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Relato crítico: Mesa de Debate: Identidade e protagonismo

Relato por Beatriz Nogueira

 

Por: Beatriz Nogueira - Articuladora cultural e graduanda em Biblioteconomia pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

 

 

Convidados: Suzenalson Kanindé – Articulador da Rede Indígena de Memória e Museologia Social, Jean Baptista – Professor da Universidade Federal de Goiás, Tony Boita – Editor da Revista Memórias LGBT, Biko Rodrigues – Coordenador Executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).

Mediação: Susy Santos - educadora e pesquisadora.

 

A partir do tema em questão – Identidade e protagonismo, a mesa questionou o papel do museu no estabelecimento de diálogos com grupos étnicos e também com a comunidade LGBT. Tais populações constituem partes integrantes da arte e cultura da sociedade, tendo, porém, devido às estruturas de opressão, seus respectivos campos de memória e expressão subjugados historicamente. Com isso, a difusão, valorização e conservação de sua memória cultural nos museus por meio de políticas públicas, foram os eixos das discussões trazidas.

Os museus se constituem a partir de recortes e escolhas acerca do que se preservar, evidenciar, difundir e atender sobre demandas sociais. Na fala inicial da mesa de Suzenalson Kanindé, chama-se a atenção para o patrimônio que a cultura indígena dispõe na construção da sociedade brasileira, a Museologia Indígena é por ele apresentada como aquela que expõe o território vivido por essa população. Entendido por ele como um espaço de representação para além de expressões artísticas, trata-se, sobretudo, de território de memória antropológica, sendo esta apresentada por seus próprios vivenciadores – os povos indígenas. Isso nos conduz ao lugar contra-hegemônico e descolonizado, o “índio” fetichizado e desumanizado pelas simbolizações ocidentais se humaniza ao expor o seu modo de viver e olhar o mundo, expresso em significações próprias, a partir de objetos, quadros e outros. Suzenalson propõe o diálogo sobre etnicidade que objetiva a emancipação e cidadania do indígena, citando a museóloga  Marília Xavier Cury que no conhecimento acadêmico expõe a multiplicidade das construções culturais no tempo (memória) e no espaço (multilocalizadas) no território museológico. De acordo com a autora o museu tem sua origem no colecionismo e diletantismo, aos poucos tal local reservado para acesso exclusivo de elites “ilustradas” transformou-se na instituição voltada para a comunicação do patrimônio cultural preservado no contexto de políticas democráticas (CURY, 2005). No entanto, no capitalismo vigente segundo Gramsci dispõe de ideologias hegemônicas elitizadas (apud COUTINHO, 2011). Apaga-se simbolicamente e concretamente as manifestações e existência de populações exploradas. Com isso, o museu que disponha de objeto material como vetor de conhecimento, comunicação e de construção de significados culturais múltiplos, ainda é disputado. Suzenalson reivindica narrativas contra-hegemônicas que ponham em prática a democratização dos museus.

A segunda fala da mesa, de Jean Baptista e Tony Boita, também reivindica a contra-hegemonia ao abordar a memória da luta LGBT no contexto museológico. Eles trazem a questão da discriminação sempre dirigida à comunidade LGBT que gera memórias traumáticas, dando como exemplo a falsa associação do HIV  à homossexualidade, apresentando as origens de tal discriminação e suas consequências até a atualidade. Jean e Tony expõem dados que evidenciam esse tipo de estigma e como se perpetua a LGBTfobia enquanto cristalizadora de arquétipos negativos e memórias traumáticas para esta população.  Ante tais memórias traumáticas e discriminatórias, como reagem os museus?  Jean e Tony citam a autora Cristina Bruno (2008), que aponta na Pedagogia da Memória um meio para o campo museal lidar com o que ela chama de “memórias exiladas”, relegada a grupos sociais subalternizados. Na mesa, eles abordam a conivência da museologia tradicional com a discriminação LGBT e como isso passa a ser confrontado pela chamada Museologia LGBT, que abriga memórias traumáticas, mas que também busca preservar e criar representações positivas e emancipatórias acerca desta comunidade.

A última fala, de Biko Rodrigues, chama a atenção para a memória afrobrasileira e quilombola na cultura nacional; a história dessas comunidades se entrelaça profundamente ao patrimônio brasileiro em diversas frentes. Para Biko, dado o imenso número de comunidades quilombolas no país, certificadas, até o momento, em 2471 comunidades pela Fundação Palmares, sua representação museal não corresponde satisfatoriamente. O patrimônio afrobrasileiro e quilombola está nos conhecimentos de plantas medicinais, técnicas produtivas de agricultura familiar, registro oral da história nacional, culinária, cultos, festas e outros tipos de manifestações culturais. A garantia da preservação de objetos, documentos, expressões artísticas, sítios arqueológicos e demais itens memoriais de povos negros nos museus demandam uma construção e reivindicação coletiva. Evidenciar parte da história  e garanti-la para a posteridade da cultura brasileira por meio dos museus são, para Biko Rodrigues, algo emergencial. Ele enfatiza a necessidade de políticas públicas voltadas para o investimento e ampliação de museus étnicos no Brasil.

As funções do espaço museológico são discutidas pelo autor Martin Grossmann (1991) e outros por meio da proposta de um “Anti-Museu”, em vista de um estado de crise permanente dos museus desde que esses territórios se abriram a todo cidadão. O marco do museu público inicia o dilema da função social dos museus ante os embates políticos e econômicos vigentes. Muschamp (1987) coloca em “A dúvida da musa”: subir o escadario de mármore para o Olimpo ou estender definitivamente suas mãos para a rua?” Levin (1983) sugere em relação ao seu design e arquitetura: museu templo ou como showroom? Os museus já superaram a postura hermética restrita a especialistas da arte? Já saíram da postura explicativa de caráter educativo? Eles estão, de fato, numa fase em que impera a sobreposição entre enunciatário (que recebe o discurso) e enunciador que reelabora os múltiplos discursos sociais e cria a unicidade de seu discurso? (CURY, 2005). A abertura das portas dos museus para o grande público, bem como a sua sobrevivência, são verossímeis por meio de políticas públicas capazes de torná-los de fato museus sociais de memória, identidade e protagonismo de culturas múltiplas. Do contrário, subiremos cada vez mais o escadario de mármore.

Na disputa por narrativas contra-hegemônicas nos museus, os caminhos que se misturam aos interesses privados e mercantilizados são contraditórios. Entendo que a implantação de sistemas de catalogação que beneficiem a ampla difusão do patrimônio e a preservação museal no Brasil caminham a passos lentos. De um lado, há poucos investimentos públicos em patrimônio devido a gestões políticas frágeis e desinteressadas, de outro, vemos como os museus entregues a instituições privadas priorizam interesses financeiros em detrimento de sua democratização. A mesa sobre Identidade e Protagonismo evidencia que a memória nacional e os ganhos culturais da sociedade dependem da ampliação do conceito e prática de Museu Social e Anti-Museu. Sua grande possibilidade está na manutenção, reivindicação e defesa de políticas patrimoniais públicas.

 

Trabalhos citados

 

BRUNO, Maria Cristina Oliveira & NEVES, Kátia Regina Felipini. Museus como Agentes de mudança social e desenvolvimento: propostas e reflexões museológicas. São Cristóvão: Museu de Arqueologia de Xingó, pp. 21 - 39, 2008

CURY, M. X.: Comunicação e pesquisa de recepção: uma perspectiva teórico metodológica para os museus. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 12 (suplemento), p. 365-80, 2005

GRAMSCI, Antonio. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos 1916-1935. Organização e Introdução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 375p. 2011.

GROSSMANN, M. . O Anti-Museu. Revista de Comunicações e Artes, São Paulo, v. 24, p. 5-20, 1991. Disponível em: http://www.forumpermanente.org/revista/numero-1/museu-ideal/martin-grossmann/o-anti-museu#_ftn2

M. Muschanp. The Americam Museum scene. In: Lotus International, n.53, 1/1987.

M.D. Levin. The modern museum: temple or showroom? Tel Aviv: Dvir Publishing House, 1983.

Mapa dos Quilombos no Brasil: https://cpisp.org.br/mapa-dos-quilombos-geografia-da-resistencia/

http://www.forumpermanente.org/revista/numero-1/museu-ideal/martin-grossmann/o-anti-museu#_ftn2