Um conto de despedida

Relato crítico síntese do 2º Encontro Paulista de Museus: “Ser Diferente, Fazer Diferença” - Carlos Eduardo Riccioppo

Carlos Eduardo Riccioppo

2021

 

Relato crítico síntese do 2º Encontro Paulista de Museus: “Ser Diferente, Fazer Diferença”

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus Encontro Paulista de Museus

 

Em um caso de descontinuidade no que concerne às políticas públicas relativas à esfera da cultura, como o brasileiro, é providencial um olhar retroativo acerca das discussões que protagonizavam os interesses dos museus há pouco mais de dez anos.

Não que o ano de 2010[1] possa se oferecer a uma visada histórica como qualquer tipo de marco no cenário cultural do país. Antes, o que ocorria naquele momento era que ali muitos dos termos, chavões e lugares-comuns que circunscrevem as discussões acerca da sobrevida dos museus até a atualidade pareciam começar a formar uma espécie de léxico próprio, ou, então, pareciam enunciar de modo coeso, e portanto capaz de se disponibilizar às repetições do uso corrente, da fala comum, uma série de novos ou contemporâneos topoi, que, se então tratavam de serem elaborados livremente, hoje devem reclamar uma crítica severa acerca dos pressupostos ideológicos de suas promessas e daquelas narrativas tomadas por certas então, mas que foram de lá pra cá revelando-se cada vez mais em sua faceta de capa retórica, genérica, a discursos que não cessam de ser repisados e de servirem de tom prefacial, epidítico, à descrição “de um tal estado de coisas”, ao qual somente caberia uma ação imediata e certeira – antirreflexiva, portanto –, capaz de reverter o problema posto.

Vale, nesse sentido, atentar de saída para o fato de que termos como “acessibilidade”, “participação” ou “inclusão”, que foram se tornando, com sorte, cada vez mais presentes na elaboração dos planos museológicos daquele momento do século XXI até a atualidade, ainda não compareciam de modo decisivo nas falas que formavam os argumentos centrais da Secretaria de Estado da Cultura (SEC) e dos diretores e gestores que abordavam as experiências particulares de suas instituições[2]. Falava-se naquela época, com mais frequência, em “planos de comunicação”, na “dissolução da desconfiança da população com relação aos museus”, em uma necessária “injeção de vivacidade” às atividades dos museus, e, sobretudo, de “revitalização” – termos que, naturalmente, tentativos, encontravam-se em pleno processo de estabilização dentro de uma linguagem que eventualmente pudesse se oferecer para determinar a “missão” dos museus paulistas mais adiante, em seu processo de redefinição.

É claro que ali já apareciam aquelas questões que, de resto, seguirão cruciais para se pensar a figura do museu dentro da situação contemporânea: o quanto o museu se vê cada vez mais assombrado pela ameaça de se converter em um lugar “morto” da cultura; o problema do descolamento entre essas instituições e seu entorno; a dificuldade de levar o público ao museu; a necessidade de repensar a responsabilidade com relação a seu acervo, àquilo que ele dispõe e apresenta.

Quem sabe o aparecimento e a elaboração de tais questões teria, naquele momento, o poder de concatenar a experiência museal brasileira recente a todo aquele debate acerca da vocação e importância públicas que a história formulou acerca da figura do museu, desde as calorosas reivindicações do século XVIII francês, passando pelos escritos de Paul Valéry, Proust, Adorno, e, então, pelo redimensionamento da instituição moderna na experiência norte-americana, e assim por diante. Um debate que só poderia ser retraçado na confluência entre os aspectos relativos à singularidade (de tipo, de local, de tradição) de cada instituição e – e este talvez seja o ponto crítico aqui levantado – aqueles aspectos ligados à complexidade teórica envolvida na consideração da importância do museu para a experiência social não imediata, mas enquanto instância a ser perpetuamente submetida à reflexão, porquanto definidora de um sentido de público que a muito custo a experiência moderna brasileira descobre.

No entanto, tais preocupações históricas, aquelas que fomentaram a própria definição de uma dimensão pública à experiência da memória, da tradição e dos processos de institucionalização modernos, tendo a definição da figura do museu na dianteira de seu cunho social, acabavam por se converter nos álibis mais ocasionais, para não dizer mesmo convenientes, à demarcação de uma política renovadamente desinteressada em tomar para si o problema dos museus, embora despedindo-se dele em tom celebratório.

Era dessa maneira que a SEC apregoava um processo de municipalização dos museus até então sob sua tutela, como um processo capaz de reverter a marca de amadorismo – fatalmente sentido com maior intensidade sobretudo no interior do estado –, em direção a uma “profissionalização” derradeira de suas atividades.

Promessa de autonomia, por certo, cujo enraizamento começava na impressão compartilhada de que havia uma relação de disjunção entre cada museu e a cidade em que se encontrava, ao que se faria necessária uma reformulação conceitual de suas esferas de curadoria, em direção a uma efetiva representatividade junto às populações locais, cujos frutos deveriam quem sabe incluir uma propulsão absolutamente atraente ao turismo cultural, capaz, inclusive, de gerar e movimentar recursos próprios a cada pequeno centro urbano paulista. E promessa cuja instauração dependeria, a seguir – mas decerto em nome daquela ainda atraente autonomia de atuação –, da capacitação das equipes para a busca de parcerias privadas por si mesmas, para além da intervenção do estado. O que, por certo, dependeria de um exaustivo mas ainda assim recompensador esforço de estabelecimento de um plano certeiro conjuntamente à imprensa, aos clubes de serviços e àqueles setores mais disponíveis da população ao cultivo do velho porquanto mais inocentes – as crianças à frente, com todo o ideário promissor que reter seu interesse possa trazer à baila.

Outrossim, haveriam de ter essas instituições em mente que o avivamento de suas coleções teria ainda muito a aprender com as atividades propostas com frequência nos àquele momento ainda audaciosamente auspiciosos centros culturais que se espalhavam pelo país – apresentações, talvez performances, shows, happenings, ou outras atividades, preferencialmente interativas de toda sorte, que, então deslocadas daqueles centros e apreendidas pelo envelhecido museu, decerto seriam capazes de atrair a população para o seu saguão, e, como mágica, retê-la ali. Afinal, a sedução de uma audiência cada vez mais numerosa e ávida pelo entretenimento de sábado seria por si só capaz de arregalar os olhos das captações de recursos[3] necessárias a uma autodeterminação dos museus.

Mas, então, a singularidade dos acervos de cada uma daquelas instituições que se viam diante da promessa de autonomização com relação ao estado deveria ser levada em consideração no momento mesmo de definição de seus planos de atuação. Ora, era, enfim, em nome mesmo de tal singularidade que o estado advogava sua incapacidade de prover um plano geral, capaz de se aplicar a todas as suas distintas responsabilidades[4]. A descentralização ali prevista vinha, agora, em nome daquela terminal diversidade, à qual jamais se poderia revidar, mesmo ao preço de um melancólico abandono à própria sorte.


[1] Nos dias 22,23 e 24 de junho de 2010, foi realizado o 2º Encontro Paulista de Museus. Sediado no Memorial da América Latina, em São Paulo, o Encontro reuniu, nesse ano, 28 palestrantes, sob o tema “Ser diferente: fazer diferença”. Nesta edição, pela primeira vez, prefeitos e secretários municipais de Cultura tiveram uma programação paralela, para discutir a importância de políticas públicas para área da cultura, parcerias em investimentos e leis de incentivo. Durante o Encontro, foram mostradas as mudanças e o crescimento da atividade museológica em São Paulo, a partir das medidas adotadas no Encontro do ano anterior, com a implantação dos polos regionais do Sisem-SP.

[2] Note-se que tais termos estavam, ainda, em processo de gestação, ou, ao menos, de absorção pelo uso corrente, e apareceriam com força no estado de São Paulo exatamente naquele momento – é claro, ao passo que os museus iam de vez definindo seus planos de ação.

[3] Captação que, à época, tinha como horizonte certeiro a Lei Rouanet, mas visando também todas as então tomadas como perenes e eficazes instâncias de promoção das atividades culturais do país que extrapolassem o compromisso público com as questões ligadas ao patrimônio e à cultura.

[4] N.E: Para mais detalhes sobre a política museal desenvolvida pelo Sisem-SP recomendamos a leitura do relato “Sisem-SP, o caminho se faz ao andar”, escrito por Paulo Nascimento e presente nesta publicação.