, financeiro, social e ético. Como ações sustentáveis, compartilhou o amplo programa de ações já em andamento no Museu de Arte da Catalunha, que vão desde campanhas de conscientização dos funcionários, do público, formação em técnicas organizativas, até práticas cotidianas de redução do consumo de energia elétrica, desperdício de água, parar de consumir plástico; melhorar a logística, oferecendo carona ou utilizando bicicletas.

Mesmo com tantas propostas exitosas de sustentabilidade, me parece oportuno considerar as reflexões do ambientalista Ailton Krenak[7] com relação às ideias de sustentabilidade. Em sua crítica, afirma que a ideia de sustentabilidade serve de justificativa para a manutenção do padrão de produção e consumo, visando os objetivos econômicos. Será que devemos fazer a defesa de ideias que visam adiar o fim do mundo, ou seria mais efetivo mudarmos hábitos a ponto de o fim do mundo deixar de estar na nossa dimensão de futuro? Mais profundo do que falar em sustentabilidade seria repensarmos a vida em nosso planeta. E, nesse ponto, talvez a dimensão de um luto mundial que estamos vivenciando possa nos fazer mudar a maneira como vivemos e nos relacionamos. Enfim, os museus devem servir à vida.

Esse relato síntese sobre o 11º EPM visa aguçar o interesse do leitor e convidá-lo acessar a página do YouTube do Sistema Estadual de Museus de São Paulo (Sisem-SP)[8], onde poderá acompanhar as reflexões propostas pelos próprios conferencistas.

 

Referências

HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. História geral da África. 2. ed. Brasília: Unesco, 2010. v. 1: Metodologia e pré-história da África.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras: São Paulo, 2019.



[1] Brasil registra 644 mortes por Covid em 24 horas e ultrapassa 168 mil. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/11/19/casos-e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-em-19-de-novembro-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml. Acesso em: 22 mar. 2021.

[2] Brasil tem o maior número de mortes de Covid-19 por milhão de habitantes entre os países mais populosos. Brasil tem 1,9 mil mortes por milhão de habitantes, à frente de Estados Unidos, México e Rússia e outros 10 países com mais de 100 milhões de habitantes. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/05/06/brasil-tem-o-maior-numero-de-mortes-de-covid-19-por-milhao-de-habitantes-entre-os-paises-mais-populosos.ghtml. Acesso em: 11 maio 2021.

[3] HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. História geral da África. 2. ed. Brasília: Unesco, 2010. v. 1: Metodologia e pré-história da África.

[4] Número de homicídios de pessoas negras cresce 11,5% em onze anos; o dos demais cai 13%. Para não negros brasileiros, taxa de homicídios é semelhante à Rússia, para negros, Guatemala. Em 2018, a violência contra população LGBT + aumentos 19, 8%; dados são do Atlas da Violência 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-27/numero-de-homicidios-de-pessoas-negras-cresce-115-em-onze-anos-o-dos-demais-cai-13.html. Acesso em: 11 maio 2021.

[5] Uma mulher é morta a cada nove horas durante a pandemia no Brasil. Monitoramento mostra que há subnotificação e ausência de dados sobre raça, orientação sexual e identidade de gênero. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/10/10/uma-mulher-e-morta-a-cada-nove-horas-durante-a-pandemia-no-brasil. Acesso em: 10 maio 2021.

[6] Assassinato de pessoas trans voltam a subir em 2020. Disponível em: https://antrabrasil.org/category/violencia/. Acesso em: 11 maio 2021.

[7] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo.  São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

[8] 11º Encontro Paulista de Museus. Disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLF9wR3xlXzRYUk3s8h3RX1AF6ZGpTFFz-. Acesso em: 18 mar. 2021.