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O Museu e a condição humana: o horizonte sensorial

relato crítico por Mariana Pimentel

Relato crítico da Plenária de abertura da 23ª Conferência Geral do ICOM 2013

Palestrante: Ulpiano Toledo Bezerra de Menses

O Professor Emérito da USP, Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses inicia sua palestra admitindo o privilégio de estar podendo abrir a 23ª Conferência Geral do ICOM e fazendo referência ao fato de neste ano estar completando meio século de atividade profissional museológica.

Num tom irônico e jogando com os clichês que caracterizam as falas sobre a cultura e o modo de vida brasileiros, Ulpiano apresentou os possíveis temas que poderiam nortear a sua fala nesta que é a Plenária de Abertura da 23ª Conferência Geral do ICOM 2013. “A multiforme cultura brasileira poderia servir como guia, ou então, o caráter tropical da mesma, o calor humano, as impressões de Darwin, caipirinha e sensualidade”.

No entanto, faz questão de frisar Ulpiano, se esta conferência se debruçará sobre a questão do corpo, este corpo não será pensado aqui a partir destes temas que constituem os discursos oficiais sobre a cultura brasileira. Longe disso. Como pontua o conferencista, não se trata de sensualidade, mas de sensorialidade, isto é, do papel estratégico do corpo na busca pela recuperação da relação material entre espectador e obra na experiência museu. E isto porque aquilo que Ulpiano vai procurar afirmar não é o corpo, a matéria e a sensorialidade em oposição à espiritualidade, à razão e à mente. Mas ao contrário, desfazer esta dualidade, esta oposição e esta suposta cisão em prol de um fato universal: somos um corpo. E é a partir deste fato, isto é, de nossa condição sensível que tudo o mais pode e deve ser pensado, inclusive o espírito.

Cita, então, uma frase da antropóloga inglesa Mary Douglas, frase esta que funciona como epígrafe à sua palestra: “Dar sentido ao mundo implica em interpretar o mundo como sensível”. Será, portanto, a partir desta perspectiva fenomenológica que Ulpiano Bezerra defenderá a tese que norteia sua conferência. Qual seja: a importância radical que o museu deveria ter em nossas vidas deriva de seu potencial como plataforma estratégica para experimentarmos nossa condição humana primordial, a de que somos um corpo.

Mas antes de discorrer sobre o tema central de sua fala, Ulpiano faz uma importante ressalva: pois, se o museu é o foco de sua atenção, é preciso falar de fora dele. E isto porque o que está em jogo aqui não é uma questão operacional ou normativa, mas, antes de tudo, pensar o museu diante da problemática da condição humana. Por isso, não pretende propor soluções tópicas, mas, sim, abrir os horizontes e ampliar os territórios de atuação do museu.

Ulpiano dá início, então, ao tema de sua conferência, o museu e a condição humana. Para tanto, faz questão de sublinhar, referindo-se ao antropólogo Jean-Pierre Warnier, que, se a condição humana é corporal, este corpo não deve ser pensado enquanto algo que possuímos, mas enquanto nossa condição primordial: “não basta dizer que temos um corpo, o correto seria reconhecer que somos um corpo”. E assim, forja o solo fenomenológico sobre o qual sua conferência irá se desenrolar.

Primeiramente, faz uma defesa do corpo, dos sentidos e da faculdade da percepção como condições primeiras de mediação eu-mundo, seja no âmbito de nossa vida biológica ou de nossas trocas psíquicas. Para depois, nos apresentar uma defesa da materialidade enquanto objeto desta mediação: a matéria, segundo Ulpiano, é o objeto de mediação por meio do qual as trocas biológicas e sociais se realizam. Isto é, a matéria é a condição da vida biológica e psíquica.

Mas por que a nossa cultura ocidental menosprezou o corpo e procurou desmaterializar o que constitui o âmago da vida, estabelecendo uma separação entre corpo e espírito, coisas e palavras? Como explica Ulpiano, este preconceito tem suas raízes na oposição dialética entre razão e afetividade, racionalidade e sensorialidade, pensamento lógico e pensamento mágico, que, segundo Freud é a marca fundadora da civilização mediterrânica. Outra marca igualmente fundadora está assentada no monoteísmo, o qual fez da palavra o único veículo de re-ligação com o sagrado.  Com isso, a palavra e o texto passam a ser considerados os únicos suportes por meio dos quais a verdade pode ser revelada.

Fazendo referência ao sociólogo alemão Niklas Luhmann, Ulpiano acrescenta à análise freudiana de fundação do pensamento ocidental, o fato de que nós, ocidentais, permanecemos enfeitiçados por uma tradição de falsa hierarquia que inferioriza a percepção e privilegia a concepção, a qual legitima a centralidade da palavra, isto é, o logocentrismo. É esta mesma tradição que ordenou hierarquicamente as faculdades psicológicas e relegou a faculdade da percepção a um nível inferior às faculdades reflexivas do entendimento e da razão. Esta hierarquização tem como premissa a crença de que aquilo que nos diferencia dos animais é o uso da razão.

No entanto, nos diz Ulpiano, este preconceito vem sendo combatido desde a década de 70 tanto pela sociologia quanto pela antropologia, criando assim o campo da sensorialidade social. Campo este que afirma a universalidade de nosso equipamento sensorial e a historicidade de seus usos, isto é, toda hierarquia é necessariamente uma construção sociocultural e historicamente determinada. Isto é, envolve processos de aprendizagem e educação.

Neste momento, Ulpiano lança então a questão chave de sua fala: “E onde é que fica o museu nesse quadro de problemas?”. Como já havia afirmado antes, o museu parecia reunir as condições ideais para realizar a proposta da antropóloga Mary Douglas, qual seja, dar sentido ao mundo enquanto sensível. Mas de fato, é essa a função que o museu vem cumprindo? Parece que não. Aliás, como aponta Ulpiano, ao invés de procurar realizar seu potencial enquanto plataforma de mediação sensível com o mundo, as instituições museológicas parecem perder-se num debate sobre informação e desmaterilização do acervo.  Isto é, ao invés de trabalharem em prol de uma rematerialização das relaçéoes sócias vêm, justamente, radicalizando a desmaterialização da cultura material. Daí a expressão efeito museu, que se caracterizaria por retirar das coisas a sua vida pregressa, sua trajetória e seu caráter material, tornando as mesmas um mero conjunto de significações abstratas.

Dito isto, Ulpiano vai ao encontro do historiador da arte Hans Belting, e, mais especificamente, de sua antropologia da imagem, a qual entende o corpo como o agente da percepção. É que, para o historiador, as imagens não são apenas entes mentais, as imagens acontecem por meio da percepção e da transmissão. Isto é, não possuem vida autônoma, participando assim do jogo social. É, portanto, a partir de uma perspectiva de uma antropologia fenomenológica que uma reversão da desmaterialização das coisas e das imagens deve ser proposta.

Destarte, esta reversão traz à tona o caráter artefactual da imagem, o fato delas serem fruto de um fazer, isto é, envolverem o corpo naquilo que ele tem de mais laboral, as mãos.

No entanto, antes de discorrer sobre o caráter artefactual das imagens, o conferencista fará um adendo para remeter o tema de sua fala à questão geral que orienta a 23ª Conferência, a relação entre memória e criatividade e mudança social.

Vai chamar atenção para o fato de que as coisas materiais assim como a sensorialidade desempenharem um papel fundamental nas ações da memória e, mais especificamente, da memória-hábito ou memória encarnada, isto é, a memória do saber-fazer. Fazendo também referência à filósofa grega Nadia Seremetakis, chama a atenção para o caráter sensorial da memória. E, para finalizar, nos remete à diferença entre a memória textual, uma memória sobre as coisas e, portanto, externa a elas, e uma memória experencial, memória das coisas e cuja lembrança se dá sempre por meio da experiência. No entanto, nos diz Ulpiano, é somente para a primeira memória que temos dado atenção. Portanto, é essa memorial sensorial, encarnada, corporal, memória das coisas que deve ser recuperada pela prática museológica. Desta forma, os museus deixariam de ser uma vitrine de uma memória alienada da vida social para tornarem-se agentes, produtores desta memória viva das coisas.

Passa agora para o tema da criatividade. Aqui na verdade há uma continuidade direta com o tema da memória, visto Ulpiano relacionar a criatividade à memória-hábito, pois a criatividade, segundo ele, diz respeito ao saber-fazer, às habilidades do corpo e suas funções. E chama atenção para o fato de o patrimônio imaterial dizer respeito justamente a esta memória corporal, material.

Estabelece, então, um elo entre a memória-hábito e o saber-fazer às questões que dizem respeito aos processos de subjetivação, indo, inclusive, ao encontro das teorias do filósofo francês Michel Foucault. Como faz questão de pontuar, sujeito e objeto se constituem mutuamente, a produção do objeto envolve, pois, a produção do próprio sujeito. É no laborar do objeto que o sujeito determina a si próprio, constrói e fixa a sua identidade.

Por fim, terminando este amplo panorama, cita o filósofo grego Anaxágoras “O homem é a mais sensata das criaturas por causa de suas mãos”, a fim de mostrar o elo primordial entre as mãos humanas e a mente.

Operando um novo corte em sua argumentação, volta a criticar o que ele chama de desmaterialização da experiência, fazendo referência ao uso das novas tecnologias, seja no campo dos eletroeletrônicos, da indústria bélica, da medicina, das artes e da economia, os quais promoveriam uma substituição do corpo por um conjunto de informações, produzindo assim uma mente descarnada. Denuncia, inclusive, a falta de perspectiva crítica à entrada avassaladora da tecnologia e da biotecnologia em nosso cotidiano.

Mais especificamente, no campo da arte critica o que chama de estética do desfazimento ou de uma arte efêmera que, segundo ele, perderiam aquilo que de Aristóteles à Heidegger fundamenta a arte, seu caráter produtor, poético e demiúrgico. Estas práticas artísticas que negam o objeto e fazem uma crítica à idéia de obra de arte e também à instituição museu, dentre elas a arte conceitual e a land art, contribuiriam assim para o processo atual de desmaterialização da sociedade. E isto porque, ao invés de produzirem um objeto, fruto de uma poiesis (de uma produção), tornarem-se práticas, processos que negam, inclusive, a idéia de objeto. Sem objeto, onde o corpo poderia ancorar a sua percepção? E sem ancoragem perceptiva, como criar mundo?

A partir, então, de sua perspectiva fenomenológica defende o museu como instituição fundamental na recuperação da ancoragem corporal da condição humana. Isto é, como já havia afirmado no início desta palestra, do papel crucial que o museu deve cumprir na recuperação da relação corpo e obra.

Ora, sem discordar de Ulpiano no que diz respeito à recuperação do corpo como instância fundadora de nossa experiência mundana, nos parece que a sua perspectiva demasiadamente fenomenológica da relação eu-mundo faz com que o palestrante, por um lado, desconheça toda uma bibliografia recente acerca das relações entre as novas tecnologias e o corpo e sua dimensão política, e por outro, não compreenda que os processos de subjetivação são antes de tudo práticas. Como nos ensina Foucault, filósofo inclusive citado pelo conferencista, se não há um modelo universal que defina o que é o sujeito e, por conseguinte, que determine a relação sujeito-objeto (eu-mundo), é porque todo sujeito é fruto de uma produção, isto é, de processos que agem e fabricam subjetividades segundo relações de saber-poder . Se as biotecnologias estão em alta, isto se dá porque vivemos na era de uma biopolítica, isto é, as relações de poder se dão por meio de uma política dos corpos. Portanto, a questão não é afirmação do corpo, este o sistema de poder já afirma e produz há muito, por meio da medicina, da publicidade e por uma gama de instituições e saberes que constituem o nosso tempo presente, inclusive o museu. Por isso, o que está em jogo não é saber lançar ancora, determinar um ponto por meio do qual um mundo, uma identidade pode ser fabricada e fixada, mas antes, a afirmação do caráter efêmero, temporário e transitório de todas essas  práticas institucionais. Isto é, é preciso romper a corda, fazer com que o corpo derive, deambule, padeça, para que assim se experimente enquanto matéria em constante devir.

 

Mariana Pimentel