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Uma pintura baseada na teimosia e a necessidade de uma antibiografia – Relato crítico sobre o Seminário de João Câmara | Por Arthur L. do Carmo

 

 

Uma pintura baseada na teimosia e a necessidade de uma antibiografia

Por Arthur L. do Carmo

Por ocasião da abertura da mostra “João Câmara – trajetória e obra de um artista brasileiro”, o Museu Afro Brasil promoveu um seminário com a presença do artista e de outros dois interlocutores: Tadeu Chiarelli, crítico, professor e diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP e Emanoel Araujo, artista e diretor do próprio Museu Afro Brasil. A mostra reúne um conjunto significativo de pinturas e litografias de João Câmara realizadas entre 1968 e 1989-90. Trabalhos mais recentes que estavam em exibição ainda esse ano no Museu do Estado de Pernambuco e que fariam parte da mostra não puderam ser trazidos, porém integram o catálogo lançado na abertura, que conta ainda com textos de Aracy Amaral, Emanoel Araujo, Mino Carta, Roberto Pontual, Frederico Morais, Almerinda da Silva Lopes, Edward Sullivan e Tadeu Chiarelli. A mediação da conversa ficou a cargo do coordenador educativo do museu Rafael Domingos.

 

João Câmara. Colosso, s/d. Impressão sobre tela.

Única obra do Acervo Museu Afro Brasil de João Câmara a integrar a mostra "João Câmara - trajetória e obra de um artista brasileiro".

 

A primeira questão levantada no encontro foi em relação ao seu formato: seminário ou bate-papo? Emanoel Araujo rejeitou de início a formalidade e distanciamento em que um seminário poderia incorrer. De maneiras distintas, os dois interlocutores da obra de João Câmara ali presentes modularam suas falas a partir do formato que pensaram ser mais propício para a ocasião. A ideia de conversa, entretanto, levou a sínteses nas apresentações, permitindo assim que diversas questões fossem aprofundadas nas perguntas do público. As perguntas não se restringiram apenas à produção do artista. Diante dos dirigentes que comandam alguns dos mais importantes museus paulistas, o público lançou questões a respeito da Bienal de São Paulo e sobre políticas de aquisição de acervo dos seus respectivos museus.  As respostas tornaram mais claro como funciona a convivência entre três das quatro das instituições basilares na história da arte brasileira que integram o conjunto de museus do Parque Ibirapuera: o Museu de Arte Moderna, o Museu de Arte Contemporânea, a Bienal de São Paulo e o Museu Afro Brasil. Sendo assim, esse relato se divide em duas partes, a primeira trazendo a discussão que perpassa os trabalhos de João Câmara e a segunda trazendo pontos relevantes sobre esses aspectos mais amplos.

 

Arte pernambucana e preconceito

 

De início, Rafael Domingos, enquanto mediador, não lançou uma questão específica para João Câmara, primeiro a se manifestar, mas pediu que ele apontasse algumas considerações sobre as obras que integram a exposição inaugurada no dia anterior. Câmara, além de artista, já foi reconhecido como “teórico da arte” por Aracy Amaral, alguém que “conhece amplamente os grandes mestres da história da arte, o que chega a ser incomum num pintor de sua geração.”[i] Emanoel Araujo, na ocasião, complementou com outro resumo certeiro sobre o artista: “mais do que um falador, ele é um instigador.”

E o que nos instiga o artista? João nos faz pensar a respeito da sobrevivência da arte fora dos grandes centros hegemônicos, nas narrativas que optaram por não se integrar às principais correntes da arte brasileira construídas nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Na sua fala, Tadeu Chiarelli resgatou um dos seus textos que versam sobre o artista, intitulado “A estranheza de João Câmara.” A estranheza a que se refere não acontece não na obra do artista, mas sim no olhar do crítico que fala a partir de São Paulo, “de dentro de uma história e de um compromisso com as artes visuais que parecem se distinguir das questões artísticas de outras regiões do país, sobretudo do Nordeste.” Ponto nevrálgico, Emanoel Araujo relembra que mesmo na arte “o Sul é sempre preconceituoso com o Nordeste, e quando olha para o Nordeste sempre o vê com uma certa dificuldade.”

João Câmara se apresentou por um “perfil mínimo do artista”: saído da Paraíba com a família para um curto período no Rio de Janeiro quando criança, seu pai é transferido novamente para Recife após o suicídio de Getúlio Vargas, e desde então ali permaneceu. Mesmo assim possui uma produção que não apenas dialoga intensamente com a produção brasileira, mas também questiona quais seriam as narrativas que construíram a identidade visual do país no campo da arte. João é um artista que se volta para o interior do país, seja pela tradição de outros artistas pernambucanos como Vicente do Rego Monteiro e da própria cultura popular assim como se volta para o interior do nosso próprio continente, a América Latina, que foi pouco conectada depois que a arte brasileira colocou como objetivo uma internacionalização de sua produção, em que esse termo não se refere aos países vizinhos, mas sim à Europa e Estados Unidos.

A escolha por se manter distante dos cânones da arte contemporânea brasileira ocorreu principalmente por sua “teimosia” com a pintura figurativa. "Sou basicamente um pintor, no sentido técnico e artesanal da palavra, e um pintor de figuras.” Essa insistência, “teimosia que é característica do nordeste do Brasil”, o artista recorda, se deu desde o início da sua carreira. Quando se arriscou em alguns momentos pela abstração, seu professor na época de formação, um argentino e espanhol chamado Laerte Baldini, lhe disse: “você não leva muito jeito com essa coisa de abstração, deixe para quem é capaz.” Esse ponto é tão fundamental em sua obra que João pensa a sua pintura tendo a figura como suporte. Mesmo o caráter político da sua obra não ocorre por manifestação de denúncias diretas, mas por retratar a manifestação de cenas que se repetem como história dos gestos autoritários na política latino-americana, como em sua série mais conhecida desse caráter, as “Cenas da vida brasileira”, feitas entre 1974 e 1976. Emanoel atinou com a percepção de narrativas que não se consolidaram como centro de outras identidades nacionais, mas são colocadas sempre de lado, como narrativas regionais, e enfatiza: “Cenas da vida brasileira é uma bofetada na arte brasileira, é o reconhecimento de um país que não se forma nunca.”

O caráter político da sua figuração, afirma o artista, pelo qual é lembrado, decorre do próprio aspecto narrativo da figura, uma narração que “é agregada à palavra”. Entretanto, “o ato de pintar é um pouco complexo e os substantivo não são suficientes para narrar integralmente a sua mensagem, mas talvez alguns adjetivos possam ser incorporados a ele: um vermelho crepuscular, um amarelo solar.” Nesse sentido, uma das perguntas do público questionou se não haveriam outros momentos políticos em sua obra, e como ele pensa quando é tratado como um artista político, ou crítico social. Irônico, o artista diz, corroborando até mesmo para os efeitos do seu afastamento que estamos salientando: “sou muito político, mas muito pouco eleito.” Apesar de sua origem, residência e persistência no Nordeste, João pensa uma ampla gama de referências, citando movimentos que vão do renascimento ao barroco e neoclassicismo brasileiros, passando pelo maneirismo tardio e pela a arte popular, de Marcel Duchamp à teoria das cores de Joseph Albers, além do figurativismo dos surrealistas, a pintura flamenca, a literatura de Júlio Cortázar e mesmo o fazer de Francis Bacon. São encontros ecléticos, uma impureza que não se obriga à uma “tessitura lógica”, mas a “uma incorporação de memórias do passado e de antevisões futurológicas”.

Alguns dias depois desse encontro, Tadeu Chiarelli publicou um texto chamado João Câmara e a “verdadeira” arte brasileira, em que afirma que essa mostra “figurativa (emerge) na capital paulista em um momento em que ventos sopram fortes em direção contrária à noção de que a ‘verdadeira’ arte brasileira contemporânea deva ser necessariamente não figurativa e herdeira dos valores formais e/ou comportamentais supostamente (e somente) originárias das vertentes construtivas.’” Em muitos casos essa herança não pode ser evitada, entretanto, pensar outras narrativas para a arte brasileira se faz fundamental, principalmente nesse momento em que novamente nossos processos políticos se encontram com um cenário latino-americano em convulsão. Afinal, o que a arte europeia e norte-americana poderia nos ensinar hoje? Enquanto faço esse relato, os três exemplares da obra intitulada “The comedian”, do italiano Maurizio Cattelan (1960), foram arrematados na feira Miami Basel. A obra, uma banana presa na parede com uma silver tape, foi arrematada por valores entre USS 120 mil e U$$ 150 mil cada edição. Ao mesmo tempo, desde outubro está sendo exibida a serigrafia de Glauco Menta (1965) intitulada “Never forget: I make my money with bananas” no Museu de Arte Contemporânea do Paraná, na mostra “Pequenos gestos, memórias disruptivas”, curada por Fabrícia Jordão.

 

Glauco Menta Never forget I make money with bananas

Glauco Menta. Never forget: I make money with bananas. Sem data, Serigrafia. Prêmio 52º Salão Paranaense (1995)

 

Tadeu Chiarelli relembra na sua fala e também no texto citado o Salão de Brasília ocorrido em 1967. Na ocasião, João Câmara disputava o grande prêmio com Hélio Oiticica, e então Mario Pedrosa faz uma defesa da obra figurativa do artista paraibano radicado em Pernambuco:

 

“Hélio Oiticica, artista carioca de profundas raízes urbanas, representa a vanguarda, em suas invenções originais e aberturas experimentais mais desinibidas, sendo também considerado, hoje, um dos pioneiros do mundo da arte ambiental e sensorial. O júri não podia deixar de cogitar seu nome para o Grande Prêmio. Em face dele, a representação pictórica de Pernambuco traz uma nota nova ao Salão: Câmara, contribuindo com a pintura brasileira com um elemento que faltava: o vigor descritivo do protesto social (…). O júri decidiu conferir o Prêmio a Câmara pela violência e agressividade de sua mensagem pictórica, em si mesma de autêntica plasticidade.”[ii]

 

Com isso, Mario Pedrosa superava o receio que permanece ainda hoje de aceitar essa corrente como parte de uma das principais correntes da produção artística brasileira, mesmo a ressaltar sua origem pernambucana, pois era a experiência da não-figuração da arte ambiental, e não simplesmente do seu oposto, a abstração, o que nos diferenciaria da experiência latino-americana, concedendo uma desejada identidade própria.

Muito do que está produzido na obra de um artista é aquilo que ele fez, ou então como ele fez, os seus métodos, escolhas e trajetória. Entretanto, João Câmara propõe um caminho de análise inverso: observar a obra pelo que não foi feito, e com isso construir um “antibiografia” do artista, conhecer um artista pelo que ele não fez, mais do que pelo que ele fez. Porque com isso se revelariam as suas escolhas. “Se você olhar a biografia do artista, temos que nos perguntar, porque ele não fez isso, e fez aquilo?” E o que João não fez primordialmente? Ele não optou por Paris, como Cícero Dias, e muito menos por São Paulo ou Rio de Janeiro. Ao contrário do que sugeria Aracy Amaral em 1976, para que o artista saísse “um pouco de Olinda, de Pernambuco, do Brasil”, pois “seria útil que ele saísse, para uma vivência necessária de perspectivas novas”, João permaneceu em Recife, permaneceu “teimoso” na figura e fora do mainstream (não do mainstream do Nordeste, entretanto), abrindo talvez possibilidade para que outras narrativas ainda sejam escritas.

 

Parque Ibirapuera, suas instituições de arte de políticas de acervo nulas

 

A partir de desvios do assunto principal foram abordadas os descaminhos da Bienal de São Paulo e a inexistência da política de acervo nos museus brasileiros. Nesse sentido, Tadeu Chiarelli lembra que a Bienal que existe hoje é apenas metade do projeto original, visto que quando foi criada ela se voltava para aquisição de obras através de seus prêmios para a coleção do Museu de Arte Moderna, ao qual estava vinculada. Hoje, o evento que dura apenas três meses e consome por volta de R$ 35 milhões, não possui qualquer política além do seu caráter passageiro. Emanoel se pergunta: qual a contribuição efetiva de um evento dessa magnitude? Os recursos destinados para aquisição de acervo do MAC/USP, assim como de outros museus brasileiros, são nulos. O Museu Afro Brasil, quando consegue comprar alguma obra, a compra por um preço simbólico. A importância de se ter um acervo surge como algo fundamental na própria mostra aberta ao público um dia antes do encontro: de todas as obras em exibição, a única que pertencia ao acervo do próprio Museu Afro Brasil era a obra Colosso (impressão sobre tela, s/d). Todas as outras pertencem ou à coleção particular do artista, como no caso das litografia ou à coleção de Malu Vilela, cujo empréstimo permitiu que a mostra ocorresse.

Tadeu propõe que antes de nos perguntar o que aconteceu com a Bienal de São Paulo, teríamos de nos perguntar o que ocorreu com a arte contemporânea como um todo. “Qual a função da Bienal? É receber o que, dentro dessa visão positivista, receber o lugar mais avançado da produção artística, e colocar lado a lado a produção brasileira com a produção internacional.” Para Tadeu, a arte não cessou de ampliar sua permissividade, criando artista que irão intervir diretamente na realidade, como o “artista antropólogo”, o “artista sociólogo”, o “artista botânico”. A Bienal, assim, acabaria por ampliar essas outras manifestações em detrimento de trabalhos produzidos dentro das tradições artísticas. Entretanto, me pergunto, qual o papel do mercado na atual situação e formulação de mostras de grande porte? Assim como temos que nos perguntar a respeito da arte, não podemos deixar de colocar em questão os vínculos desse “megaevento espetacular” com agenciamentos produzidos com outros interesses. Emanoel Araujo deu uma breve dica, em que relaciona curadores internacionais convidados nas últimas edições com a Cisneros Fontanals Art Foundation, por exemplo.

As políticas de aquisição acervo nulas nos museus brasileiros parecem ser uma consequência direta não só de entraves ou facilidades burocráticas, a depender dos regimes de direção das instituições, mas do próprio desinteresse em se manter obras em coleções museológicas por parte dos próprios colecionadores. Emanoel Araujo contou uma história significativa nesse sentido: quando era dirigente da Pinacoteca, uma senhora lhe fez uma visita com dois quadros de José Pancetti enrolados no lençol, desejando fazer uma doação. Um pouco receoso de que ela viesse a se arrepender, Emanoel ainda tentou alertar que aqueles quadros valeriam pelo menos U$$ 200 mil cada, mas a senhora estava irresoluta. Doação feita, um colecionador logo na sequência também marcou uma visita afirmando o profundo interesse nesses dois quadros, que já estava acompanhando e tentando comprar há alguns anos. De nada mais adiantava, pois os dois já pertenciam ao Estado de São Paulo. Quantos outros Pancetti’s não andam enrolados em lençóis, obviamente não transitando para dentro das coleções de museus, mas entre coleções privadas? Afinal, isso importa? Assim como João Câmara propõe que os críticos devam se preocupar em fazer um “antibiografia do artista”, talvez seja necessário também aos curadores e pesquisadores fazerem uma “antibiografia das coleções”, ou então um “anti-inventário das coleções”. Quem sabe assim nossos museus continuem a ter algum protagonismo futuro e não apenas coleções repletas de lacunas, dependentes da boa vontade de recursos e coleções privadas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[i] A eloquência de João Câmara. In.: AMARAL, Aracy. Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burguer (1961-1981). São Paulo: Nobel, 1983, p.235-8.

[ii] PERDROSA, Mário apud CHIARELLI, Tadeu. João Câmara e a “verdadeira” arte brasileira. ARTE!Brasileiros. 4/12/2019. In.: https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/joao-camara-e-a-verdadeira-arte-brasileira/