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A movência resiliente do Artista como curador, Daniela Mattos

Relato por Daniela Mattos

“(...) Quando artistas realizam curadorias, não podem evitar a combinação de suas investigações artísticas com o projeto curatorial proposto: para mim, esta é sua força e singularidade particulares, quando em tal engajamento. O evento terá a oportunidade de mostrar-se claramente estruturado em rede de nós próximos, aumentando a circulação de energia ‘afetiva’ e ‘sensorial’ – um fluxo que o campo da arte tem procurado administrar em termos de sua própria economia e maleabilidade.(...)”

Dentre as mesas que compuseram o Encontro Internacional de Curadoria, participei das discussões acerca da propositiva e dialógica frase: o Artista como curador. Mediada pelo artista Ricardo Basbaum, o grupo foi composto de artistas, curadores, pesquisadores e gestores culturais que discutiram, a partir de suas práticas, quais as relações, diferenças e congruências entre produção artística e curatorial no campo da arte contemporânea.

Já na primeira rodada da conversa se percebia a imensa pluralidade no entendimento e experiência de cada integrante da mesa em face do que define o trabalho de um artista-curador, reiterando uma afirmação feita na abertura do encontro: “a curadoria é um campo em desenvolvimento”. A fala inicial do mediador da mesa pareceu reiterar essa afirmação, sublinhando que a atuação do artista-curador parece não se resumir à organização de exposições, se estendendo ao fomento de espaços não-institucionais ou auto-geridos para eventos de arte, além de publicações, seminários, entre outros tipos de iniciativa. Tal flexibilidade da prática de um artista-curador, no entanto, dividiu opiniões durante o debate. Nesse sentido a prática artística que se utiliza de estratégias curatoriais para a realização de trabalhos de arte pareceu ir de encontro àqueles que enxergam sua prática em curadoria como extensão de sua produção enquanto artistas. Posições como estas foram tomadas por alguns participantes ao longo da conversa, e destaco algumas das falas que podem, de algum modo, exemplificar essa distinção de opiniões: a artista Mariana Castillo Deball apontou que os procedimentos adotados na realização de seus trabalhos já haviam sido relacionados ao repertório das práticas curatoriais, algo que, em sua opinião, lhe parecia importante reiterar como dois campos bastante diversos; em confluência com a fala de Mariana, a artista e curadora Débora Bolsoni destacou que seus projetos artísticos e curatoriais, em sua maioria, são movidos por questões diferentes, não havendo, em sua opinião, desdobramentos mais diretos entre uma prática e outra. Para Débora, o interesse em atuar nestas duas frentes seria justo a possibilidade de desenvolver e pensar de modos diversos em um campo e outro. Já Vitor Cesar e Jorge Menna Barreto relataram sua experiência em um projeto em que Jorge foi o curador e Vitor, o artista. Vitor destacou seu interesse em convidar Jorge, tanto pela possibilidade de ter como interlocutor um artista-curador, quanto pela proximidade poética do pensamento dos dois. A partir destas falas, e ao mesmo tempo analisando o todo da conversa, me pareceu que alguns artistas preferem não provocar uma interseção ou mistura maior entre os lugares do artista e do curador, ainda que se apropriem dos procedimentos referentes a este campo de ação ou atuem como curadores; já outros percebem que num deslocamento com fluidez entre as duas funções (artista-curador/curador-artista), possa existir uma interlocução mais fluente, gerando novos questionamentos e possibilidades de redefinição destes papéis.

A hierarquização dos papéis do artista e do curador, instigando um desnível entre eles, que pode aumentar na medida em que o evento ou exposição é maior em escala ou hiper-institucionalizado, também foi uma importante questão discutida pelo grupo. Essa disparidade vai desde uma espécie de infantilização do artista pelo curador, até a diferença exorbitante entre os pagamentos designados a cada um deles. A situação de desigualdade orçamentária se percebe inclusive nos editais para a realização de exposições, oferecidos por instituições culturais de diversas regiões brasileiras para artistas e curadores. Os editais, em sua grande maioria, disponibilizam verbas maiores para projetos de cunho curatorial, sejam propostas de exposição individual ou coletiva, fato que deveria ser repensado e melhor balanceado pelas instituições culturais em relação aos fomentos oferecidos para a realização destes eventos.

Curadores que desenvolvem (ou desenvolveram) de modo inventivo e poético seu trabalho e as relações fomentadas pela história da arte, independente de vinculações com o campo institucional, também foram lembrados. Dois nomes merecem ser creditados aqui: Walter Zanini por sua atuação no MAC-USP (lembrado durante a última parte do debate) e Frederico Morais por sua atuação no MAM-Rio (talvez não lembrado na mesa por ter atuado com mais assiduidade no eixo Rio de Janeiro - Minas Gerais). Ambos têm em suas práticas uma generosidade e respeito ímpar para com os artistas e seus trabalhos, além de uma abertura colaborativa, quase poética, nas exposições e textos críticos que produziram, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, época em que a função específica do curador ainda não havia sido chancelada no circuito de arte. Independente disto, tanto a proposição de Frederico junto ao MAM-RJ em 1971, os “Domingos da Criação”, quanto a experiência capitaneada por Zanini no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, na edição da “JAC (Jovem Arte Contemporânea)” de 1972, são exemplos fundamentais da prática destas duas importantes figuras do campo da curadoria, bem como na história e crítica de arte no Brasil.

Depois de organizar em 1968, meses antes da implementação do AI-5, o evento “Arte no Aterro” (rebatizado por Hélio Oiticica e Rogério Duarte como “Apocalipopótese”), no ano de 1971 Frederico de Morais propõe a realização dos “Domingos da Criação”, ao convidar artistas para um evento em que a intenção era, segundo ele, discutir “a relação entre a arte e o espaço público, a arte e a rua, a arte e a vida”. Os encontros se davam nos pilotis do MAM-RJ, onde artistas e público se utilizavam de materiais como sobras industriais, terra, restos de tecido, fios e etc para (co)produzirem experimentos artísticos. Outro aspecto importante destacado por Morais como mote do evento, era o de colocar em questão o conceito do dia de domingo como dia de descanso, para investigar suas relações com o museu e o trabalho diário.

A frente do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, como seu diretor entre os anos de 1963 e 1978, Zanini propôs que o JAC (Jovem Arte Contemporânea) de 1972 fosse realizado em bases diferentes das de anos anteriores. Sendo assim, não houve processo seletivo tradicional e o espaço expositivo de 1000m2 (mil metros quadrados) foi dividido em lotes sorteados entre os inscritos, dada a impossibilidade de contemplar todos os artistas interessados. Todo o processo foi semanalmente debatido, entre os mais de duzentos artistas envolvidos e a instituição, contando ainda com a participação do público. Deste modo, todo o processo culminou na transformação do “próprio museu em centro dessas atividades”.

Um dos destaques da fala pública de Ricardo Basbaum como mediador do debate aqui relatado (em apresentação feita no dia seguinte às discussões geradas pelas mesas que compuseram o Encontro Internacional de Curadoria), foi o que ele chamou de “contaminação” dos diversos papéis do campo da arte (o do curador, do crítico, do agenciador, etc) pela metodologia do artista. Lembrando que não há ineditismo na figura do artista-curador hoje, Basbaum apontou a importância da pedagogia produzida pela poética de cada artista e como cada trabalho de arte inventa, constrói seu próprio espaço. Dentro do escopo do que foi trazido a público por Ricardo a partir do debate, estas me parecem questões importantes a serem reforçadas neste relato, ao percebê-las já valorizadas, há pelo menos quatro décadas atrás, nas práticas curatoriais de Morais e Zanini.

Para concluir, voltando ao debate do grupo, gostaria de destacar que, curiosamente, para se pensar o lugar do “artista como curador”, concordamos que antes deveríamos discutir o que pode constituir hoje, o lugar do artista. Este também é um campo em desenvolvimento, relembrando a frase já citada no início do texto. O artista, seja como curador, ou em qualquer outro papel que se que se arrisque experimentar, me pareceu, depois deste encontro, cada vez mais consciente da importância de sua movência e performatividade.



BASBAUM, Ricardo. Amo os Artistas-etc. Publicado em Políticas Institucionais, Práticas Curatoriais, Rodrigo Moura (Org.), Belo Horizonte, Museu de Arte da Pampulha, 2005.

Participantes por ordem alfabética: Afonso Luz, Ana Maria Tavares, Bernadette Panek, Beto Shwafaty, Daniela Mattos, Débora Bolsoni, Elfi Turpin, Gabriel Menotti, Jorge Menna Barreto, Keila Kern, Mariana Castillo Deball, Ricardo Basbaum, Simone Molitor, Stephen Rimmer e Vitor Cesar.

Frase de Martin Grossman, um dos idealizadores e organizadores do evento.

Exposição Sobrepostas, permeáveis e intercambiáveis (Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza, 2009). Ver http://www.vitorcesar.org. [Nota da editora]

Algo que me parece densificar esse debate é a noção de artista-etc, termo conceituado por Ricardo Basbaum, que debate a atuação do artista para além da produção de obras arte, assumindo outros papéis junto ao circuito, e revelando uma responsabilidade em relação à sua própria produção bem como à de outros artistas. A epígrafe deste relato foi retirada de um dos textos em que o artista desenvolveu tal noção, já creditado na nota 1. O texto na íntegra, acerca deste e outros temas correlatos, está disponível em seu blog: http://rbtxt.wordpress.com/

Dados acerca desta e de outras atividades realizadas por Frederico Morais, comentadas por ele, podem ser encontrados na entrevista feita pelo pesquisador Gonzalo Aguilar com o critico, acessível no link: http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=3279

A frase entre aspas foi retirada do texto Novo comportamento do Museu de Arte Contemporânea, de Walter Zanini, publicado em Sobre o ofício do curador, Alexandre Dias Ramos (org),  Zouk Editora, 2010.

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Número 2