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A imagem dos museus: visões e propostas ou investimento social privado em cultura: visões e propostas

Ilana Seltzer Goldstein – Relato da mesa A imagem dos museus: visões e propostas OU Investimento social privado em cultura: visões e propostas, 24/06/2010

Ilana Seltzer Goldstein - 2010

 

Relato Crítico da mesa “A imagem dos museus: visões e propostas”

Relato parte do livro - Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus Encontro Paulista de Museus

Antes de comentar as falas e debates que compuseram essa mesa-redonda, é preciso fazer uma observação preliminar. Ambos os jornalistas e críticos de arte convidados faltaram ao evento – Antonio Gonçalves Filho, de O Estado de S. Paulo, e Jorge Coli, professor da Unicamp e colaborador da Folha de S.Paulo. Provavelmente eles teriam discutido um pouco mais a imagem dos museus na mídia, na academia ou junto à opinião pública. No entanto, o que acabou acontecendo foi que apenas palestrantes de organizações financiadas por grandes grupos empresariais estiveram presentes para dar suas contribuições. Isso fez com que o teor da mesa mudasse um pouco – por isso os dois títulos acima, o primeiro tal como anunciado na programação do 2º Encontro Paulista de Museus e o segundo mais próximo ao que realmente se passou.

O representante do Instituto Votorantim não falou diretamente sobre museus, mas apresentou de forma genérica – e bastante convincente, diga-se de passagem – as diretrizes de patrocínio cultural do Grupo Votorantim. O representante da Fundação Roberto Marinho, por sua vez, falou de um tipo específico de museu que sua organização, financiada pela Rede Globo, tem fomentado. Assim, embora a mesa-redonda e o relato que aqui se inicia não tratem da imagem dos museus propriamente dita, permitem refletir sobre outras questões fundamentais, como o papel do marketing cultural e as escolhas museológicas que vêm sendo feitas no Brasil.

 

Instituto Votorantim: uma política de patrocínios consistente, por parte de uma empresa com atitudes controversas

Rafael Gioielli, do Instituto Votorantim, anunciou, já nos primeiros minutos, que, mais do que discutir a imagem dos museus, iria expor o investimento realizado pelo Grupo Votorantim na melhoria do acesso dos brasileiros aos equipamentos e produtos culturais. O grupo Votorantim, que existe há 90 anos, tem nove unidades de negócio e está presente em 400 municípios. É um dos maiores investidores privados de cultura no país. O Instituto Votorantim surgiu para alinhar e dar foco às ações de patrocínio antes dispersas no Grupo, “para aumentar seu poder de transformação e aglutinar recursos”.

Toda a estratégia do Instituto Votorantim, cunhada em 2005, está pautada na ideia de que “o investimento cultural, além de projetar a marca, deve contribuir para o desenvolvimento da cultura no país”. Por isso, o Instituto decidiu eleger as dimensões da difusão e da recepção da cultura.

 

Dentre as empresas que investiam em cultura, até então, falava-se muito sobre o apoio à produção cultural. Mas, na verdade, pesquisando, descobrimos que existe um grande descompasso entre o que é produzido e o que é consumido. Optamos, então, por investir na difusão de iniciativas culturais e na qualificação da fruição. Em 2005, tivemos acesso a um estudo do Centro de Estudos da Metrópole, de São Paulo, mostrando o descompasso entre as ofertas culturais e o acesso da população jovem a essas opções. O mapa mostrava que o centro expandido concentrava os equipamentos culturais e os jovens com menor acesso moram nas zonas Sul e Leste. Priorizamos, assim, a população de baixa renda, a faixa etária juvenil e os locais com poucas oportunidades culturais, com ênfase na gratuidade.

 

As linhas de atuação do Instituto Votorantim foram construídas com a intenção de minimizar três tipos de gargalo no acesso à cultura: o gargalo econômico (cujo antídoto é oferecer opções culturais de baixo custo); o geográfico (cujos antídotos são a descentralização da oferta e a garantia de mobilidade); e o gargalo simbólico (talvez o mais difícil de combater, por meio de estratégias de mediação que rompam fronteiras cognitivas e sociais). Eis um diagnóstico macro e acurado, que poderia muito bem estar na base de uma política pública. Não por acaso. Rafael explicou que, “como grande parte de nossos recursos é oriundo de leis de incentivo, temos que fazer um investimento cultural que reforce as políticas públicas”.

O Instituto Votorantim trabalha com várias áreas artísticas: artes cênicas, artes visuais, cinema e vídeo, literatura, música e patrimônio. De acordo com Rafael, foram cerca de 4 milhões investidos em cada uma das três edições do edital[1]. A continuidade do apoio é uma tônica: renovam-se entre 80 e 90% dos patrocínios todo ano. Busca-se abrangência garantindo a diversidade de portes de projetos, a valorização de códigos eruditos e populares, dando espaço para talentos novos e consagrados, escolhendo iniciativas desenvolvidas em cidades grandes e pequenas. O Instituto Votorantim se preocupa também com o acompanhamento e monitoramento das iniciativas nas quais investe. O uso de editais para a seleção dos candidatos proporciona um processo transparente, levado a cabo por uma comissão técnica independente. Em 2007, foi desenvolvido ainda um Manual de Apoio à Elaboração de Projetos de Democratização Cultural, com download gratuito e, há quatro anos, o Instituto mantém o blog Acesso, com artigos e notícias sobre acesso à cultura.

Entre as iniciativas de democratização cultural apoiadas pelo Instituto Votorantim estão a ação educativa do Museu Inhotim, em Brumadinho (MG); as visitas de escolas públicas e particulares ao Museu de Arte Moderna de São Paulo; o projeto Embarque na Leitura, que monta bibliotecas dentro de estações de metrô (a pessoa empresta o livro em uma estação e pode devolver em outra); a Expedição Vagalume, que permite a montagem de bibliotecas em comunidades ribeirinhas da Amazônia; caravanas de cinema em diversos municípios; e o Festival de Música de Guaramiranga, na serra cearense.

Em suma, a fala do representante do Instituto Votorantim impressionou tanto pela coerência geral da política de patrocínios do Grupo como pela clareza e pertinência do conceito norteador de seus investimentos em cultura. No entanto, o público não deixou passar um detalhe importante, que, aliás, talvez não seja um detalhe: o investimento social privado de uma empresa é apenas uma parte de sua atuação na sociedade, que não basta para que a empresa possa ser considerada ética e socialmente responsável. É preciso analisar, de forma ampla, a relação da empresa com todos os seus públicos de relacionamento. E aí a coisa pode ficar complicada para o Grupo Votorantim. Embora essa relatora não disponha de informações suficientes sobre a atuação global da Votorantim em relação a seus fornecedores, colaboradores, consumidores e vizinhos, e apesar de não poder emitir um julgamento a respeito, é importante registrar duas manifestações da plateia presente no evento, que colocaram em questão atitudes da empresa em relação às comunidades próximas a suas unidades.

José, do Centro de Monitoramento Ambiental de Mogi das Cruzes, fez a seguinte pergunta: “Como o Grupo Votorantim olharia para si mesmo enquanto empresa que age sobre a natureza e que tem impacto sobre a transformação da paisagem?”. Ao que o palestrante respondeu: “Temos negócios industriais, de mineração etc. que têm alto impacto e transformam, de fato, as paisagens sociais, culturais e naturais. Tem sido o papel do Instituto Votorantim, dentro do Grupo, qualificar o debate sobre sustentabilidade e aumentar os canais de diálogo com as comunidades e demais partes interessadas. O grupo não nega, tem consciência de seu impacto e quer trabalhar para compensar os estragos inevitáveis e, ao mesmo tempo, gerar novos impactos positivos”. Obviamente, Rafael Gioielli evitou mencionar acidentes ambientais concretos, como aquele envolvendo a Votorantim Metais Zinco S/A, em Três Marias, Minas Gerais, no qual grande volume de resíduos tóxicos foi lançado nas águas do Rio São Francisco.

Mas sua resposta deixou claro que o patrocínio cultural é fundamental para limpar a imagem da empresa junto aos poderes públicos e consumidores. Em outras palavras, a atuação do Instituto Votorantim na área cultural pode funcionar como escudo, desviando a atenção da sociedade de problemas ambientais decorrentes dos impactos das atividades do Grupo.

Keila, do Museu Municipal Casa da Memória de Cajamar, fez uma provocação mais contundente e direta: “Em minha cidade, a Votorantim conseguiu adquirir uma zona considerada pelo município como centro histórico, movida pelo seu interesse de exploração econômica. Como o senhor se posiciona a esse respeito?”. Aqui, a resposta do representante do Grupo foi mais curta e menos convincente que no caso anterior: “Não conheço o caso citado e o Instituto Votorantim não gere os impactos ambientais das empresas, apenas tenta sensibilizar as pessoas dentro e fora do grupo para essas questões”. É estranho que, se o Instituto Votorantim tem o papel de “sensibilizar para essas questões”, ele desconheça as práticas das empresas do Grupo. Também causa certa estranheza que insista em uma identidade institucional separada do Grupo Votorantim. Nada disso invalida a seriedade da política de editais do Instituto Votorantim para a área cultural, mas exige que tenhamos os olhos bem abertos e que cobremos atitudes também em outras esferas.

 

Fundação Roberto Marinho: a opção por museus que criam seu próprio acervo com alta tecnologia

De acordo com o palestrante Hugo Sukman,

 

[...] a Fundação Roberto Marinho nasceu em 1978, baseada na intuição de que os meios de comunicação teriam um papel fundamental na educação e na preservação do patrimônio cultural – uma ideia ainda vaga naquele momento. Campanhas pela preservação do patrimônio foram as primeiras iniciativas da entidade: Tiradentes, Ouro Preto, Fortaleza, alguns prédios históricos do Rio de Janeiro, tudo isso foi restaurado pela Fundação ou com auxílio dela. No entanto, percebeu-se que isso não bastava, que era preciso dar uso e sustentabilidade ao patrimônio restaurado. Foi então que surgiram os espetáculos de luz e som nos edifícios restaurados, pequenas exposições, capacitações para os sacerdotes aprenderem a cuidar do acervo de arte sacra de suas igrejas e assim por diante. Essa atividade de produção cultural cresceu paralelamente à valorização do patrimônio imaterial. O Museu do Descobrimento, de Porto Seguro, por exemplo, foi projeto nosso.

 

Entre as experiências mais marcantes da Fundação Roberto Marinho estão as parcerias na criação do Museu da Língua Portuguesa e do Museu do Futebol, ambas norteadas pela “preocupação em tornar os museus entidades vivas”. Sukman contou que foi um desafio enorme restaurar a Estação da Luz, no centro de São Paulo, e criar um museu ali. A opção pela língua portuguesa teria vindo do fato de, no passado, os imigrantes travarem seu primeiro contato com o nosso idioma na estação de trem. “A ideia era celebrar, ao mesmo tempo, um patrimônio material da cidade de São Paulo (o edifício) e um patrimônio imaterial da sociedade brasileira (a língua), atraindo visitantes para a região central e melhorando a qualidade de vida do bairro”.

O Museu do Futebol, que inicialmente tinha sido pensado para o Maracanã, também acabou sendo direcionado para um prédio histórico paulistano abandonado por obsolescência e, da mesma maneira, também se decidiu focar o patrimônio cultural imaterial e não um acervo preexistente. “Trata-se de uma visão ampla, de contar a história do Brasil através do futebol. Da mesma forma, o Museu da Língua Portuguesa é um museu dos falantes da língua, estabelece uma relação de cumplicidade com o visitante. Essa é uma forma jornalística e artística de fazer museologia, enriquecendo práticas tradicionais com novas tecnologias e estratégias interativas”. O Museu do Futebol recebe, hoje, mil visitantes por dia, “um número impressionante para um museu brasileiro”. O Museu da Língua Portuguesa também tem enorme sucesso de público.

A partir dessas duas experiências, foi se delineando o jeito de fazer museus da Fundação Roberto Marinho. É novo, polêmico, e o Estado de São Paulo foi pioneiro em abraçar esse tipo de instituição, que cria seu próprio acervo e que usa tecnologias de ponta para seduzir o público. O sucesso dos dois museus paulistas levou a Fundação a receber outros convites. Ela está fazendo, por exemplo, três museus no Rio de Janeiro.

 

O Museu de Arte do Rio de Janeiro – MAR abrigará coleções privadas, na Praça Mauá. Seguirá a mesma linha jornalística, promovendo diálogos entre o morro e a cidade, o nacional e o internacional, sua pegada será o diálogo. Logo em frente, ficará o Museu do Amanhã, um museu de ciência, cujo acervo será constituído pelas possibilidades do futuro. Por fim, o Museu da Imagem e do Som, que tem um enorme arquivo e está querendo se modernizar, terá como premissas a utilização de novas tecnologias e a proximidade com o visitante. A entidade será, na verdade, um museu da cidade do Rio de Janeiro. O centro de documentação será digitalizado, mas o MIS será também um centro de produção cultural ligado à memória.

 

Assim como ocorrera após a fala de Rafael Gioielli, do Instituto Votorantim, ao mesmo tempo que a coerência e a fundamentação dos investimentos da Fundação Roberto Marinho não deixou dúvidas na audiência, notavam-se certa agitação e incômodo em algumas pessoas da plateia. Isso veio à tona, no debate, por meio da questão levantada por Marcelo Araújo, da Pinacoteca do Estado de São Paulo:

 

O Museu da Língua e do Futebol abordaram um patrimônio que não havia sido abordado por nenhuma outra instituição. Já o MIS do Rio terá seu acervo aproveitado no novo projeto. No entanto, no caso do Museu do Amanhã e do Museu de Arte do Rio, não é paradoxal constatar a criação de dois novos museus na cidade, enquanto outras instituições centenárias e fundamentais para a história do Brasil não estão merecendo a devida atenção?

 

O representante da Fundação Roberto Marinho deu duas respostas a Marcelo Araújo. A primeira, que ele mesmo chamou de “mais simples”, é que “o MAR e o Museu do Amanhã fazem parte de um projeto de revitalização da área portuária do Rio de Janeiro, são as âncoras desse projeto urbanístico da prefeitura carioca. A ideia é fazer uma ampla reforma do local, construindo também hotéis, restaurantes etc.”. Portanto, haverá, sim, efeitos positivos para a revitalização do patrimônio histórico carioca, decorrentes da inauguração dos dois novos museus. A segunda resposta, que classificou como “complexa”, é que estão envolvidos nesses projetos cientistas ligados a outras instituições culturais históricas. “No projeto do Museu do Amanhã, há antropólogos do Museu Nacional, ecólogos do Jardim Botânico, astrônomos... Várias instituições científicas tradicionais foram convidadas e valorizadas em sua participação na criação das novas instituições. A expectativa é que haja parceria entre todas essas instituições”. No que concerne ao Museu de Arte do Rio de Janeiro, “a especificidade é que as coleções particulares cariocas, que estão entre as principais do país, e que costumavam ficar fechadas e inacessíveis, passarão a ser disponibilizadas a públicos mais amplos”. Até aí os argumentos faziam sentido. Mas a frase final de Hugo Sukman foi complicada: “Investimento em museu é como amor de mãe, nunca acaba, mesmo que se divida”.

Ora, não é verdade que “investimento em museu nunca acaba, mesmo que se divida”. Certamente, recursos que vão para uma iniciativa faltarão em outra. E, quando os recursos para a área da cultura são escassos, a prioridade nos investimentos precisa, sim, ser discutida. Obviamente, os investimentos privados podem ir para onde o investidor quiser. Mas os investimentos públicos, que acabam representando grande parcela do orçamento desse tipo de museu, são de interesse coletivo e necessitam de aplicação parcimoniosa. No caso do Museu de Arte do Rio de Janeiro, por exemplo, vários profissionais do setor museológico estão incomodados com o fato de recursos públicos pagarem a construção de um espaço expositivo que dará destaque a coleções particulares que não serão doadas ao museu. Ao contrário, continuarão pertencendo aos colecionadores, provavelmente com maior valor de mercado.

Um segundo ponto controverso que não surgiu no debate, mas foi comentado nos corredores do evento, é a demonização, mesmo que involuntária, do museu tradicional, aquele que possui acervos, ensino, pesquisa e publicações. Sem dúvida, existem museus antigos sem estratégias adequadas de mediação com o público, com recursos expositivos ultrapassados, que não propõem novas interpretações de seu acervo. Porém, ao se louvarem os novos museus – na verdade, centros culturais – “vivos”, “sedutores”, sem acervo e high tec, normalmente ocorre a desvalorização de todo museu tradicional e abre-se mão de reformulá-lo, afastando mais ainda seu público.

Cabe chamar a atenção, por fim, para algo que apareceu rapidamente na fala do palestrante e que teria merecido maior aprofundamento ou problematização. Hugo Sukman havia falado, no início da mesa, do “enorme desafio” que a restauração da Estação da Luz representou para a Fundação Roberto Marinho. Durante o debate, justificou a construção do Museu de Arte do Rio de Janeiro e do Museu do Amanhã, como estratégias de “revitalização da área portuária do Rio de Janeiro”. É bem verdade que os centros antigos de muitas cidades – entre elas São Paulo e Rio de Janeiro – encontram-se em situação de relativo abandono. As cidades americanas são especialmente suscetíveis a esse processo de degradação, pois, originalmente, seus centros foram reservados apenas a atividades econômicas – ao contrário do Velho Continente, no qual, tradicionalmente, residências misturam-se ao comércio e aos serviços nas áreas centrais. No caso dos centros paulista e carioca, ocorreu, nas últimas décadas, a migração dos serviços profissionais e do comércio formal para regiões mais novas, centros empresariais bem equipados e shopping centers, paralelamente à proliferação de vendedores ambulantes em busca de sobrevivência, à ocupação dos edifícios esvaziados por cidadãos com problemas de moradia e ao afastamento do público de camadas socioeconômicas mais elevadas, em virtude da dificuldade de estacionamento e da atmosfera de insegurança.

Porém, a expressão “revitalização” deveria ser utilizada entre aspas, pois pode sugerir que as áreas centrais estejam completamente mortas, como se as pessoas e práticas que ali existem não merecessem ser levadas em consideração. Por isso mesmo, alguns autores preferem falar em requalificação urbana, alertando para a importância de levar em conta tanto a história do local como seus diversos usuários, a fim de minimizar o teor excludente e autoritário de quaisquer novas iniciativas. É preciso, também, evitar que projetos com esse teor – como talvez seja o caso da região da “Nova Luz”, em que ficam o Museu da Língua Portuguesa, a Sala São Paulo e a Pinacoteca – encubram, principalmente, interesses do setor imobiliário, ávido pela valorização de novas áreas. Como argumentam os urbanistas Cláudia Loureiro e Luis Amorim:

 

Uma política que tenha impactos sobre a salvaguarda do patrimônio consideraria [...] uma diversidade de classes sociais e [teria] no espaço público o meio para maximização de interfaces entre moradores e usuários. Para isso, a municipalidade exerceria o seu papel de gestor dos espaços públicos para permitir o uso indiscriminado de usuários, atendendo ao que estabelece a lei de acessibilidade universal. O foco de novos empreendimentos, portanto, seria na contribuição para a valorização do ambiente urbano e não na estratégia de agregação de valor aos empreendimentos imobiliários pela apropriação de aspectos imagéticos a ele relacionados. Esta premissa estaria calcada na incorporação de atividades pré-existentes e na inclusão de usos adequados ao cotidiano de moradores atuais, como forma de inclusão no processo de requalificação[2].

 

Vale lembrar a contribuição pioneira de Jane Jacobs a essa discussão: a autora norte-americana ousou se posicionar contra os grandes projetos do “urbanismo moderno ortodoxo”, segundo o qual a renovação urbana das áreas centrais das cidades se faz a partir de uma tábula rasa de setores urbanos consolidados, substituídos por megaprojetos com arquitetura monumental, que procuram apagar a densidade e a complexidade da metrópole. Jacobs, ao contrário, prega a necessidade de se manter a diversidade urbana no centro, por meio de funções e usos combinados, da criação de percursos, da manutenção de edifícios variados e de diferentes idades, da subvenção a moradias, entre outras medidas integradas[3].

Em outras palavras, para efetivamente “requalificar” os centros urbanos, é preciso, simultaneamente, promover a melhoria de acesso e circulação na região, aumentar a geração de trabalho e renda inclusive para os ocupantes antigos do local, deixar em bom estado os espaços públicos, garantir a circulação de moradores fora dos horários comerciais, restaurar o conjunto do patrimônio histórico (não apenas os prédios imponentes) e criar condições de segurança que viabilizem todos os itens anteriores[4].

Portanto, embora a cultura possa ser – e venha sendo – utilizada como uma das dimensões que permitem transformar e melhorar a situação das áreas centrais, os equipamentos culturais não conseguem, sozinhos, gerar impactos sociais positivos, democráticos e duradouros. Podem, inclusive, contribuir para que tais impactos não sejam atingidos. Não se pretende, nesse relato, discordar da importância da instalação de museus e salas de concerto nas regiões centrais, mas questionar a melhor maneira de fazê-lo, para evitar que se propaguem entre nós processos de “gentrificação” nos centros antigos (substituição de uma população de baixa renda por frequentadores das camadas médias e altas, por meio de despejos, ação policial e expulsão sumária). Museus de arte e outros espaços culturais, paradoxalmente, podem acabar tendo papel determinante nesses processos[5].



[1] O próximo edital do Instituto Votorantim será aberto no começo de agosto de 2010. Haverá uma categoria especial para jovens portadores de deficiência. O regulamento está em: http://www.blogacesso.com.br.

[2] LOUREIRO, Claudia; AMORIM, Luis. Vestindo a pele do cordeiro: requalificação versus gentrificação no Recife. Disponível em: www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/artigo1.pdf. Acesso em: 13 jan. 2010.

[3] Uma resenha do livro Death and life of great American cities (1961), de Jane Jacobs, pode ser lida em português em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.001/3259.

[4] Para saber mais sobre processos recentes de requalificação urbana no Brasil, consultar VARGAS, Heliana Comin; CASTILHO, Ana Luisa Howard de. Intervenções em centros urbanos: objetivos, estratégias e resultados. Barueri: Manole, 2006.

[5] Exemplos eloquentes da relação entre arte, cultura e “gentrificação” na cidade de Nova Iorque estão no artigo “The fine art of gentrification”, de Rosalyn Deutsche, disponível em: http://www.abcnorio.org/about/history/fine_art.html.