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Uma cobertura crítica de longo alcance: o Fórum Permanente e o Encontro Paulista de Museus

Martin Grossmann Culturador e coordenador do Fórum Permanente Associação Cultural

Martin Grossmann

2021

Culturador e coordenador do Fórum Permanente Associação Cultural

 

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de MuseusEncontro Paulista de Museus

Apesar do isolamento sanitário, do trabalho remoto, da tristeza, do luto, dos medos, das angústias, das aflições e da inconformidade, a pandemia/pandemônio vem permitindo a criação de espaços para a reflexão, para o olhar crítico, para a revisão, seja da história, seja de tempos não tão longínquos como o passado recente.

Esse livro tem o propósito de desenvolver uma revisão crítica, coletiva, dos últimos 12 anos do Encontro Paulista de Museus. O resultado se assemelha a uma paisagem cubista, com pretensões cézannianas, ao que cabe bem o título dado: um panorama reflexivo.

Reúne depoimentos e reflexões de pessoas e instituições que vivenciaram os encontros paulistas de museus de modo existencial, fenomenologicamente: todos inseridos e compartilhando do mesmo Zeitgeist[1]. Imbuídos também pelo mesmo desígnio de não só fomentar o encontro, a convivência, a troca, o intercâmbio no âmbito dos museus no Estado de São Paulo, como também de desenvolver, de forma participativa, uma política pública para os museus nesse âmbito, levando em conta a alteridade, a acessibilidade, a desigualdade, a diversidade e a pluralidade, seja na esfera dos equipamentos culturais, seja de seus públicos e agentes.

“Eu não o vejo segundo o seu invólucro exterior, vivo-o por dentro, estou englobado nele. Afinal de contas, o mundo está em torno de mim, e não adiante de mim”[2].

 

Excluindo sua 11ª edição, realizada no final de 2020 de modo virtual, em plena pandemia, todas as outras, desde 2009 a 2018, aconteceram na fisicalidade, na cidade de São Paulo, quando ainda éramos modernos, integrantes de uma modernidade tardia, líquida[3].

Em março de 2020, forçosa e conscientemente deixamos de conviver na cidade, na metrópole, de usufruir de nossa urbanidade, de nos integrarmos à multidão. Deixamos de ser modernos. Desde o início do isolamento sanitário a internet, o virtual, passaram a ser nossa principal referência. Agora somos de fato pós-modernos, subjugados não mais prioritariamente à cidade, mas ao mundo digital e computacional. A virtualidade é a nossa nova natureza.

Isso é extremamente recente e ainda estamos tateando, tentando lidar com essa nova condição humana. Apesar do fascínio e assombro que é pensar nos desdobramentos desta nova realidade, de sermos testemunhas da virada de referencial de natureza[4], não compete a este livro o exame dessa conjuntura e tampouco da passagem do moderno ao pós-moderno, ou mesmo conjecturar sobre o futuro. Cabe sim a este livro, desde quando foi concebido, em 2018, pelo Fórum Permanente[5], modelar e promover um panorama reflexivo, celebrar a continuidade, entender melhor as principais características e fazer um balanço retrospectivo deste evento anual idealizado pela UPPM e seu Sistema Estadual de Museus, que recebe o apoio e coautoria para a sua realização da Organização Social Acam-Portinari.

O ponto de partida do Fórum Permanente na proposição e organização desta obra se deu pelo entendimento de que a continuidade dos EPM equivale a uma política de estado. Esta, ao que tudo indica, é resultado orgânico do esforço coletivo que a própria estrutura da composição que viabilizou este livro evidencia, ou seja, uma conjunção de: a) políticas de governo que minimamente prezam a continuidade das políticas públicas com um b) corpo técnico que salvaguarda a continuidade das infraestruturas institucionais públicas e seus programas para a cultura, em estreita relação com c) a organização gestora (OS), bem como d) da participação e intercâmbio de profissionais e público interessados, que compõem e participam da cena museológica no Estado e no País (catalisados pelos EPM), ampliada pelo e) acesso gratuito e permanente de todo o conteúdo gerado pelos EPM disponibilizado na internet e, por fim, f) o acompanhamento de uma crítica sincrônica promovida por uma plataforma flutuante de ação e mediação cultural interdependente dos governos, das instituições culturais, bem como das instituições universitárias.

Os dois últimos itens dessa lista se relacionam diretamente com a atuação do Fórum Permanente (FP), que desde a primeira edição do EPM, em 2009, é parceiro desta empreitada – única no Brasil e quiçá na América Latina. O FP desenvolveu uma “cobertura crítica”[6] para cada edição do EPM. Esse modo bastante peculiar de atuação que o FP potencializou ao longo dos anos, desde o primeiro evento que recebeu esse tipo de atenção em 2005[7], investe no acesso em tempo real, na ampla divulgação e na salvaguarda da memória desses eventos aos quais o FP se associa ou até mesmo idealiza e propõe. No entanto, o que é fundamental e diferencial nesse modelo é a crítica fomentada e produzida no interior do campo museológico e, de forma estendida, no campo da cultura institucionalizada: uma metacrítica.

A centralidade da crítica nesse modo de atuação é possível, pois o Fórum Permanente, Museus de Arte entre o Público e o Privado[8] foi idealizado e se constituiu, desde sua criação, em 2003, como uma floating.org, um dispositivo flutuante de ação, mediação e crítica cultural que por essa característica deslocável e topológica (maleável, permeável, multidimensional etc.) permite adaptabilidade a cada contexto e circunstância nos quais atua. Fruto contemporâneo do processo de desmaterialização da arte da segunda metade do século XX[9], o FP, desde o início, fez uso das tecnologias telemáticas[10], sendo pioneiro no uso do webcasting[11]. Possui em seu acervo quase 700 vídeos, disponíveis na IPTV da USP e no YouTube, seja em canal próprio, seja no do IEA-USP, onde o FP constitui-se em grupo de pesquisa. Desde 2004 o FP se faz presente na virtualidade por meio de uma plataforma CMS[12], um site que hoje, depois de 18 anos, possui quase 18 mil páginas, tornando-se uma referência na WWW[13], seja no âmbito dos museus, da curadoria, da arte contemporânea, da mediação e gestão cultural, da institucionalidade da arte e da cultura e dos debates relacionados a processos de descolonização e decolonização das estruturas culturais e educativas.

O site abriga e organiza mais de 130 eventos que o FP idealizou e produziu ou dos quais participou aplicando a cobertura crítica, ou participando como correalizador. Além desse riquíssimo material, dessa memória, o site também acolhe e disponibiliza subsites de projetos que de alguma forma mantêm correspondência com o perfil de atuação do FP. Esses 22 projetos estão organizados no módulo “rede”. O perfil singular do FP também pode ser explorado em uma navegação pelas 4.122 notícias que são replicadas no site pela equipe do FP desde o início de suas atividades.

Outra ação do FP que deve ser mencionada são as 40 entrevistas/encontros realizados pelo FP ou seus associados, com personalidades do mundo da cultura e em particular da arte contemporânea e sua institucionalidade. Sendo assim, o site disponibiliza desde uma entrevista de Paulo Freire, traduzida do alemão, até entrevistas com os principais curadores das artes visuais no Brasil.

Complementando esse rico acervo, o FP também é um editor de conteúdo, um publisher, como é o caso deste livro, realizado em parceria com a Acam-Portinari e o Sisem-SP da UPPM-Sesec. Além de sua própria coleção de livros, apenas em 2021 o FP também editou este livro e outras duas obras relacionadas à exposição que produziu neste ano, About Academia, do artista espanhol Antoni Muntadas, que por causa da pandemia foi “transferida” da Biblioteca Brasiliana da USP para a virtualidade: aboutacademia.iea.usp.br.

Por fim, e não menos importante, para que a floating.org seja caracterizada de forma plena, é importante destacar a revista digital editada pelo FP e por editores/curadores convidados: a Periódico Permanente. Essa revista surgiu em 2012 com o intuito de organizar e reorganizar editorialmente os diversos conteúdos arquivados no site ao longo de sua existência. Sem uma periodicidade definida, a publicação expõe textos, registros em vídeo e relatos críticos de eventos presenciais documentados no site sob diferentes amarrações curatoriais acrescidas de novos materiais que as distintas curadorias sugerem para cada edição. As temáticas são plurais, adensando e expandindo o perfil da floating.org. Alguns temas explorados ao longo desses últimos 10 anos, para que o leitor tenha uma ideia da natureza da revista: público-privado; crítica institucional; museu ideal; recomposição imanente das práticas artísticas; fortalecimento de pensamentos de comunidades marginalizadas; experimentar alteridades e ativar percursos, acompanhando o deflagramento de um processo complexo, proliferante; mediação cultural; reflexão sobre a teorização pós-colonial no debate artístico brasileiro; o papel da Documenta de Kassel na história das exposições; possibilidades de construirmos uma história da arte latino-americana.

Um último dado que merece destaque nesta breve caracterização da plataforma FP: o acesso a todo o vasto material disponível no site é gratuito, sob uma das licenças do Creative Commons.

Caminhando para a finalização deste texto, retornamos à crítica, pois muitos perguntam por onde ela anda. Até a virada do século era facilmente localizada, pois veiculada pela grande mídia por meio dos jornais, das revistas especializadas, pelos canais televisivos e também por meio de livros, sem esquecer das dissertações e teses produzidas no contexto acadêmico. O FP resgata a crítica do ostracismo ao considerá-la como metacrítica, como processo, como operação e não como fim em si mesma. A crítica é entendida não só como conteúdo, também sendo a própria ferramenta crítica na atuação como floating.org. Ou seja, o FP opera permanente reflexão sobre a própria reflexão inerente à ideação, missão e performance do FP ao longo de seus 18 anos de vida. Poderíamos afirmar que se trata de uma ação cultural consciente e crítica de sua experiência do espaço-tempo no contexto/campo participativo e, assim, coletivo da cultura (no comum/commons), seja local, nacional, territorial e universalmente como também ubiquamente, pois sempre operou com desenvoltura no ambiente digital e computacional.

A metacrítica é fundamental para a floating.org, pois navegar na cultura é navegar na complexidade. Do ponto de vista das artes visuais, a complexidade se torna patente quando proposições críticas provenientes de dentro, do próprio sistema da arte, como o “fim da história da arte” ou o “fim da arte”, afligem e desestruturam os cânones estabelecidos[14]. Outras visões, teorizações, análises e experiências reflexivas provenientes da periferia desse sistema também afetam a hegemonia e a estabilidade desses cânones eurocêntricos (iluminismo e modernismo europeus) e imperialistas (em especial do modernismo norte-americano). Em particular os provenientes dos Estudos Culturais, da Teoria Crítica e mais recentemente das manifestações decoloniais.

Um efeito claro dessa virada, dessa revisão crítica, está no modo como os grandes museus internacionais reveem as suas políticas de exposição na passagem do século. Os seus acervos deixam de ser expostos pela orientação temporal linear de uma história da arte hegemônica e eurocêntrica. Entra em cena a curadoria que propõe disposições temáticas. Os marcos dessa virada são a inauguração da gigantesca Tate Modern em Londres em 2000 e a expansão do MoMA – Museu de Arte Moderna em Nova York, realizada pelo arquiteto japonês Yoshio Taniguchi em 2004. Efeitos posteriores, mas igualmente importantes, são os descritos por Claire Bishop em seu livro Museologia radical, lançado em 2013, ao indicar que outros modelos de atuação museológica estão sendo testados por museus que não investem tanto na espetacularização de suas arquiteturas, mas sim no modo mais politizado e experimental que conduzem reformas em seus programas expositivos e educativos. Exemplos desse tipo de prática, de ação cultural, seriam o Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia em Madrid, Espanha, o Van Abbemuseum em Eindhoven, Holanda, e o Museu de Arte Moderna em Liubliana, Eslovênia[15].

Convidamos, assim, a leitora e o leitor a desenvolverem sua própria metacrítica ao navegar neste livro. Se quiser compartilhar sua experiência com a gente, entre em contato: contato@forumpermanente.org.

 

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. São Paulo: Zahar, 2001.

BELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

BISHOP, Claire. Radical museology: or what’s “contemporary” in museums of contemporary art? London: Dan Perjovschi and Koenig Books, 2013.

DANTO, Arthur. Após o fim da arte: arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus; Edusp, 2006. GROSSMANN, Martin. Do ponto de vista à dimensionalidade. Item: Revista de Arte, Rio de Janeiro, n. 3, p. 29-37, 1996. Disponível em: https://archive.org/details/item3alta1/page/n27/mode/2up. Acesso em: 17 maio 2021.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e espírito. Tradução M. S. Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Col. Os Pensadores).

ZANINI, Walter. Vanguardas, desmaterialização, tecnologias na arte. São Paulo: Martins Fontes; Instituto Itaú Cultural, 2018.



[1] Espírito do tempo.

[2] MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e espírito. Tradução M. S. Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Col. Os Pensadores). p. 100.

[3] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. São Paulo: Zahar, 2001.

[4] A Humanidade possui três referenciais de natureza, sendo a primeira (pré-moderna), a natureza-natural, preexistente, aquela com a qual os humanos se relacionavam diretamente desde os tempos pré-históricos e que foi sendo dominada pela tecnologia, pela ciência, levando-nos ao Antropoceno. A segunda natureza é a construída, constituída por nós, humanos: a cidade, o urbano, modelada pela industrialização, pela modernização, por uma modernidade funcional. A terceira, multidimensional, tem como base a virtualidade, também de origem humana, mas cuja hegemonia poderá ser suplementada pela inteligência artificial. (Essa proposição foi sendo desenvolvida ao longo dos anos e se baseia neste texto: GROSSMANN, Martin. Do ponto de vista à dimensionalidade. Item: Revista de Arte, Rio de Janeiro, n. 3, p. 29-37, 1996. Disponível em: https://archive.org/details/item3alta1/page/n27/mode/2up. Acesso em: 17 maio 2021.)

[5] O projeto do Livro comemorativo dos 10 anos dos Encontros Paulistas de Museus foi protocolado junto ao Edital Proac-ICMS em maio de 2018 com o código 26514.

[6] As coberturas críticas são compostas pela transmissão ao vivo, via streaming, do evento em questão, registro em vídeo e relatoria crítica. Para mais detalhes, vide: http://www.forumpermanente.org/sobre/coberturas-criticas.

[7] A primeira cobertura crítica do Fórum Permanente foi desenvolvida para a Conferência Anual do CIMAM 2005: Museums: Intersections in a Global Scene, que aconteceu nos dias 21 e 22 de novembro de 2005, na Pinacoteca do Estado, em São Paulo. Os principais tópicos de discussão, considerados centrais para os museus e para a prática da arte de hoje, incluíram o papel do museu de arte, a erosão da esfera pública, a confusão entre posse e custódia de obras e a geopolítica do conhecimento. Como o evento era fechado para os membros e convidados do Cimam – Comitê Internacional para Museus e Coleções de Arte Moderna –, organização afiliada ao Icom – Conselho Internacional de Museus, o Fórum Permanente propôs aos organizadores um pacote de comunicação e memória que a partir de então denominamos “cobertura crítica”. Esse “pacote” é composto por transmissão on-line, em tempo real, da Conferência e posterior disponibilização das gravações no site do Fórum Permanente, bem como a coordenação de uma relatoria crítica de toda a conferência, produzida por jovens críticos. O site também publicou e mantém alguns dos textos compartilhados pelos palestrantes.

[8] A idealização, desenvolvimento, manutenção e atualização do Fórum Permanente estão registrados nesta seção de seu site: http://www.forumpermanente.org/sobre.

[9] ZANINI, Walter. Vanguardas, desmaterialização, tecnologias na arte. São Paulo: Martins Fontes; Instituto Itaú Cultural, 2018.

[10] Conjunto de técnicas e serviços que associam os meios informáticos às telecomunicações.

[11] Essencialmente, webcasting é a ampla transmissão de conteúdo utilizando a internet. Pode acontecer em tempo real ou por demanda.

[12] Content management system, em português: sistema de gestão de conteúdo, SGC. Um software usado para gerenciar a criação e modificação de conteúdo digital por meio de templates/formulários. Essa plataforma permite e oferece suporte para que vários usuários participem de um mesmo ambiente colaborativo de armazenamento e publicação de informação e conhecimento. O CMS permite, assim, a criação de sites hipertextuais e multimídia ao facilitar a inclusão de textos, gráficos, fotos, vídeo, áudio, mapas e outros materiais digitalizados que serão recuperados e relacionados em interação com a navegação que cada usuário fará pelo site.

[13] World Wide Web: o cientista inglês Sir Timothy Berners-Lee inventou a WWW em 1989. Conhecida como Web, ela não é sinônimo para a internet, mas opera nessa rede de computadores. Trata-se de um sistema de informação no qual documentos e outros recursos da web são identificados por uma URL (uniform resource Locators), seu “endereço” (exemplo: https://example.com/). Podem ser acessadas por qualquer tipo de dispositivo computacional por meio de um “navegador”, um aplicativo, instalado nesse equipamento.

[14] Vide: DANTO, Arthur. Após o fim da arte: arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus; Edusp, 2006 (versão original em inglês de 1997), bem como BELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2006 (versão original em alemão de 1983).

[15] BISHOP, Claire. Radical museology: or what’s “contemporary” in museums of contemporary art? London: Dan Perjovschi and Koenig Books, 2013.