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Novos palimpsestos para museus em parceria com a sociedade civil atual

Marcia Ferran - 2021 Relato crítico síntese do 4º Encontro Paulista de Museus: “Novas Fronteiras da Gestão de Museus”

Marcia Ferran - 2021

Relato crítico síntese do 4º Encontro Paulista de Museus: “Novas Fronteiras da Gestão de Museus”

Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus Encontro Paulista de Museus

Acessando a bagagem produzida pelo Fórum Permanente, assisti e li os arquivos referentes a esse 4º EPM voltado à Novas Fronteiras da Gestão de Museus sob os efeitos dos acontecimentos de 2020 e 2021. Com esse mindset emocional, me causaram especial interesse o vídeo apresentado por Jorge Melguizo na palestra “4 museos y medio en el Museu Medellín”[1] e a mesa Parcerias dos Museus com a Sociedade Civil.

Na sua fala, Melguizo explicou as fases históricas de Medellín, a segunda mais populosa cidade da Colômbia, a partir de uma perspectiva urbanística que me é muito cara. Melguizo usa a ideia de Palimpsesto para falar das camadas diferentes que essa cidade, tão estigmatizada pela violência e pelas drogas, passou ao longo da sua história e as ressignificações que adquiriu por inovar em gestão e cogestão com política urbana e cultural. Há indícios de que a técnica usada nos palimpsestos originais atendia a uma falta de papel na época. Daí a necessidade de reutilizar essa mídia, esse suporte, assim a solução inventada foi remover e escrever/inscrever por cima camadas novas de texto. No novo texto inscrito viam-se as marcas em alto-relevo das inscrições anteriores, pois a técnica incluía raspagem produzindo sulcos na superfície.

Causa nostalgia rebobinar a fita e lembrar que em 2012 uma fase de abertura em direção à viabilização da ideia de cogestão em diferentes museus estava efetivamente dando seus passos e ganhando centralidade conforme mostrou a Mesa de Discussão 1 – Parcerias dos Museus com a Sociedade Civil. De lá para cá as perdas institucionais[2] se abateram de um modo que já era alertado pela relatora Ana Luisa Lima, a ponto de o Estado se tornar uma alteridade estranha e se não antagônica à vontade coletivo-civil.

Outra baliza interessante sobre museus de arte e sua proatividade ou resistência a levar a cabo uma perene relação com a sociedade civil não conhecedora dos códigos de arte foi abordada por Guilherme Bueno, então à frente do escultórico Museu de Arte Contemporânea de Niterói. Dentre três fontes norteadoras do MAC, Bueno citou: “reflexões sobre pobreza, cidadania e desenvolvimento urbano de Milton Santos”[3]. Na mesma mesa, Maria Fernanda apresentou o Museu do Homem do Nordeste, alertando para a “estereotipização” que incide sobre o nordestino e afirmando que desfazer esses “a prioris” redutores era o principal desafio do museu. Diante desse desafio, a gestora apresentou uma iniciativa de mostras itinerantes do acervo e decididas em diálogo com grupos sociais locais, gerando assim diferentes recortes em cada momento. No bloco de perguntas da plateia para os palestrantes, foi feita a pergunta acerca do que permanece do conceito de museu após os resultados das itinerâncias do Projeto Múltiplo. A resposta de Maria Fernanda foi a seguinte: “Prevalece o sujeito acima de tudo. Temos que pensar primeiro nos homens e depois nos objetos. Todas as atividades do Museu do Nordeste têm esse foco”.

A partir do Icom em 2019 uma enquete participativa e colaborativa foi lançada para atualizar e problematizar os potenciais e missões dos museus. Recorto dessa descrição do Icom[4] a ideia de “diálogo crítico sobre passados e futuros” para tecer analogia com a função do palimpsesto. No caso brasileiro, as parcerias com a sociedade civil seguem como experimentações, ainda quase heroicas, e os exemplos de escuta e curadoria compartilhada (caso do Projeto Múltiplo do Museu do Homem do Nordeste) inscrevem no tecido social e num espaço geográfico, tal como o palimpsesto, sulcos e rastros, sobre os quais falta oxigenação contínua[5]. Em 2019 o EPM reforçou o papel desafiante que museus[6] podem desempenhar para a equidade mundial e o bem-estar citados pelo Icom, em especial as tarefas urgentes no que tange especificamente a parcerias com a sociedade civil. Pensar os rastros das experiências-piloto e o risco saudável como parte de um novo “acervo”: um acervo não de objetos, mas de camadas sensíveis, subjetivas, superpostas, olhar esses rastros como potentes documentos contendo imagens preexistentes, dar a ver e ouvir narrativas em fragmentos, mesmo que isso seja temporário, o possível num dado momento. Ousar expandir os limites do museu para extramuros, aceitando o documento como palimpsesto em que os objetos preserváveis não ilustram necessariamente uma linha de tempo contínua, e isso não significa fracasso, e sim uma potência singular para repoetizar o próprio presente.

Assim, como destaque das missões delineadas nesse EPM, destaco a pergunta de Melguizo sobre “para que serve um museu numa sociedade em conflito?” como ponto a retornar e aperfeiçoar. Me parece importante voltar àquilo que apareceu como resposta[7] sobre a missão do projeto Múltiplo do Museu do Homem do Nordeste e que “o que importa aqui é antes de tudo o sujeito”, calcada na citação de Boaventura Santos: “O Objeto é continuação do sujeito por outros meios”. Maria Fernanda se referia à dinâmica que cambiava de acordo com uma decisão de “curadoria” cooperativa com cada grupo social atendido pelo projeto. Faço um paralelo entre esses grupos sociais e a noção de Milton Santos sobre a potência criativa e fabuladora dos homens lentos nos espações opacos, que são em geral as camadas mais pobres das populações instaladas em zonas urbanas periféricas à margem dos investimentos urbanos. Importa colocar o “Homem lento” tal como proposto por Milton Santos na centralidade da missão dos museus, e para isso ousar projetos experimentais com a sociedade civil. Não à toa a sustentabilidade junto à presença da diversidade de públicos foi tema em 2020 do EPM.

Fazendo um paralelo com o cinema brasileiro de ficção recente, lembremos o filme Bacurau e a pergunta de Melguizo sobre a utilidade de um museu numa sociedade em conflito. No museu das armas daquela cidade imaginária as armas-relíquias do tão estereotipado homem nordestino fazem a possibilidade da insurgência dos moradores daquele povoado que havia ele mesmo feito sua curadoria, e, após o desprezo dos governantes e dos visitantes forasteiros, serão, como num palimpsesto[8], recobertas tanto pela poeira quanto pelas marcas de sangue mais frescas e continuarão a contar, para quem se dispuser a ouvir, a cultura local com seus sujeitos e tempos singulares emaranhados.



[1] Disponível em: http://www.forumpermanente.org/event_pres/encontros/encontros-paulista-de-museus/iv-encontro-paulista-de-museus/videos/conferencia-201cmuseus-e-cultura-cidada201d-jorge-melguizo.

[2] Havia museus necessitando de inventários e mapeamentos de seus acervos; capacitação profissional dos funcionários e dirigentes, elementos que dizem respeito à sustentabilidade e que em termos de parâmetros franceses de política cultural significam o “grau zero” ou o mais básico para se poder aprimorar as funções de qualquer instituição além da continuidade.

[3] Relato de Ilana Goldstein.

[4] A partir do site do Icom, cito as “bordas” do que estava sendo gestado um pouco antes da Covid-19: “Os museus são espaços democratizantes, inclusivos e polifônicos que atuam para o diálogo crítico sobre os passados e os futuros. Reconhecendo e abordando os conflitos e desafios do presente mantêm artefatos e espécimes de forma confiável para a sociedade, salvaguardam memórias diversas para as gerações futuras e garantem a igualdade de direitos e a igualdade de acesso ao patrimônio para todos os povos [...] São participativos e transparentes, e trabalham em parceria ativa com e para as diversas comunidades [...] com o propósito de contribuir para a dignidade humana e a justiça social, a equidade mundial e o bem-estar planetário”.

[5] O sistema poderia incitar trocas, capacitação, monitoração qualitativa, entrevistas com os grupos sociais focalizados, ousar financiamentos colaborativos por projeto e por localidade.

[6] Disponível em: http://www.icom.org.br/wp-content/uploads/2021/01/Questionario-do-ICOM-Brasil-sobre-a-nova-definicao_revisao.pptx.pdf.

[7] Citado por Maria Fernanda em sua apresentação sobre o Projeto Múltiplos do Museu do Homem do Nordeste.

[8] Com o impacto de 2021, não pude deixar de entrelaçar esse fio- da- meada com o trabalho de Doris Salcedo em 2017, apoiado pelo Museu Reyna Sofia, chamado Palimpsesto. Nele a artista colombiana utilizou o espaço vertical do Palácio de Cristal, em Madrid, com uma abordagem horizontal, inscrevendo os nomes de vítimas mortas no mar, no chão do espaço expositivo por meio de uma complexa tecnologia. Vídeo disponível no YouTube  em: https://www.youtube.com/watch?v=tt1ieb7v5DY.