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Museus e suas sustentabilidades: finanças, gestão, conteúdo e ESG

por Daniel Rubim

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Por Daniel Rubim

Relato crítico da mesa: “Sustentabilidade para museus”

 

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de MuseusEncontro Paulista de Museus

No 1º Encontro Paulista de Museus, em 2009, Leonel Kaz, o então diretor do Museu do Futebol, realizou a palestra “Sustentabilidade para museus”. Focado na sustentabilidade financeira, Kaz utiliza o Museu do Futebol como exemplo de modelo de negócios, diversificação de fonte de rendas e domínio do dia a dia administrativo na condição de fundamentos para a existência de instituições culturais, tendo como base a experiência de comandar a implementação desses aspectos.

Iniciando pelos suspeitos usuais, Kaz apresenta as principais fontes de recursos financeiros para museus e exemplifica com a operação que acabara de implementar: bilheteria, locação de espaços para eventos e cessão de espaço para restaurante respondem por 20% do orçamento, enquanto 80% são oriundos de recursos públicos.

O diagnóstico é gravíssimo. Longe de ser exclusiva desse museu, a realidade da maioria das instituições culturais brasileiras é concentrar ainda mais sua renda em verba pública. A pouca diversificação de fontes expõe a cultura a mudanças regulatórias ou legais: imagine que uma autoridade qualquer decida suspender o acesso a verbas, seja por 15 dias[1], seja por três anos[2]. Ou que haja uma reforma tributária, levando à extinção dos mecanismos de arrecadação estatal que originam e viabilizam as verbas, cortando o dinheiro pela raiz. Em uma ou duas canetadas, o setor inteiro reduz seus recursos para 20% do planejado. Para qualquer negócio, de fins lucrativos ou não, ter apenas uma fonte de recursos majoritária é abdicar da liberdade de escolha e do poder de negociação.

Além dos riscos legal-regulatório e de mercado, o uso de verba pública enfrenta enormes restrições. Kaz dá ênfase à importância administrativa de conhecer a fundo e seguir a Lei n. 8.666, de 1993[3], que rege gastos públicos. A lei tem efeito direto em órgãos vinculados ao poder público federal, como ministérios e secretarias, mas também é a referência na qual se baseiam os gastos para instituições e projetos culturais que usem aportes ou incentivos. Daí se origina o absurdo de museus com goteiras em seus acervos: é possível comissionar artistas a produzir novas criações por meio de competições em editais ou receber acervos doados, mas não é possível fazer manutenção predial para garantir a estrutura básica de conservação – ou, quando é, as sobrecarregadas equipes técnicas interrompem suas funções para se perder no mar burocrático de licitações.

Voltando à fonte de renda mencionada por Kaz: nos 20% restantes gerados sem envolvimento do poder público, o cenário é ainda mais complexo. Ingressos não apenas falham em gerar renda suficiente para o funcionamento institucional, como também se tornam atritos para a visitação. Quantos museus conseguiriam cobrar R$46,00 de entrada sem ver seu público reavaliar se prefere conferir o entretenimento da semana? Além da queda de receita direta do ingresso, a queda de visitantes faria poucos restaurantes se sentirem atraídos para alugar o espaço e diminuiria os números demográficos que motivam patrocínios, uma falha catastrófica no faturamento. Outro efeito poderia ser esses restaurantes terem seu fluxo de clientes independente do museu, ofuscando exposições com suas vistas espetaculares, seus pratos sofisticados e sua lógica própria de consumo. Um grande gol contra.

Existem alternativas para gerar receita a partir da cultura, algumas delas em prática na época do Encontro com participação de Kaz. Desconsideraremos iniciativas primariamente comerciais como galerias ou feiras, assim como os desastrosos descomissionamento de obras que desmembram acervos para apagar incêndios anuais. Também não entram nessas alternativas os fundos de endowment, instrumento financeiro exclusivo a instituições sem fins lucrativos que já têm condições confortáveis e almejam acumular capital para fins específicos. Falaremos aqui apenas sobre o capital simbólico do museu, que precisa ser reconhecido e transformado em produto.

Oferecer cursos pagos é um caminho inicial mal explorado, em grande parte um efeito colateral de ter no incentivo fiscal sua maior fonte de renda. Seguindo as já mencionadas regras para uso de verba pública, instituições aderem imediatamente ao caminho claro de direcionar os departamentos educativos apenas às obrigatoriedades do Estado: educação a crianças e difusão do conhecimento a quem se presume não ter acesso por falta de recursos logísticos ou financeiros. Essas obrigatoriedades são evidentemente importantes para sociedades mais justas e funcionais, mas são deveres do Estado para corrigir o funcionamento predatório do mercado. Quando levadas como única opção, esse caminho aliena uma população economicamente ativa, em especial quem tem recursos financeiros e, presumidamente, condições de se interessar e acessar cultura, mas não o faz. Como educar um adulto? Como atrair grupos de pessoas que ocupam seus cotidianos com a massacrante rotina da produtividade? Como o capital simbólico pode transitar em um mundo voltado ao consumo rápido? Servindo-se dessas forças, em vez de competindo com elas. Modelos não faltam: cursos com conteúdos que relacionem acervos à individualidade do pagante, atividades que aumentem o engajamento entre empresas e seus colaboradores, encontros com artistas de exposições temporárias que apresentem mecanismos de interpretação de seu trabalho...

Para além dos cursos, a educação precisa considerar outros caminhos e ferramentas. O Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) já abriu um desses caminhos mais de três décadas atrás com seu clube de colecionadores, há anos a segunda maior fonte de renda do museu privado. São comissionamentos de obras múltiplas – portanto de custo relativamente baixo – criadas por artistas de relevância em diálogo com a curadoria do museu. Para quem quer acessar o mercado de arte contemporânea essa é uma fonte de conhecimento segura, com narrativas claras e legitimado pela inclusão de uma das edições do múltiplo no acervo. Essa legitimidade mitiga qualquer risco que preocupe alguém inseguro em colocar seu dinheiro em algo que não domina.

Outra alternativa é indicada pelo relacionamento com o poder público. O Sesc, Serviço Social do Comércio, é um modelo de integração entre atividades de diferentes campos do conhecimento, característico ao Brasil. Diferentemente das verbas voltadas à cultura, o chamado Sistema S é justificado pela relação direta entre produtividade do trabalhador e sua qualidade de vida e conhecimento, com sucesso particular no estado de São Paulo. Entre outros méritos dessa jabuticaba, a cultura é inserida no contexto do Sistema S e articulada dentro do Sesc como um dos aspectos da qualidade de vida, além de ser um instrumento básico para integração do indivíduo à sociedade, junto ao esporte, à saúde, à cidadania e à educação.

Assim como o Sesc entende a cultura inserida em contextos maiores, Kaz entendeu, na condição de diretor do museu do Futebol, o papel que aquele museu deveria ter na vida das pessoas. Duramente criticado por não possuir um acervo físico, o museu propõe, muito além da materialidade, um mecanismo pelo qual o visitante acessa seus afetos e identidades. É o ambiente onde o patrimônio imaterial preservado é a tradição familiar de ver o jogo com os pais, a identidade de ir ao bar torcer com os amigos, a memória sensorial e emocional de 20 mil pessoas juntas gritando “GOL!”. Nas palavras de Kaz, “a relação entre um avô e um neto, entre o marido e uma mulher, entre uma garotada e outra garotada, é uma coisa interminável”. É por meio dessas relações que o Museu do Futebol se mantém vivo e relevante, apoiando-se em aspectos institucionais já percebidos pela população sobre seu objeto. Esse entendimento converge com a definição de museu do International Council of Museums (Icom):

 

Um museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos a serviço da sociedade e seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e expõe patrimônio material e imaterial da humanidade e seu ambiente com o propósito de educação, estudo e apreciação (Icom, definição de museu[4]).

 

Kaz menciona brevemente um ponto-chave da estratégia institucional: as exposições temporárias. Aquelas exposições que geram furor e filas são vistas por Kaz como instrumentos de marketing, uma força que age na delicada oposição entre obter recursos por meio de atraentes programações e ter propósito para além do entretenimento e do consumo.

Longe da missão principal do museu, as exposições temporárias têm caráter comunicativo, o que pode ofuscar os olhos do público e dos próprios gestores quanto às demais atividades que o museu realiza. Focar o dinheiro com programações coloca o museu na mesma categoria de casas de shows, bares, festas e outros entretenimentos voltados ao consumo que tragam faturamento rápido. Por outro lado, a partir da definição de museu, fica claro que o foco precisa estar na preservação do patrimônio material e imaterial. Os métodos para tal, porém, podem resultar em postura avessa a novos contextos e dinâmicas, ou seja, a proteção física e conceitual, que não considera dinâmicas e contextos, pode criar hiatos entre o objeto preservado e os públicos que não pertençam ao local ou tempo de criação desse patrimônio. Isso resulta não em museus, mas em depósitos desinteressantes.

A definição de museu não só legitima o ponto de vista de Kaz em delimitar as exposições temporárias dentro do caráter instrumental como traz clareza sobre aquilo em que nos referimos ao criar programações. Outro efeito colateral dos incentivos fiscais à cultura (que comportam apenas projetos de duração máxima de um ano) é dar foco a exposições temporárias que tragam recursos para um museu, distraindo das funções principais de longo prazo. As exposições temporárias devem, primeiramente, servir como um instrumento para atrair pessoas ao museu, emprestando o frescor de novos olhares ao acervo. Não há mal em fazer festas, shows ou exposições blockbusters dentro do museu, há mal em fazer apenas festas, shows e exposições blockbusters dentro do museu.

Nesse sentido, o museu tem urgência em entender a internet de forma sistemática. Em 2009 ainda era possível imaginar, como exposto por Kaz, que as relações deveriam ser feitas dentro do espaço físico do museu, com restrições quanto ao uso de celulares e câmeras fotográficas para que o público não se distraia. Hoje, é impensável um museu que não permita que seu público replique imagens em suas mídias sociais. Se em 2009 o Twitter tinha apenas três anos, o Instagram estava a um ano de ser fundado, após 2020 as relações humanas obrigatoriamente passam pelo contato digital quando o isolamento físico se tornou pré-requisito para a vida. Como adaptar acervos às dinâmicas características da internet? Como conciliar comunidades de pessoas que nunca se encontraram pessoalmente com as narrativas históricas construídas até hoje? Seriam mesmo as mídias sociais os ambientes de maior potencial na internet ou há espaço para a geração de alternativas? Existe possibilidade de conciliação entre a (pressuposta) imaterialidade da internet e a materialidade de acervos?

Apêndice: Sustentabilidade

Seria omisso revisitar em 2021 uma palestra de 12 anos de idade com a palavra “sustentabilidade” no título e não abordar a definição de sustentabilidade em evidência hoje. No início de 2020 a crise sanitária global, coincidente com a guinada dos mercados internacionais de investimento, resultou em inúmeros eventos voltados à prática de Sustentabilidade Ambiental, Social e de Governança. Sintetizada na sigla ESG, iniciais de Environmental, Social & Governance, a palavra “sustentabilidade” esteve presente em acordos internacionais de alto nível e nas mais rasas palestras de Zoom, quase sempre com significado vago.

A ESG é a prática de responsabilidade governamental e corporativa regida pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável[5] (17 ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). São balizas conceituais que determinam rumos para a atuação da comunidade internacional, mas propositalmente deixam aberto a interpretações quais seriam os meios para obter tais resultados.

A virada de 2020 para 2021 tem valor mais do que simbólico: o escritório de investimentos americano Blackrock, maior gestora de investimentos do mundo em volume de capital, define em sua carta aberta anual aos clientes metas de ESG como pré-requisito para que empresas continuem recebendo seus recursos[6]. Se as urgências moral e existencial de manter a sociedade menos desigual e o planeta habitável não eram suficientes, com certeza o impacto econômico deu a essa pauta a maior prioridade possível. Meses depois, diversos outros gestores de investimentos de grande porte anunciaram as mesmas medidas e até mesmo sanções a empresas que não apresentavam atividades afins.

A abordagem ESG é completamente descartada por Kaz no evento, preferindo-se a sustentabilidade financeira, ou seja, estrutura de gestão e estratégia comercial para que o museu garanta recursos voltados à manutenção de sua operação. A concepção mais próxima à ESG é citada apenas em dois momentos. Primeiro na introdução, quando menciona a Conferência Rio-92 como marco para a sustentabilidade ambiental e rapidamente ignora a relação do museu com o meio ambiente. Isso indica que naquela época também existiu tal furor sobre a sustentabilidade que levava à confusão. Depois Kaz se refere a uma breve abordagem à acessibilidade para portadores de necessidades especiais sem vinculá-la à sustentabilidade, o que indica que não havia vínculo entre a palavra e a sustentabilidade social.

Kaz lista a criação de conteúdo para surdos e as comodidades propiciadas pela arquitetura como item de publicidade para o museu sem grandes consequências à integração social ou à manutenção de patrimônio. Assim, colocando como pontos fortes do museu, omite a obrigatoriedade dessa acessibilidade como pré-requisito operacional à obtenção de incentivo fiscal via Lei Rouanet[7], bem como a obrigatoriedade de acesso facilitado a portadores de deficiência ou mobilidade reduzida em edificações públicas.[8]

Infelizmente, o setor global da cultura tem hoje também muita dificuldade em se identificar com a ESG. Grande motivo é a inexistência de referência direta à cultura nos ODS, que na interpretação mais próxima exige a proteção de patrimônio cultural em apenas uma de suas 196 metas. O outro grande motivo é inerente às próprias ODS: sendo objetivos vagos, não há qualquer parâmetro para medir sucesso para qualquer uma das medidas. A corrida atual no cenário ESG é, mais do que apresentar projetos de impacto, saber qual é o impacto desejado, assim como torná-lo verificável, mensurável e comparável. Corporações adensam a sopa de letrinhas com siglas como MSCI ou SASB, enquanto governos articulam quais são as regras do jogo em diretrizes.[9]

A oportunidade reside exatamente em estarmos no momento de definição dessas diretrizes de atuação, um momento que separa o que é filantropia, por natureza fundos perdidos, de investimento, por natureza atividade que exige dividendos. Os investimentos em sustentabilidade ambiental existem após mais de 20 anos de história da métrica “toneladas de carbono”, que unifica projetos existentes e dá norte a novos projetos. Quais são as possíveis métricas comparáveis do campo da cultura que justifiquem sua inclusão na sustentabilidade social em volume global?



[1] Portaria n. 124, de 4 de março de 2021, emitida pela Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-124-de-4-de-marco-de-2021-306744475. Acesso em: 10 mar. 2021.

[2] Diário oficial do Estado de São Paulo, suplemento de 15 de janeiro de 2021. Disponível em: http://diariooficial.imprensaoficial.com.br/doflash/prototipo/2021/Janeiro/15/suplementos/pdf/pg_0001.pdf. Acesso em: 10 mar. 2021.

[3] Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acesso em: 11 mar. 2021.

[4] Tradução livre de: “A museum is a non-profit, permanent institution in the service of society and its development, open to the public, which acquires, conserves, researches, communicates and exhibits the tangible and intangible heritage of humanity and its environment for the purposes of education, study and enjoyment”. Fonte: site do International Council of Museums (Icom). Disponível em: https://icom.museum/en/resources/standards-guidelines/museum-definition/. Acesso em: 11 mar. 2021. É importante notar que, ao mesmo tempo em que este texto foi escrito, o Icom realizava uma pesquisa para a redefinição do que é um museu.

[5] Plataforma 2030, os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável. Disponível em: http://www.agenda2030.org.br/os_ods/. Acesso em: 10 mar. 2021.

[6] Carta aberta Blackrock aos clientes, publicada em janeiro de 2020. Disponível em: https://www.blackrock.com/corporate/investor-relations/2020-blackrock-client-letter. Acesso em: 10 mar. 2021.

[7] Decreto n. 7.761, de 27 de abril de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5761.htm. Acesso em: 10 mar. 2021.

[8] Lei n. 10.098, de 19 de dezembro de 2000, capítulo IV. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10098.htm. Acesso em: 10 mar. 2021. Essa obrigatoriedade legal posteriormente se estende a todas as construções de grande fluxo, inclusive de propriedade privada.

[9] Sustainability Bond Framework. Luxembourg Trade & Invest, agência vinculada ao Ministério da Economia de Luxemburgo. Disponível em: https://luxembourg.public.lu/en/invest/competitiveness/sustainability-framework.html. Acesso em: 11 mar. 2021.