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"Eu sou muito mais do que a minha dor": um chamado à obrigação branca do antirracismo

Relato crítico por Sofia Gonçalez – Conferência de Abertura: “Palestra para um País racista onde ninguém se declara racista.” Conferencista: Ellen Oléria Encontro Paulista de Museus 2020 – 23 de novembro de 2020

 

Relato crítico por Sofia Gonçalez

 

Relato crítico da conferência de abertura: “Palestra para um país racista onde ninguém se declara racista”

Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus Encontro Paulista de Museus

Ellen Oléria inicia a conferência apresentando a si e sua família, bem como sua formação e trajetória profissional. Anuncia sua compreensão de que foi convidada para esta comunicação não só por sua vivência profissional, mas, em maior medida, pelas condições que a definem enquanto sujeito: mulher, negra, lésbica, brasileira, apontando que representa, ao mesmo tempo, uma maioria e uma minoria da sociedade brasileira: “Nós [mulheres negras] somos a maioria gerando recursos no Brasil e somos minoria gerindo esses recursos”.

Oléria relata que foi convidada para falar sobre sua experiência enquanto mulher negra no campo da arte e diante da expressão do racismo, bem como seus impactos em sua carreira e vida pessoal. Informa que sua fala terá três momentos: marcadores sociais e racismo; legado ancestral e perspectiva.

A conferencista apresenta seu entendimento de que sua presença em eventos como o Encontro Paulista de Museus, sobretudo em novembro, mês da Consciência Negra, é uma afronta aos poderes hegemônicos. A cantora relata que tem sido convidada para fazer comunicações a respeito de suas vivências no enfrentamento do racismo. Sobre o público desses eventos, ela aponta que é composto por jovens negros e negras e supõe que o objetivo seja gerar espelhamento e esperança, sendo ela uma mulher negra “bem-sucedida”. Ou seja, que não ocupa cargos de baixa remuneração, como é tão comum entre negros e negras no Brasil; que não foi vítima do encarceramento em prisões ou manicômios; e que tem uma carreira que envolve sua exposição e “brinca com as vaidades humanas”.

Além dessas audiências, ela relata que é comumente convidada para falar para instituições criadas e geridas por pessoas brancas, em sua maioria homens. Incerta de que esse seria o caso do EPM, Ellen chama atenção para o fato de que os museus são instituições historicamente brancas, que narram a história a partir de uma perspectiva branca.

Antes de avançar, Oléria aponta que experiências de desqualificação são comumente vividas por pessoas de pertencimento não branco, de forma ainda mais recorrente em indivíduos retintos, como ela própria. E avisa: “Não será possível compreender o que é essa dor de maneira ilustrativa”, ou seja, sua fala de 30 minutos não será capaz de promover o aprendizado da vivência do racismo às pessoas brancas que a escutam. Com essa fala, Oléria anuncia não a limitação da conferência em si mesma, mas das possibilidades de compreensão, por meio de uma narrativa, de uma dor vivenciada pelo outro. “O que convence o ser humano de atos desumanos é a sua consciência e sua sensibilidade”.

Buscando compreender o segundo grupo de convites que recebe, ela se pergunta “o que é essa necessidade das instituições e dos grupos formados majoritariamente por homens brancos de ouvir as dores de quem é tratada por eles próprios e seus sistemas como categorias inferiores de ser humano?” Denuncia os processos de dominação impostos por homens, que objetificam e demonizam os corpos das mulheres. Na mesma medida, aponta a tentativa de desumanização perpetuada por brancos e brancas, que, ao mesmo tempo em que qualificam negros e negras a partir da negação (“não inteligente, não belo, não limpo”), se utilizam de suas tecnologias culturais, expressões religiosas, manifestações artísticas.

A respeito de sua condição como mulher lésbica, Oléria limita-se a apontar que a heteronormatividade compulsória não reconhece a existência da lesbianidade, ou a negra.

Partindo de seu pressuposto, neste momento implícito, de que não é possível “aprender” o sofrimento do racismo, Oléria se pergunta se a procura por ouvir memórias de dor e racismo por quem a vivencia seria um sinal de sadismo ou um apagamento total da própria memória de uma identidade branca no mundo. Fica sugerida uma provocação aos ouvintes e organizadores do EPM sobre as razões pelas quais ela foi convidada para fazer esta conferência de abertura.

Ela apresenta as hipóteses que levantou: pessoas brancas passam tanto tempo pensando nas pessoas negras que se tornaram incapazes de pensar a sua própria identidade? Seria um desespero para que sejam lembrados de seu legado de violência e extermínio? Ou ainda “uma renovação de toda a responsabilidade histórica jogada nas costas de um tal sistema imaginário que não tem agentes políticos?” Deixa o aviso: pessoas negras não podem ensinar aos brancos quem eles são: “Vocês precisam descobrir”. E, assim, anuncia que se recusa a contar histórias de quando foi vítima de racismo.

“Eu sou muito mais do que a minha dor. Eu gostaria de receber mais convites para falar da potência da minha produção artística, dos lugares que minha voz pode alcançar. Não sobre ser uma mulher negra e lésbica, eu sou, mas eu sou mais. [...] Não vou mostrar aqui minhas feridas, aliás, eu estou muito bem, obrigada.”

Com essa fala contundente, calma e com um toque de ironia, a artista deixa claro que, sendo possível que suas hipóteses se mostrem verdadeiras no caso do EPM, ela não contribuirá para o sadismo ou a incapacidade dos brancos de pensarem sua própria identidade e legado.

A seguir, aborda a questão da reparação histórica e o medo que identifica entre pessoas brancas diante deste tema. Provoca a rememoração de que, historicamente, foram brancos que saquearam terras, costumes, cultura e pertences de outros, deixando subentendido que o medo dos brancos contemporâneos é injustificável.

Assim, chega ao tema de legado e ancestralidade. “É muita arrogância e pretensão a suposição de que o povo preto deseja figurar em seus cenários e ostentar o que vocês chamam de riqueza, minha gente branca”. A partir de exemplos de comportamentos frequentemente verificados entre brancos (os quais, subentende-se, fazem parte de uma classe mais infeliz e com maior poder aquisitivo) e entre negros (cujas vidas são marcadas, na fala da artista, por precariedade e alegria), Oléria oferece um olhar sobre “acúmulo e escassez”, a partir do qual entende que riqueza é conceito complexo, com múltiplos significados. Segundo ela, negros e negras não querem o que brancos chamam de riqueza, estando há séculos pedindo aos brancos que “parem de nos matar”. Assim como não se pode ensinar a dor, também não é possível ensinar a alegria. O que se reivindica são as próprias riquezas e alegrias. Ela diz aos brancos: “Devolvam!”.

Chegando à terceira parte de sua fala, a cantora retoma uma entrevista que concedeu, na qual uma jornalista havia perguntado como era ser negra no Brasil. Ao que ela responde: “É inacreditável ser uma negra no Brasil”.

Oléria aponta como inacreditável ser herdeira de uma tradição poderosa, que gloriosamente se conecta com o planeta e se faz guardiã e representante das forças da natureza. “Motumbá ao panteão dos orixás”.

E segue com uma grande lista de “inacreditáveis” legados: mulheres negras sobreviveram e continuam vivas, a despeito do maior massacre da história da humanidade; após projetos de extermínio e eugenia, negros e negras influenciam e fazem de sua música, a música e a cultura do ocidente; da fome, criaram uma gastronomia colorida e saborosa; diante de intolerância religiosa, fundiram tradições e criaram religiões que respeitam as diferenças das nações.

A lista continua: “É inacreditável entender que um pedaço da história do Brasil tenta seguir nos invisibilizando e nós rasgamos as páginas dessa história para reescrevê-la com espelhos que reflitam também os nossos olhares e memórias”. “É inacreditável essa nossa ancestralidade que venceu a arma de fogo com pau, pedra e capoeira e, no meio disso, a gente ainda criou o samba”. “É inacreditável que nós tenhamos superado o afastamento da língua e que nós tenhamos inserido tanto nesse português do Brasil [...], que hoje seja impossível negar nossa inventividade e nosso distanciamento da língua do colonizador”. “É inacreditável resistir a cada dia à força desse projeto ignorante, que se adapta a uma ideia de capitalizável de politicamente correto e mascara as vicissitudes de um pensamento racista ainda vivo”.

E, por fim, “É inacreditável ser negra no Brasil, inacreditável, porque imaginem só, ainda tem um orgulho no meio disso que a palavra não consegue comportar, um orgulho negro”.

Tendo retomado o samba, que acolhe a todos e todas, democraticamente, Oléria relembra ter ouvido de uma pessoa branca que negras e negros deveriam impedir a troca com pessoas brancas em terreiros, a quem respondeu citando a poetiza Poli Preta “As armas do senhor não vão acabar com a casa grande”. E completou: “não é assim que nós fazemos nossas coisas [...] as nossas tecnologias são generosamente compartilhadas”.

Chegando ao terceiro e último tema, Perspectiva, Oléria aborda a recente onda de processos antirracistas e pontua que, se para alguns desavisados a luta racial é uma novidade, “para nós tem sido, desde sempre, um estilo de vida”.

Lembra que a desigualdade no Brasil tem como inegáveis marcadores raça e etnia, presentes em tudo, inclusive na violência dos aparelhos de Estado que matam crianças em favelas. Assim, se o direito é desigual, faz-se necessário gritar, revoltar-se como se revoltaram os Malês. Denunciar, como denunciaram tantas organizações e coletividades negras. “Esse aí é o país racista, onde ninguém se declara racista. Isso é o Brasil”.

Perguntada se acredita que os protestos podem contribuir no crescimento da consciência social, responde que esse desenvolvimento depende mais de as pessoas brancas falarem sobre como o racismo se mantém vivo em suas práticas cotidianas e como combaterem essa memória social.

Em diálogo com sua própria fala anterior, em que havia se recusado a falar sobre os momentos em que sofreu racismo, convoca: “Pessoas brancas, falem sobre seus racismos”. Nesse movimento, desloca a questão do combate ao racismo como tarefa dos negros e/ou das manifestações, e chama os brancos para sua parcela de responsabilidade.

Oléria denuncia o Brasil e outros países latino-americanos que não abordam o racismo de maneira clara e direta, de forma que pessoas brancas sequer admitem sua identidade branca. De forma novamente provocativa, traz a ideia da inércia para explicar a situação acomodada dos que não se afetam nem têm prejuízos com o racismo.

“Precisamos falar sobre ancestralidade branca e seu legado”, enquanto exigência do nosso tempo de que “nos conectemos com a atualização do nosso projeto de vida, com a existência humanizada e digna, e com a desconstrução de uma máquina de extermínio dos povos negros, que ainda impera no Brasil”.

Novamente a partir da ideia da inércia, reafirma que aqueles que estão em movimento, permanecerão em movimento. Os quais, pode-se inferir, são os mesmos apontados por ela anteriormente, para quem a luta racial sempre foi um estilo de vida. “E todas as pessoas são convidadas a se mover e a questionar sua história e seus mecanismos sociais no seu cotidiano”. Sutilmente, fica claro pelo transcorrer da conferência que “todas as pessoas” seriam, na verdade, os brancos, ainda imóveis, uma vez que negros e negras nunca deixaram de se movimentar na resistência à máquina de extermínio e na construção de seus “inacreditáveis” legados.

Chegando, finalmente, a um tema que lhe causa satisfação em abordar, sorri ao falar de arte, afirmando que seus mecanismos se misturam com os da memória e da consciência, entendendo a memória como combustível da consciência.

A partir da ideia de que “a arte pode ser nossa ponte de expansão com uma consciência coletiva”, cita uma série de manifestações musicais estadunidenses (jazz, funk, rock), caribenhas (salsa, cúmbia, mambo) e brasileiras (chorinho, pagode, axé music, vassi, afoxé, maracatu, xaxado...) como formas de mergulho na memória e de conhecer “a presença negra reescrevendo a história através de uma cultura rica e diversa”.

Ainda no tema da arte, aborda sua potência na conquista do imaginário, entendido como um território. Por meio dela, é possível reescrever a história, criando “novos reais”.

Para a pergunta “como trazer uma política de reparação para o cotidiano?”, ela responde com ousadia: “não sei”, mais uma vez enviando o recado de que a responsabilidade é compartilhada e uma pessoa negra, sozinha, não trará todas as respostas. Agora de forma mais explícita, recoloca a questão já anunciada anteriormente: “pessoas brancas precisam pensar as suas coletividades, os caminhos de reparação histórica ao que foi gerado por elas e para elas como lucro, a partir da exploração e violência”.

Ainda assim, faz uma proposição, a partir de sua condição de artista: chama a atenção para a necessidade de atualização das imagens negras, na qual os museus têm papel fundamental, uma vez que atuam nos recortes de memória e definição de perspectivas por meio das quais a história é contada.

Adiciona que ocupar os museus com arte negra não é uma questão apenas relacionada à reparação histórica: “Ler uma autora negra brasileira é ter a oportunidade de expandir seu imaginário”, ou seja, uma oportunidade de desmonte de estereótipos arcaicos e tomar contato com histórias que vão além.

Por fim, coloca a complexidade da questão de que o consumo da arte negra não ameniza as relações de poder, sendo necessário um “exercício diário de conexão com nossos mecanismos”, e ativar o pensamento exige trabalho. E retoma, novamente utilizando uma metáfora a partir da Física clássica, a questão da necessidade de se movimentar: “Trabalho não é força vezes deslocamento?”.

Encerrando sua fala, Ellen Oléria chama atenção para a fragilidade das estruturas atuais e convoca a todos para a urgência de se movimentar em busca de uma transformação dessas estruturas.

Um ouvinte atento percebe que a fala da artista é, em grande medida, um paradoxo: uma conferência na qual apresenta as razões pelas quais se recusa a abordar os temas sobre os quais foi convidada a falar. Seu conteúdo parece ter o objetivo de explicitar que as temáticas sugeridas pela organização do evento são limitadas, e o são justamente por terem sido propostas por quem foram, segundo sua suposição: homens brancos, que chefiam instituições historicamente coloniais, racistas e machistas, os museus.

Ellen é assertiva, educada, irônica e, também por isso, muito eficaz em sua comunicação. Deixa para o campo dos museus alguns alertas importantes. Pessoas negras não podem ser convidadas para estes eventos para indicar os caminhos pelos quais os brancos devem trilhar uma desconstrução das estruturas racistas que eles próprios criaram. O estabelecimento de uma prática antirracista é obrigação dos brancos, uma vez que o racismo é um problema do branco, tendo sido perpetuado e atualizado por ele. Atentando para esse aspecto, nos afastamos das seduções de um uso raso da ideia de “lugar de fala”.

A conferência de abertura de Ellen Oléria tem o potencial de abalar estruturas, porque, em vez de oferecer respostas, propõe transformação a partir de movimentação coletiva. Ainda assim, pode-se estabelecer a partir dela um primeiro passo: é preciso que se reconheça a potência, a competência e a pertinência da presença de negros e negras no debate das mais diferentes temáticas, possibilitando a construção de práticas museológicas mais democráticas e plurais em suas riquezas.