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Um passado tão próximo e tão distante

Vinicius Spricigo Relato crítico síntese do 3ºEncontro Paulista de Museu: “Articulando territórios”

Vinicius Spricigo - 2021

Relato crítico síntese do 3ºEncontro Paulista de Museu: “Articulando territórios”

Este Relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus Encontro Paulista de Museus

Assistir retrospectivamente aos debates do 3º Encontro Paulista de Museus, realizado em 2011 no Memorial da América Latina, pode ser uma forma de refletir criticamente sobre as políticas públicas e o desenvolvimento do setor da cultura na última década do século XX e a primeira do novo milênio. O período coincide com os governos do Partido Social Democrata Brasileiro no Estado de São Paulo, iniciado em 1995 com Mário Covas, com breves intervalos quando os titulares eleitos Geraldo Alckmin e José Serra renunciaram ao cargo de governador para se candidatar à presidência em 2006 e 2010, respectivamente. No âmbito da cultura os governos tucanos foram responsáveis pela adoção de um modelo de gestão que buscava articular os setores público e privado. Na articulação desses territórios foi ampliada a participação da sociedade civil no setor e reduzida aquela do poder público. Vista pelos críticos do neoliberalismo como uma forma de privatização da cultura por meio da gestão privada de instituições públicas, esse modelo de gestão é apresentado no EPM como um instrumento dinâmico de modernização do setor cultural e da gestão dos museus paulistas.

Logo na fala de abertura do encontro, cujo objetivo seria colaborar com esse desenvolvimento das instituições museológicas locais, é enfatizado o duplo papel dos museus: 1. “Como equipamento cultural que uma vez bem estruturado e gerido é capaz de contribuir para a qualificação e vitalidade de uma região”; 2. “Como instituição responsável pela preservação de um patrimônio que precisa ser conhecido e refletido para ser valorizado”. Nesse sentido, a visão positiva dos organizadores do encontro parece coincidir com a agenda política dos governos estaduais cuja prioridade estava voltada ao “desenvolvimento regional pela via do patrimônio cultural”. Dessa forma, o EPM buscou ouvir as demandas locais por meio de apresentação de “estudos de caso” e da “criação de fóruns específicos para discussões prioritárias para cada rede de museus”. Não por acaso, a abertura reuniu representantes do governos federal, estadual e municipal, como o Secretário de Estado da Cultura do Estado de São Paulo, Andrea Matarazzo, o Diretor do Departamento de Processos Museais, Mário Chagas, representando o Instituto Brasileiro de Museus e o Ministério da Cultura, o Secretário de Cultura de São Paulo, Carlos Augusto Calil, representando o prefeito Gilberto Kassab, e Claudinéli Moreira Ramos, Coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico (UPPM), da Secretaria de Estado da Prefeitura de São Paulo. Nas falas celebratórias foram destacados: a profissionalização e o desenvolvimento do setor, o protagonismo das instituições estaduais no cenário regional e nacional, e até mesmo as aspirações internacionais do complexo cultural existente no Parque do Ibirapuera, que na ocasião inaugurava o Pavilhão das Culturas Brasileiras, abrigando a coleção da Missão das Pesquisas Folclóricas e do antigo Museu do Folclore e recebia o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo na nova sede no recém-reformado e adaptado “prédio do Detran”.

A presença de um representante do governo federal ajudou a fazer um contraponto importante. Apesar da continuidade do governo petista de Luiz Inácio Lula da Silva com as políticas econômicas neoliberais do seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, no âmbito da cultura entre os anos 2002 e 2010 assistiu-se ao fortalecimento do papel do Estado para além das políticas de incentivo fiscal[1]. Um exemplo disso na área dos museus foi a criação do Ibram, em 2009, auxiliando na formulação de legislação específica e oferecendo infraestrutura para o setor. Representando esse Instituto, Chagas destacou “a potência do evento e a capacidade de organização do setor através do número expressivo de pessoas presentes no público”. Seguindo uma linha de raciocínio que pensa a cultura para além das instituições, ele questionou: “O que são os museus? Apenas uma palavra, mas também uma instituição e uma categoria de pensamento, um processo e fenômeno social, para além de instituições, processos não institucionalizados”. Assim entendidos, os territórios culturais não são divisas, mas pontos de intersecção, “rizomas”, por onde “passam linhas de força, de resistência, e portanto capazes de produzir articulações entre diferentes territórios, pessoas e culturas. […]”. Nessa afirmação forte os museus têm uma dimensão “política e poética”.

Talvez por afirmações como essa vindas do campo da cultura esse tenha sido um dos ministérios extintos em 2019. A ruptura abrupta com as políticas culturais para o setor e as crises sanitária e econômica decorrentes da atual pandemia de Covid-19 parecem ter encerrado o período de desenvolvimento sobre o qual o EPM refletia e no qual ao mesmo tempo se sustentava. Não só a redução de recursos e equipes, mas sobretudo o fechamento das portas para o público, colocam desafios aos museus quase impossíveis de terem sido previstos em 2011. Sem o apoio do poder público e com a retração da participação do setor privado, os museus se encontram justamente na encruzilhada estabelecida pelas divisões desses dois territórios. Talvez um olhar retrospectivo aos debates travados no 3º EPM nos ajude a entender melhor como chegamos aqui e quais caminhos podemos tomar.

 

Integração cultural no Estado de São Paulo

Remanescente dentre os representantes políticos da cerimônia de abertura, Matarazzo, juntamente com Ramos, agora assumindo o papel de mediadora, apresentou ao público na primeira parte do encontro o organograma da Secretaria de Estado de Cultura, destacando as ações da pasta no incentivo à capacitação do agentes de cultura do interior do estado, na realização de projetos/eventos fora da capital ou itinerâncias pelo interior, bem como recebendo na cidade de São Paulo iniciativas de outros municípios. Para alcançar esse objetivo, destacou o papel fundamental na reunião dos museus por intermédio do Sistema Estadual de Museus (Sisem-SP), instância ligada à UPPM que reúne e articula os museus do estado, tanto públicos quanto privados.

Na mesma linha, o dia seguinte, dedicado ao compartilhamento de proposições, experiências e ideias por parte dos agentes culturais participantes do EPM, foi aberto com a fala de Renata Motta, diretora do Sisem-SP. Criado por decreto de 1986, sendo o primeiro do Brasil, o sistema buscou, desde 2008, se reposicionar diante do desenvolvimento do setor de museus no Brasil e no exterior, “visando a ampliação da participação da sociedade civil e de profissionais da área museológica” por meio da eleição de dois membros do conselho de orientação do Sisem-SP. Nesse espírito de renovação e democratização, um marco seria a nova legislação, promulgada naquele ano de 2011. Além da participação social no conselho, um diagnóstico dos museus do estado foi adotado para a orientação e estruturação das ações do sistema, que atua em larga escala (645 municípios)[2].

Diferentemente de Chagas, a apresentação burocrática de Motta revela o entendimento do museu conforme os desígnios do Conselho Internacional de Museus (Icom), “como instituição permanente sem fins lucrativos aberta ao público com a premissa de preservação, comunicação e pesquisa”. Na sua fala, ela aponta que outros formatos parainstitucionais e iniciativas, embora pertinentes, ficam fora do Sisem-SP. Talvez justamente por essa marginalidade com relação ao sistema as iniciativas alternativas possam indicar no futuro caminhos possíveis de sustentabilidade para os museu e para a promoção de políticas públicas mais independentes do setor privado e dos modelos de gestão promovidos nas últimas décadas.

 

Museus e identidade cultural

Historicamente no Brasil nunca demos muita atenção às bordas e aos fenômenos e processos sociais como constituintes das instituições. A dimensão “poética e política” dos museus apontada por Chagas não foi o foco do EPM, e, mais uma vez, o destaque foi dado aos modelos internacionais. Para o encerramento do encontro, uma conferência foi proferida por Ignácio Santos Cidrás, diretor de Ação Cultural da Cidade da Cultura de Galícia, apresentando o projeto da Cidade da Cultural da Galícia[3], uma nova infraestrutura cultural pública “voltada ao conhecimento e à criatividade contemporânea”.

Projetado por Peter Eisenman (arquiteto escolhido mediante concurso internacional) como espaço dedicado à preservação da memória da comunidade, mas também para a experimentação, o estudo e a investigação, o eixo central do projeto é a identidade cultural da Galícia, ligada historicamente ao descobrimento do sarcófago do Apóstolo Santiago (destino turístico e de peregrinação). Assim, o projeto arquitetônico é relacionado com o Caminho de Santiago (cinco rotas que atravessam a cidade em direção à catedral), assumindo a forma de um símbolo local, a concha de vieira. Apesar da grandiloquência e do dispêndio de recursos, o objetivo do projeto, segundo Cidrás, é fortalecer a identidade cultural, convertendo-se em “um núcleo de reflexão e de renovação discursivas sobre as identidades da região para o século XXI”. Identidade, para ele, não é entendida como algo hermético, mas um processo de transformação através do tempo. O objetivo cultural do projeto está ligado politicamente à autonomia da Galícia, adquirida em 1981, com o estabelecimento de uma língua própria, o Galego, e a exclusividade do governo regional na formulação de políticas culturais e na gestão dos museus. Certamente os museus locais são o repositório dos símbolos da identidade galega, conforme ressalta o diretor, mas o projeto busca também uma interação com a comunidade por meio de um perfil moderno e contemporâneo, com ênfase na participação cidadã. Assim, surgem novos espaços culturais, como o CGAC – Centro Galego de Arte Contemporânea (Santiago) ou o Marco – Museu de Arte Contemporânea (Vigo). Ao final de sua apresentação, Cidrás afirma que mudanças de governo levaram à reorientação política dos usos dos edifícios, e isso fez com que o projeto fosse incompreendido pelos cidadão galegos. Foi necessário, assim, elaborar novo discurso para mudar uma percepção pública negativa com relação ao projeto, dando prioridade para aquelas manifestações artísticas sustentadas na identidade galega, “desde a correlação de que o próprio é um fator-chave para a diferenciação e visibilidade da marca Galícia no mundo e, consequentemente, um ativo para o desenvolvimento da região”.

Em comparação, fica evidente que a visão administrativa e gestora apresentada pelos políticos e agentes culturais paulistas deixa de lado justamente os aspectos culturais centrais para o projeto galego. Embora os objetivos sejam semelhantes, a saber, o desenvolvimento regional por meio do patrimônio cultural, em vez de se voltar aos processos sociais e à discussão sobre a identidade cultural na atualidade, a administração dos governos tucanos negligencia as dimensões “poética e política” da cultura, restringindo-se assim à gestão de aparelhos culturais e museus. Em vez de um modelo internacional, poderiam ter sido trazidos à época para a discussão programas do governo federal como o Cultura Viva e os pontos de cultura, articuladores de territórios, comunidades e suas identidades culturais sem a necessidade de arquiteturas na forma de símbolos locais e assinadas por celebridades, décadas de execução e gastos enormes de recursos financeiros. Afinal, a cultura entendida como uma rede formada por pontos de intersecção, talvez seja uma imagem muito mais interessante para pensar a articulação de territórios do que uma concha de vieira que se fecha em si mesma.



[1] N.E: A fim de adensar a discussão sobre as políticas culturais no Brasil, recomendamos a leitura do texto “Que políticas culturais?”, de Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira. Disponível em: http://www.forumpermanente.org/revista/edicao-0/textos/que-politicas-culturais.

[2] Contraditoriamente, de acordo com o estudo, a precariedade do sistema não corresponde à visão positiva sobre a gestão público/privado. O mapeamento foi feito por meio de visitas aos museus, preenchimento de ficha cadastral, registro fotográfico e coleta de dados político-administrativos, sociodemográficos, financeiros e históricos. Somente 30% dos municípios do estado possuem instituições museológicas, sendo a distribuição concentrada no leste e na capital. Dois terços dos museus são públicos via administração direta e indireta, e a distribuição de funcionários por instituição mostra carência de recursos humanos (maior parte das instituições com menos de dez funcionários) e a necessidade de investimento na formação de profissionais. Essas instituições enfrentam ainda dificuldade de acesso e disponibilização do acervo por falta de sistematização; grande parte dos museus não possui reserva técnica e espaços para exposição de longa duração, sendo a falta de espaço um impedimento também para o recebimento de itinerâncias de exposições temporárias A acessibilidade é outro desafio, sobretudo na adaptação de edifícios tombados nos quais está instalada grande parte desses museus. Além disso, mais da metade dos museus do estado recebia em 2011 até mil visitantes mês, e não tinham presença digital por meio da internet para divulgação e comunicação com o público.

[3] Situado em Santiago de Compostela, capital da Galícia, cuja cidade histórica foi declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco, em 1985, o projeto com arquivo, biblioteca, museu, centro de música e artes cênicas, centro de arte internacional, e um edifício central de serviços, iniciou em 2001. A construção da cidade da cultura durava até aquela data uma década.