Museum for social Justices

Relato por María Iñigo Clavo Relato crítico da conferência inaugural: “Museum for social justices”

Por María Iñigo Clavo

Relato crítico da conferência inaugural: “Museum for social justices”

Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus Encontro Paulista de Museus

A abertura do 6º Encontro Paulista de Museus com a palestra de David Fleming, diretor do Nacional Museums Liverpool foi um claro posicionamento por parte do comitê de seleção das Conferências, articuladas através da vontade de discussão acerca da ressignificação dos Museus.

Esse foi o projeto da Curadora Colombiana Cristina Lleras, com o que gostaria de introduzir a questão, dado que traz tentativas pioneiras na América Latina nesse sentido num contexto cheio de dificuldades. Lleras teve que deixar seu posto de curadora no Museu Nacional de Colômbia logo depois da polêmica suscitada pelo trabalho na renarração dos Bicentenários. Na mostra, a equipe curatorial incluiu as habituais estratégias de esquecimento do próprio museu, assinalando os silêncios das narrações nacionais, como por trás do mostrado está o não mostrado.

O projeto de Lleras era ir mais além da tarefa de conservação do Museu, tentando responder na seguinte pergunta que poderia muito bem introduzir esse relato: “Should the unresolved conflicts outside the museum be ‘resolved’ inside? [...] While societies fail to face social crises, museums are being called on to disseminate civic values or redeem the nation for its discriminación”[1]. A palestra de David Fleming tem uma resposta muito clara a essa pergunta: os museus devem ter um papel fundamental para confrontar os problemas de injustiça social, direitos humanos e reparação histórica.

A intervenção de Fleming se dividiu em duas partes. A primeira tinha a ver com as bases do pensamento e do posicionamento ideológico do projeto de envolvimento social nos museus. Na segunda parte o palestrante trouxe diversos exemplos que, desde a sua direção em 2001, mostravam as ações, programas e mostras realizadas nos diferentes centros que se compilam no Nacional Museums Liverpool: Museu da Escravidão, Lady Lever Art Gallery, Maritime Museum, Museum of Liverpool, Sudley House, Walker Art Galery e World Museum.

Para a primeira parte ele começou problematizando o termo de justiça social, que muda em função do sistema político, mostrando a fragilidade do próprio termo. No caso do Nacional Museums Liverpool se está fazendo uma aposta por um Museu dos Direitos Civis, promovendo o diálogo e a inclusão, o que tem lhes convertido em referência em nível internacional. Um dos eixos fundamentais, articulador de todas a propostas, é o conceito de “democracia”: não se preocupar tanto pela preservação das coleções e o patrimônio quanto pela responsabilidade social. Trata-se de um museu que não seja feito para a elite, mas para dar espaço a uma história comunitária baseada no acesso à construção das narrativas feitas por profissionais.

Na concepção do Fleming, o Museu que dá valor à responsabilidade social e um Museu que procura uma posição para criar valores sociais, consciência da importância na educação, envolvidas com os descriminalizados em ação positiva. Escapa do pensamento tradicional, procurando nas culturas locais os pontos mais desfavorecidos pelos discursos do poder: trabalhadores da prostituição, moradores de rua, transexuais. Uma coisa interessante que Fleming definiu é como o fundamental do papel desses supostos “outros”, como por intermédio deles a sociedade britânica também está se definindo, quer dizer, mais além de uma questão da velha missão de dar voz aos silenciados numa postura quase caritativa, o projeto mostra como essas histórias e identidades são partes da sociedade e a conformam. Fleming colocou o exemplo de uma mostra sobre um transexual, April Ashley, que abriu o debate sobre transgênero no Reino Unido e nos Estados Unidos, mostrando como foi desumanizado na imprensa daquela época. Pessoas com a sua história são as que têm aberto caminho e afetando a sociedade que os rodeiam. Nesse sentido o Museu atuou como um espaço de reparação para a vida de Ashley, e como ele outros transexuais e homossexuais que tiveram que coexistir com a homofobia nas décadas passadas. Para Fleming, um museu precisa de parceiros porque sozinho não chegaria muito longe. Esse é um ponto importante para compreender como se pensa esse novo modelo de museu.

A partir daqui Fleming começou a colocar exemplos, como a mostra do pintor de David Hockney, que nos anos 1950 trabalhou desde a sua condição homossexual, criando imagens homoeróticas, desafiando assim a homofobia em debate. Na mostra de fotografia “Alive: in the Face of Death”, do Ranking da Walker Art Gallery, tratavam a percepção da morte na cultura britânica, incluindo pessoas com doenças. Também falou de projetos como The House of Memories, em que eram envolvidas pessoas com síndrome de Down e demência senil para abrir o entendimento da enfermidade e gerar experiências de aprendizagem e relação como eles, melhorar sua qualidade de vida, misturar crianças com idosos e gerar encontros onde eles possam se relacionar desde contextos positivos.

Uma parte importante da palestra foi dedicada a mostrar uma mostra sobre futebol, que esteve muito voltada no reconhecimento de um acontecimento que marcou a cidade e que não ficou totalmente esclarecido em Liverpool: um acidente num estádio que provocou a morte de 96 pessoas. Fleming explicava que, embora o museu tenha se mantido neutro, focalizou grande parte da mostra nesse fato, que era o que unia as duas equipes rivais que dividiam a cidade. O Museu se centrou no fato de a população se juntar para averiguar o que aconteceu. Esse seria um claro exemplo do Museu olhando para a justiça local.

A palestra engajou muitas questões que se viram reflexas nas numerosas perguntas apontando para diferentes assuntos: por exemplo, o tema da impossibilidade de uma neutralidade do Museu na hora de se envolver com assuntos sociais. Fleming colocou o exemplo de uma mostra em que se colaborou com as comunidades africanas para falar dos artefatos roubados durante a colonização da Nigéria. Fez-se alusão ao Museu da Escravidão como um exemplo de reparação. Fleming colocou alguns exemplos, como o fato de um Museu de História Natural poder tratar de questões de ecologia. Perguntou-se sobre o impacto social dessas mostras, e ele respondeu que não se pode medir em termos qualitativos, embora, sim, seja possível mostrar um aumento das visitas nos museus e mostrar uma clara melhora quantitativa. Desde o público falou-se do modo de organização, baseado no envolvimento de jovens e planos de trabalho des-hierarquizado. Também explicou como o museu, sendo um lugar de legitimação, pode ser uma ferramenta-chave para mostrar problemas sociais que não estão tão visíveis.

Essa palestra de abertura foi emocionante pelas ferramentas tão potentes que oferece para o contexto brasileiro. Embora o palestrante tenha indicado que a história da museologia tem um antes e um depois desde esse novo giro relativo ao interesse pelos direitos humanos como arena de debate nos museus, não posso deixar de assinalar que é precisamente a prática artística contemporânea que tem aberto o caminho que agora está sendo institucionalizado pelos museus. Especialmente desde os anos 1990 na Europa, mas desde os anos 1960 na América Latina, o contexto da arte contemporânea tem acolhido práticas políticas e ativistas que não tinham nenhum outro espaço de divulgação. Essa nova onda de justiça social e direitos humanos nos museus, que colaboram com diversas organizações sociais, não é mais do que a legitimação e institucionalização do que os artistas têm feito há 20 anos sem nenhum apoio institucional. Assim mesmo foram os artistas da crítica institucional da primeira e segunda onda que começaram a fazer trabalhos críticos sobre as coleções dos museus. Especialmente os artistas dos 1980, que geralmente falavam do lugar da alteridade, como o célebre afro-americano Fred Wilson, que seria um exemplo mais clássico que serviu para mostrar como os museus americanos não tinham o rastro da história da discriminação racial. Ou Martha Rosler, com a sua mostra “If You Life Here...”, em Nova York, quando convidou agentes sociais a falarem sobre o problema de falta de moradia na cidade, sobre os problemas específicos dos moradores de rua como parte de uma subcidadania sem acesso aos direitos civis. Experiências com Tucumán Arde em 1968 na Argentina são um outro exemplo de trabalho colaborativo para mostrar os problemas das classes operárias em desmantelamento nas áreas mais pobres do país. Por isso acharia interessante para esses museus traçar uma genealogia da tradição que tem lhes trazido até aqui. Seria conceder às práticas artísticas contemporâneas um lugar de produção de pensamento e modelos para uma outra museologia.


 


[1] Lleras, Cristina. “Contesting the power of single narratives. Lessons from the National Museum of Colombia”. Texto inédito