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Coleções Africanas em Museus: um debate contemporâneo

relato por Camilo de Mello Vasconcellos

Relato das mesas sobre coleções africanas.

 

A questão da diversidade cultural e da convivência com o diferente é um tema cada vez mais discutido e que mobiliza diferentes setores da sociedade contemporânea, constituindo-se em um debate político, cultural e econômico de grande importância, imersos que estamos em um mundo globalizado. Esta temática não poderia deixar de ser pensada a partir de uma instituição que vem há séculos preservando referências patrimoniais de diferentes povos e culturas, e que proporciona um movimento de repensar este mundo multicultural em que nos encontramos. Refiro-me ao museu que, por meio de suas coleções, proporciona uma viagem em direção ao outro e que pode nos conduzir a um movimento de repensarmos nossas identidades e culturas. Esta foi a tônica que norteou as apresentações e os debates a respeito do tema das coleções em museus africanos conduzidas por pesquisadores de importantes instituições museológicas de diferentes continentes.

No geral, as reflexões apresentadas podem ser consideradas de grande importância para quem está envolvido diretamente com o trabalho da pesquisa e gestão de museus, a partir de diversos aspectos levantados tais como aqueles relativos à formação das coleções, o trabalho com as exposições museológicas, a questão educativa, o repatriamento de objetos africanos que hoje se encontram fora do seu contexto, especialmente em países europeus e dos Estados Unidos, e o papel dos museus junto aos diferentes públicos que visitam ou não estes espaços.

As reflexões de Karen Milbourne, que trabalha no Museu Nacional de Arte Africana há apenas três anos, iniciaram-se a partir de um breve histórico a respeito da formação deste, fundado em 1963, quando ainda funcionava como um Centro de Comunicação Intercultural. Esta instituição foi criada no contexto do movimento das lutas pelos direitos civis da população negra dos Estados Unidos e somente passou a funcionar em sua sede atual no ano de 1987, como um grande museu nacional e pertencente ao importante complexo de museus do Smithsonian Institution. Além disso, este museu foi incrementando o seu acervo a partir de doações e compras que possibilitaram que as principais coleções desta instituição atualmente sejam de esculturas de madeira, desenhos, fotos, pinturas, filmes históricos e artefatos de cerâmica. Nos dias atuais, o museu busca estabelecer um diálogo profícuo entre os objetos de arte moderna e contemporânea com aqueles que também podem ser considerados históricos. O museu possui um antropólogo como curador chefe que é originário da Costa do Marfim e que vem se dedicando ao estudo das máscaras africanas, tecidos e dos objetos em folha de ouro.

Milbourne também se referiu ao fato de que muitos dos objetos tridimensionais do acervo são relativos a ícones do poder político de diferentes culturas africanas, assim como as esculturas feitas de madeira que representam cultos diversificados e também o status social de pessoas das camadas dominantes de grupos culturais africanos.

O Museu também vem abrindo espaço para artistas negros que realizam instalações buscando estabelecer um diálogo com o mundo fashion, a partir de trajes prestigiosos, de obras famosas da literatura mundial (“Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley) ou de outros tipos de linguagens mais contemporâneas.

Para incrementar também outras linhas de pesquisa, o Museu vem estabelecendo parcerias com museus universitários como aquele firmado com o Museu da Universidade de Maryland, no sentido de contribuir para o melhor e necessário conhecimento a respeito de suas coleções.

Finalmente, a autora também apontou a importância que o Museu vem dando à questão educativa ao destinar alguns objetos do acervo para a realização de diferentes atividades com o público escolar. Além disso, o museu também disponibiliza uma biblioteca aberta para pesquisadores e experts no tema da arte africana, que possui um acervo de grande importância sobre temas afins e catálogos de exposições realizadas em museus de diferentes países afro-americanos.

No debate com o público presente foi enfatizada por Milbourne a questão da necessária preocupação ética com a aquisição de novos acervos, em função de uma demanda que infelizmente ainda existe e que diz respeito ao tráfico ilícito de bens patrimoniais africanos encontrando em países da Europa e mesmo nos Estados Unidos um mercado ilegal bastante atuante, “infelizmente”.

Há tentativas do museu em se aproximar com diferentes públicos (inclusive com a comunidade de brasileiros que vive nas circunvizinhanças deste espaço museológico), na direção de estreitar as relações entre a arte africana com a arte popular de populações negras.

Como comentário de ordem geral, considerei o debate com o público mais produtivo do que a apresentação de Karen Milbourne propriamente, pois em sua explanação a preocupação esteve voltada excessivamente para a descrição das coleções que fazem parte do acervo do Museu Nacional de Arte Africana faltando, desta maneira, uma reflexão maior na direção de um posicionamento crítico e interpretativo do papel que estas coleções e este Museu podem exercer nos dias atuais, inclusive no aspecto simbólico deste rico acervo em uma sociedade com graves problemas raciais como é a norte-americana. O público buscou conhecer melhor a realidade desta instituição, especialmente no que diz respeito ao trabalho educativo realizado junto aos visitantes e qual a inserção deste acervo com a problemática da questão racial, temática tão presente na realidade norte-americana.

Ao contrário desta primeira apresentação, Samuel Sidibié do Museu Nacional do Mali realizou uma reflexão bastante crítica e proporcionou momentos de intensa participação entre os presentes.

Sua apresentação iniciou-se com colocações em relação ao fato de que os museus africanos se deixam mostrar ainda por um “olhar externo sobre as culturas africanas, pois o museu além de ser uma instituição ocidental criada pelo olhar europeu, claramente transmite uma visão colonizadora e de pouca inserção no mundo africano”. Inclusive, o debatedor chegou a dizer que no Mali os africanos não freqüentam os espaços museológicos, pois não se sentem representados por suas coleções e acervos, sendo os espetáculos musicais apresentados nos museus uma forma de trazer um número maior de visitantes.

Outro aspecto abordado por Sidibié diz respeito ao fato de que as coleções de objetos africanos presentes em museus europeus e norte-americanos ainda não se preocupam com o contexto em que muitos desses objetos foram utilizados, sendo referenciados apenas como objetos artísticos.

Para este autor os museus europeus, principalmente os etnológicos, necessitam de uma revisão urgente de seus conteúdos e na apresentação de suas exposições, pois muitos ainda não superaram o modelo evolucionista do século XIX.

Segundo Sidibié, ainda falta em muitos museus estrangeiros, o discurso dos produtores dos objetos africanos, ou seja, daquela população que não foi alvo do processo de musealização e, portanto, não está representada nos discursos expositivos. Sidibié afirma que “o que encontramos é o discurso dos acadêmicos que da mesma forma ainda estão distantes do universo das populações africanas e afro-descendentes, contrariando a tendência contemporânea de constituírem-se os museus em espaços polifônicos e aberto às diferentes culturas e povos africanos”.

O exemplo do Mali pode ser um caso bem sucedido onde, segundo Sidibié, a maior parte das duzentas culturas desse país encontra-se representada em seus discursos expográficos, o que não ocorre nos museus europeus e norte-americanos que possuem acervos e coleções sobre a África.

Importante também salientar que Sidibié prefere a noção de patrimônio ou de cultura material africana em lugar de arte africana, pois esta também possui um contexto que é ocidental e, muitas vezes, acaba distorcendo o conteúdo, o conceito e o contexto dos objetos produzidos por diferentes culturas africanas.

Sidibié inclusive chegou a afirmar que o conceito de patrimônio imaterial é mais importante que o de patrimônio material, pois no contexto africano, nos rituais, por exemplo, importa mais tudo aquilo que envolve a prática do ritual em si do que propriamente o objeto. Ou seja, “importa mais o ritual enquanto manifestação cultural do que os objetos ali presentes, e neste caso, por exemplo, a música e a dança assumem um valor e uma dimensão maior do que aquela máscara”.

Sidibié apontou também que os artistas populares possuem um papel fundamental na recriação da cultura, pois permitem uma reinterpretação do patrimônio à luz do que vêm produzindo no atual momento da vida africana. Inclusive, Sidibié defendeu que o museu possa tornar-se um centro de promoção das tradições culturais contemporâneas e, dessa maneira, reforçar a sua função social.

Nos debates ocorridos logo em seguida, Sidibié apresentou uma reflexão ao afirmar que apesar de os objetos africanos estarem expostos em diversos museus europeus e norte-americanos, os africanos não participam destas representações e, muitas vezes, estes discursos apresentam distorções e/ou omissões e, o pior de tudo, “não chegam até nós, pois nunca vemos estas exposições”.

Defendeu ainda o ponto de vista segundo o qual os museus devem reunir esforços para trabalhar com todos aqueles que se interessam pelas problemáticas contemporâneas, e que isso envolve também outros grupos étnicos em diferentes países africanos.

Finalmente, Sidibié apontou o papel fundamental dos educadores de museus que, muitas vezes, podem e devem contribuir para o processo de reinterpretação das culturas conjuntamente com os visitantes desses espaços.

Na apresentação da Profa. Martha Heloisa Leuba Salum, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, notou-se a abordagem de uma pesquisadora cuidadosa com a atividade curatorial a partir de um acervo formado com o objetivo de tornar-se foco de pesquisas em etnologia africana, coletado na África na década de 1960 com interesses específicos de um Museu Universitário, e organizado por Mariano Carneiro da Cunha da Universidade de São Paulo.

A Profa. Martha Heloisa realizou um excelente histórico das pesquisas nesta área do conhecimento em nosso país, citando as principais filiações teóricas e os primeiros investigadores que acabaram influenciando toda uma geração de acadêmicos no  Brasil.

Considerei interessante a abordagem da Profa. Martha ao explorar o potencial dos artefatos africanos em contextos expositivos e educacionais, buscando imprimir a importância do olhar do público e dos estudantes que visitam as exposições do MAE-USP.

Nesta apresentação, também foram ressaltadas as importantes vinculações do MAE-USP com o MAE-UFBA e a importância do trabalho de Pierre Verger no Brasil, no sentido de formar e influenciar o olhar de diferentes etnólogos em nosso país.

Outra questão bastante importante que chamou a atenção foi a necessária diferenciação que a Profa. Martha realizou a respeito da arte africana e da arte afro-brasileira, no sentido de que ao definir-se um objeto de estudos há que se tomar cuidado com as especificidades de cada contexto e de cada cultura que produz determinados tipos de objetos.

Outro ponto levantado foi o da formação que os pesquisadores devem possuir ao se dedicarem ao estudo dessas temáticas. A Profa. defendeu o ponto de vista de que os interessados nesta área devem possuir uma sólida formação na área das Humanidades, além de buscarem referenciais na religiosidade africana e afro-brasileira.

Além disso, a Profa. chamou a atenção para a questão dos cursos de História da Arte que não destinam a devida importância para os conteúdos de arte africana em sua estrutura curricular.

Os debates proporcionados pela apresentação da Profa. Martha também apontaram a necessidade de um papel mais efetivo dos setores educativos das instituições museológicas junto ao ensino formal, e também da importância da formação desses educadores para a necessária atuação nos Museus.

Finalmente, a última apresentação foi a do diretor do Museu Afro-Brasil, Emanoel Araújo, que discorreu sobre a formação do acervo desta instituição ao longo de muitos anos, desde a sua experiência em Salvador junto ao Museu de Arte da Bahia, as viagens empreendias por diferentes países da África, suas pesquisas em museus dos Estados Unidos, além de todo o contexto e problemáticas de aquisição destas coleções que acabou contribuindo para a formação de um dos mais importantes museus da maior cidade da América do Sul.

O trabalho de “garimpagem” para reunir objetos das culturas relacionadas com a religiosidade afro no Brasil, foi uma verdadeira saga empreendida por Emanoel Araújo que, ao relatar estas experiências com slides dos objetos da coleção do Museu, nos foi proporcionando uma verdadeira aula de como se realiza uma pesquisa visando a constituição de um acervo museológico.

Emanoel discorreu sobre a história de diversos pintores e escultores baianos, pernambucanos, cariocas, mineiros e paulistas que realizaram trabalhos de excelente qualidade mas que nunca foram reconhecidos em termos de um “estrelato”, mas cujas memórias podem ser encontradas nesta instituição que trabalha fundamentalmente com a História, a Memória e a Arte deste anônimos que ajudaram a forjar um acervo com grandes possibilidades de pesquisa e fruição.

A maior parte das obras apresentadas em sua reflexão é, na verdade, exemplo do sincretismo que ocorreu entre a religiosidade do candomblé praticado no Brasil com o catolicismo oficial. E nisso reside a originalidade dos artefatos, considerados por Emanoel Araújo como “verdadeiras obras artísticas”.

A sua apresentação foi digna de um dos maiores acervos de arte afro-brasileira existentes no continente americano e os debates ocorridos, posteriormente, deram inúmeros depoimentos nesta direção, todos enaltecendo e parabenizando ao seu diretor por uma empreitada das “mais árduas, nobres e de excelente qualidade”.

Torço para que este seminário tenha a sua continuidade em outros países da América Latina ou mesmo nos Estados Unidos, para que possamos estabelecer similaridades e diferenças, limites e reciprocidades a partir de uma realidade que é única e múltipla ao mesmo tempo, pois há inúmeros museus e especialistas com pontos de vista diferenciados e que nos fazem repensar o que vem a ser a arte ou a história da produção de objetos africanos em nosso continente.