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Conferência: A literatura e a arte na cultura da imagem, de Beatriz Sarlo

Relator: Marcelo Dias de Carvalho

Breve biografia e trajetória intelectual

O ciclo “Arte, Etnicidade e Culturas Urbanas”, lança o “Projeto Fronteiras Braskem do Pensamento” em São Paulo, na Pinacoteca do Estado. Para a conferência de abertura “A literatura e a arte na cultura de imagem” foi convidada a crítica literária e ensaísta Beatriz Sarlo, professora de literatura na Universidade de Buenos Aires durante 20 anos, e professora convidada na Universidade de Maryland e na Universidade da Califórnia, Berkeley.

Considerada uma das principais intelectuais da Argentina da atualidade, Beatriz Sarlo além de atuar como crítica literária, tem refletido cada vez mais sobre diversos aspectos da cultura e sociedade contemporânea, sobretudo da realidade argentina. Seus ensaios têm ultrapassado fronteiras disciplinares e acadêmicas, que vão da literatura à sociologia, da filosofia ao urbanismo, dos meios de comunicação à política. Numa perspectiva crítica e polêmica, ou como ela mesmo prefere definir, “a partir de um pensamento radical e independente”, tem produzido importantes análises sobre os fenômenos artísticos, estéticos, sociais e políticos da contemporaneidade argentina.

Na década de 70, durante a ditadura militar argentina, fundou com outros intelectuais do país, a Revista Punto de Vista, periódico de resistência publicado até 2008, voltado para a reflexão de aspectos culturais e políticos, a partir de uma proposta “marginal, de oposição, alternativa e longe de qualquer instituição”, segundo a própria autora.

A sua produção intelectual, embora tenha a sociedade argentina como objeto de suas análises, é de extrema importância para uma visão mais crítica do contexto contemporâneo de outros países latino americanos, como é o caso do Brasil, onde há cada vez mais interesse pelo conjunto de sua obra. Desde a segunda metade da década de 90, alguns de seus livros vem sendo traduzidos e publicados em português pelas principais editoras brasileiras: “Paisagens Imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação” (Edusp, 1997), “Cenas da Vida Pós-Moderna” (UFRJ, 1997), “A paixão e a exceção” (Cia. das Letras, 2005), “Tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura” (José Olympio, 2005), “Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva” (Cia. das Letras, 2007) e, recentemente, “Jorge Luis Borges: um escritor na periferia” (2008, Iluminuras).

A literatura e a arte na cultura da imagem

A preponderância da cultura na contemporaneidade

Em sua conferência “A literatura e a arte na cultura da imagem”, Beatriz Sarlo fez uso de recursos analíticos recorrentes em sua produção ensaística: o da reflexão crítica em torno dos fenômenos socioculturais; uma exaustiva e sofisticada análise das várias tramas que formam a complexa urdidura do imaginário coletivo contemporâneo, com o propósito de encontrar, mais do que respostas, novas indagações sobre os fenômenos da atualidade. Há uma recusa voluntária em desenvolver conclusões, em nome de uma profunda revisão crítica do passado, produzida no presente, para que novas hipóteses sobre o futuro possam ser traçadas.

A partir desta perspectiva, Beatriz Sarlo, logo no início de sua conferência, nos chama a atenção sobre o impacto e a preponderância da cultura nas sociedades contemporâneas. A teórica argentina revela que há uma “inflação cultural” em nosso tempo, ao observar que em vários países, os cadernos de cultura produzidos pelos jornais diários impressos, concorrem ao lado de cadernos esportivos e cadernos de política, por um público. Uma sociedade, segundo ela, “ávida por novidade cultural”, fazendo da cultura um “objeto de uma celebração”.

A ensaísta observa ainda, que por outro lado, vivemos em uma época em que há também um pensamento de profundo pessimismo em torno da arte, em que se pergunta como a grande literatura e a música contemporânea, expressões artísticas que não fazem necessariamente uso da imagem, podem competir com o mundo da imagem. Tal abordagem, segundo ela, tende a tratar o mundo da imagem como uma grande novidade.

O mundo da imagem não é a novidade

Para a teórica argentina, devemos reconhecer que o mundo da imagem não é a grande novidade, como costuma se pensar. Durante séculos, houve uma predominância da iconografia na cultura Ocidental. É somente no final do século XIX na Europa, e início do XX na América, que a cultura da imagem é substituída pela primazia das letras.

A passagem da hegemonia da imagem para a das letras ocorre, sobretudo, com a popularização da linguagem escrita e da imprensa, por meio da criação dos jornais populares, destinados às camadas mais pobres das sociedades, momento em que os jornais impressos são produzidos para operários e camponeses. Desse modo, a grande novidade de fato, foi a hegemonia das letras, suscitada pela imprensa impressa, produzida e destinada às massas.

Nota-se, portanto, que é a partir de uma revisão histórica e crítica que Beatriz Sarlo passa a refletir sobre a preponderância da imagem na contemporaneidade. Para ela, a questão que deveria ser discutida hoje, como a grande novidade, seria a de “como funciona a imagem de maneira hegemônica e como se organizam os outros discursos na sociedade contemporânea?”. (grifo meu).

Os meios de comunicação audiovisuais e a hegemonia das imagens

Beatriz Sarlo assinala que a grande novidade do século XX foi a invenção e a popularização dos meios de comunicação audiovisuais, sobretudo com a TV, quando se inaugura a simultaneidade do som com a imagem, que passa então a não só a fazer parte mas a reorganizar o consumo cultural das massas.

A autora destaca que antes da imagem é o som, que por meio do rádio, traz de fato um grande acontecimento cultural nas primeiras décadas do século XX. Na seqüência, surge uma outra novidade - ou como ela mesma afirma um “milagre tecnológico” – momento em que o rádio passa a fazer transmissões ao vivo, entre os anos de 1928 e 1935, dependendo do país. A simultaneidade, ou seja, a transmissão no presente de uma determinada informação sonora, para a recepção em vários aparelhos, no mesmo presente. Em outras palavras, quando a transmissão radiofônica ao vivo passa a ser incorporada na vida cotidiana, é que se inicia uma grande mudança cultural, afetando inclusive nossa concepção de tempo.

Em seguida, uma outra reconfiguração cultural se consolida, com a invenção e posterior popularização da TV. Desta vez, som e imagem em movimento passam a ser veiculados de modo massivo, sobretudo a partir dos anos de 1940. Como o rádio, a TV introduz, algumas décadas depois, a possibilidade de transmissão ao vivo, inaugurando uma linguagem muito mais complexa, em que a simultaneidade se dá do presente para o presente, e também, do som com a imagem, o que exige a construção de uma sintaxe própria. Em geral, a transmissão audiovisual ao vivo, permite articular distintos pontos de vistas, captados por diferentes câmeras, para serem editadas no mesmo “ao vivo”, por um diretor de TV que, por sua vez , tem total domínio sobre a sintaxe televisa, com o poder de transmitir uma mensagem – que embora seja feita a partir de um determinado presente e realidade – retorna reconfigurada para o espectador, sem que o mesmo se dê conta do ponto de vista adotado pelo transmissor.

Segundo a ensaísta argentina, um novo e decisivo impacto cultural surge com a transmissão ao vivo. É a partir da massificação dos meios de comunicação que as dinâmicas culturais contemporâneas se reconfiguram. Para ela, o impacto da transmissão ao vivo permanece na atualidade, como é o caso da repercussão dos programas de reality-shows (Big Brother e outros), em que o espectador espera alguma ação impactante dos participantes, durante a veiculação do programa ao vivo. Trata-se do mesmo impacto esperado das coberturas em tempo real, das partidas esportivas, o que justifica, por exemplo, o sucesso das transmissões dos jogos de futebol nos países latino-americanos.

A arte e os meios de comunicação audiovisuais

Para a teórica argentina, não é só o impacto, mas também a hegemonia da transmissão ao vivo, através dos meios de comunicação audiovisuais, que inaugura uma problemática para a questão da arte, sobretudo no que se refere a produção artística feita e consumida por frações minoritárias da sociedade. Beatriz Sarlo, observa que embora seja possível reconhecer um certo impacto das novas tecnologias na produção artística, tal fenômeno permite apenas saber, por meio da Internet, o que está sendo produzido neste exato momento em artes visuais, vídeo e literatura em qualquer país; trata-se, segundo a teórica argentina, de um certo, mas não total, encontro da arte com as novas tecnologias. Neste sentido, só há uma problemática que deve ser considerada, a de que não se pode competir com a aceleração da simultaneidade da transmissão ao vivo e dos conteúdos audiovisuais, com a produção e fruição artística.

O consumo da arte e a Internet

Há outras questões que o mundo audiovisual apresenta, uma delas é a prevalência da “desigualdade do acesso aos meios”. Embora algumas correntes contemporâneas defendam o aspecto democrático da Internet, com o argumento de que tudo está disponível na rede, dada a grande variedade de produtos culturais, como música e vídeo, que podem ser livremente baixados, através do formato Mp3 (música) e do portal YouTube (vídeo), Beatriz Sarlo ressalta, portanto, que para fazer o download destes conteúdos, é necessário dispor de um computador com acesso a rede banda larga, o que não é o caso da maioria das pessoas, sobretudo na América Latina, onde poucas têm computadores em suas casas, menos ainda, são as que têm computadores com acesso a Internet e, são mais raras ainda, as que têm em suas casas, computadores pessoais, com acesso a Internet banda larga.

Outro aspecto problemático da Internet, destacado por Beatriz Sarlo, refere-se ao capital cultural do usuário; não há “mapas” para se navegar na rede. É um meio que exige “destreza cultural” para se buscar as informações necessárias para que se cumpram determinados objetivos ou finalidades de informação. Sem capital cultural, não há buscadores inteligentes capazes de trazer à tona informações que de fato sirvam aos usuários. Para este aspecto, a teórica argentina destaca alguns dados interessantes. Segundo ela, a população acessa mais os sites de seus próprios países, o que, para Beatriz Sarlo, revela a predominância do local sobre o global, ao contrário do que afirmam algumas correntes teóricas contemporâneas, entusiastas da globalização. As páginas culturais mais acessadas que poderiam ser chamadas de “globais” de cultura são as dos astros de música e cinema, como é o caso dos sites da Madonna e do Rolling Stones - notadamente astros da indústria cultural - suas páginas recebem diariamente, milhares de visitas de várias partes do mundo.

A autora argentina, embora reconheça a importância da Internet como ferramenta de busca por informações, ressalta que “é preciso ser culto”, “ser um pesquisador nato” e “conhecedor de várias línguas” para procurar e acessar informações pertinentes na rede. Segundo ela, neste sentido, a Enciclopédia Britânia (enciclopédia impressa) mostra-se muito mais confiável do que a Wikipédia (enciclopédia livre virtual). Para ela, o que está em jogo, e o que não se pode ignorar, é de que é preciso um alto capital simbólico para acessar informações na Internet.

Autonomia cultural e Internet

Outro aspecto que Beatriz Sarlo contradiz, diz respeito à noção corrente, que o mundo contemporâneo permite a criação de nichos culturais, isto é, as pessoas constroem seus próprios “menus de consumos culturais”, com autonomia.

No entanto, para a autora, sempre existiram pessoas com alto capital simbólico que sempre criaram seus próprios “menus culturais”. É uma ilusão, segundo ela, acreditar que as novas tecnologias como TV a cabo, as lojas de música e portais de vídeos na Internet, permitam liberdade de consumo cultural, pois tal liberdade de movimento, além de restrita, é ditada pelo mercado. Para isso, basta ver as listas das lojas virtuais de música em formato Mp3, e perceber como variam, a cada três ou quatro meses, as listas das músicas mais baixadas na Internet. Nota-se, portando, o quanto o mercado ainda dita a concentração do consumo cultural, já que há uma enorme discrepância entre a quantidade de downloads de canções de ídolos globais como Madonna, em relação às bandas alternativas do Brasil, por exemplo.

Para Beatriz Sarlo, a liberdade não se encontra nas propostas do mercado, mas no capital simbólico de cada individuo adquirido e acumulado desde a infância e durante sua formação escolar, para que haja, de fato, possibilidades de escolha, antes mesmo da Internet e do Mp3.

Não é a liberdade da abundância, proposta pelo mercado, que permite tal autonomia, como se a Internet em si, resolvesse a questão do acesso à arte. Os nichos sempre existiram, grupos de indivíduos com sensibilidades tidas como “mais elitistas, “de esquerda”. “alternativa”, etc, o que significa fazer parte de uma família social, ou seja, fazer parte de um nicho que, para Beatriz Sarlo, parece um aspecto fundamental,e anterior à Internet.

O lugar da literatura e da música na contemporaneidade

Para discutir o lugar da música e da literatura no atual contexto cultural, Beatriz Sarlo parte de duas indagações: “qual o lugar da literatura e da arte na contemporaneidade”? e “como fica a cultura dos cultos nesta nova reconfiguração do mundo?” (grifo meu).

Para ela, no universo da alta cultura há também uma série de nichos, onde se encontra frações mínimas de públicos que têm sobrevivido devido a sua maior capacidade de expressão cultural; como há, também, esferas de prestígio que rodeiam a produção contemporânea.

No entanto, a teórica argentina aponta um paradoxo na atualidade: o público culto, em geral, não tem acompanhado a produção contemporânea. O consumo cultural, no que se refere a literatura, tem se restringido às obras clássicas, sobretudo as do século XIX, de autores canônicos como Victor Hugo, Balzac, Tolstói, etc; o mesmo ocorre com a música erudita, em que há uma predominância, em se deter às obras dos compositores consagrados. Nota-se, por um lado, que esta fração culta, em sua maioria, costuma apostar no seguro, isto é, no consumo de autores e compositores tidos como clássicos e consagrados, e por outro lado, se recusa a seguir o ritmo do seu presente.

No que se refere especificamente à música contemporânea, as vanguardas estéticas produziram um certo tipo de fratura, entre artistas e consumidores. Tanto os artistas como o público das orquestras contemporâneas comportam-se como um “clube”, onde todos se conhecem e se relacionam entre si. Para Beatriz Sarlo, este aspecto revela o grau de exigência do sentido estético, que pode variar muito dependendo de onde se está, isto é, há nichos diferenciados, mesmo entre os públicos mais cultos.

No caso da literatura, a teórica argentina destaca algumas especificidades, pois a literatura ainda permite a existência material em diferentes nichos de mercado, pois ainda é necessário menos dinheiro para se produzir um livro, que um filme ou uma orquestra de câmara. A literatura é ainda uma arte que pode ser produzida de forma independente das expectativas do mercado, dado o seu custo.

Na atualidade, o mercado editorial é muito estratificado; é possível consumir uma grande diversidade de gêneros literários, mantidas pelas grandes empresas editoriais e pelas pequenas editoras especializadas. Trata-se de uma situação que permite a publicação de diferentes gêneros destinada a diferentes públicos (auto-ajuda, autores jovens, poesia etc.). No entanto, a autora observa que quando se observa o conjunto desses gêneros, pode resultar em uma má compreensão sobre o público leitor, sobretudo ao considerar que nem todos os livros pertencem ao mesmo universo cultural dos diferentes tipos de públicos, ou como prefere a autora, “do mesmo clube”. Com base na realidade argentina, a autora ressalta que a tiragem de alguns títulos, varia entre 800 e 1.200 exemplares, o que evidencia a existência de pequenos nichos no campo da literatura.

O boom da literatura latino-americana

No caso da literatura, Beatriz Sarlo, destaca que é possível encontrar algumas exceções, como ocorreu no final dos anos de 1960 e inicio dos anos de 1970, com o boom da literatura latino-americana. Trata-se de exceções, que devem ser consideradas, pois revelam alguns aspectos que merecem ser discutidos. No que diz respeito à literatura latino-americana, apenas alguns autores como Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e José Donoso destacaram-se, justamente por serem os mais vendidos.

Para a autora, não se pode afirmar que não seja uma boa literatura, a reflexão que se impõe é “que tipo de literatura foi produzida por estes autores? por que venderam tanto?” (grifo meu), ao considerar que outros grandes autores como Juan Carlos Onetti e Guimarães Rosa, não alcançaram na época a mesma popularidade; ao contrário, circularam entre um público muito restrito e foram praticamente esquecidos depois de mortos. Neste sentido, Beatriz Sarlo lança outra indagação pertinente, o que tem em comum a produção da tetralogia formada por Fuentes, García-Marquez, Vargas Llosa e Donoso?

Para ela, o êxito desta literatura pode ser justificado, porque apesar dos quatro autores conhecerem profundamente a avançada produção literária de todo o século XX, escreveram romances que, de fato, não desencadearam grandes rupturas técnicas, mantendo um estilo de “totalização” em suas obras, privilegiando, no enredo, a busca de um protagonista de sua existência e identidade latino-americana.

Sob o ponto de vista da crítica literária, a autora argentina situa o sucesso destes quatro autores latino-americanos graças ao crítico uruguaio Ángel Rama, o primeiro a apresentar a produção destes escritores em conjunto, com intervenções críticas consideradas muito populares, provocando grande repercussão e, conseqüentemente, conquistando um público mais amplo. Basicamente, o aspecto que aproxima a produção destes quatro escritores é o tema da constituição do mundo.

Para Beatriz Sarlo, na mesma época, outro escritor argentino, Juan José Saer, - considerado, por ela, como um dos maiores autores da segunda metade do século XX - já estava escrevendo seus primeiros romances e trouxe de fato uma grande inovação, com profundas e interessantes rupturas técnicas, mas não obteve o mesmo êxito de vendas.

Na produção literária da atualidade, a téorica observa que na Argentina, ainda tem prevalecido o gosto pelo “romance totalizante,” o que justifica o sucesso de vendas das obras do escritor húngaro Sándor Márai. Atualmente seus títulos estão entre os mais vendidos no país. Embora seja um bom escritor, seu estilo também totaliza o mundo, pois constrói personagens representativos de diferentes mundos e os fazatravessar, em um diálogo dramático, para que diferentes pontos sejam totalizados. Trata-se de um autor que lembra outros grandes escritores do passado, isto é, um autor que dá continuidade a uma tradição literária já consolidada.

A autora destaca que depois das vanguardas literárias, mais precisamente depois de Marcel Proust e Franz Kafka, do mesmo modo que ocorreu com a música erudita, inicia-se um processo de separação progressiva, entre a alta literatura e a literatura do grande público. No cinema, o mesmo vai ocorrer com as vanguardas da década de 1960, em que o filme de arte e o filme comercial, são vistos por nichos distintos, ou seja, um mesmo filme, desde então, não reúne mais diferentes públicos, como ocorria até então.

Consequentemente, a autora reconhece um fenômeno que é lamentável de se observar - sob um ponto de vista valorativo e até mesmo ideológico - que há, por um lado, pouca gente especialmente preparada para certo tipo de consumo cultural; e por outro, grande parte da população não tem acesso, tampouco a oportunidade cultural e menos ainda, capital simbólico necessário para usufruir a produção artística de todos os tempos.

Em sua conclusão, Beatriz Sarlo fez questão de ressaltar que uma possível solução para esta questão não deve vir do mundo da arte, mas da sociedade e da política, pois não há nada que os próprios artistas possam fazer. Os problemas relacionados ao consumo cultural devem ser solucionados por meio das instituições escolares e universitárias, que tem por missão primordial a formação intelectual e simbólica, onde é possível, de fato, distribuir de forma mais igualitária o capital simbólico e não através de uma ilusória liberdade proposta pela Internet..

Sobre a perspectiva da ensaísta quanto à importância das instituições como a escola e a universidade na distribuição do capital simbólico, vale destacar seu posicionamento crítico sobre este aspecto, recorrente na maioria dos seus ensaios:

“A aquisição de uma cultura comum é um ideal democrático que pode ser reinventado através do pluralismo, e este não deveria ser desprezado. Ele supõe uma série de processos de corte e não simplesmente de continuidade do cotidiano. Aprende-se o que não se sabe, os textos literários, os discursos históricos e científicos, os relatos de culturas populares e orais, as obras de arte cultas e folclore.”

Ao final de sua conferência, Beatriz Sarlo discutiu alguns fenômenos da cultura contemporânea levantadas pelo público do evento, como feiras literárias, museus de arte, resistência cultural, o embate entre Estudos Literários e Estudos Culturais, o impacto da Internet na produção literária e o uso da arte em projetos sociais.

Feiras Literárias

Para Beatriz Sarlo, os fenômenos como as Bienais do Livro e as Feiras Literárias, exercem pouca influência sobre o consumo literário. Para ela, as feiras estão mais próximas dos festivais de cinema independente, pois são os prêmios, como nos festivais de cinema, que conseguem algum impacto no público, ou seja, não é a crítica literária que interfere, positiva ou negativamente, na vendagem dos livros.

A universidade, mais do que as feiras, costumam exercer alguma influência no acesso a uma produção literária mais diversificada. Segundo ela, são os alunos universitários, sobretudo os que cursam Letras, na posição de professores do Ensino Médio, que conseguem difundir, entre seus alunos, outros títulos, que não os consagrados pelo mercado editorial.

Museus de Arte

A posição da teórica argentina frente aos museus de arte é declaradamente crítica, para ela são instituições de segurança e conforto, não oferecem qualquer risco ou experimentação, costumam servir mais ao turismo, como “logotipos das cidades”, convertidos em “parques temáticos de arte”, como é o caso do Museu Guggenheim de Bilbao, onde se visita o edifício e não a coleção do museu; ou como prefere a téorica argentina “onde se visita não o conteúdo, mas o continente.”

Resistência Cultural

Indagada sobre a possibilidade do consumo da alta cultura servir como uma resistência à cultura de massa, a autora foi categórica ao afirmar que não é por meio do consumo que se estabelece uma resistência cultural, mas somente na produção artística, ou seja, são os próprios artistas e obras que propõem outras possibilidades de experiência estética. Não podemos, segundo ela, impor consumos culturais, que por si só não traduzem uma resistência. A escola, por exemplo, pode propor, a partir de uma pluralidade de possibilidades, as mais variadas alternativas.

Estudos Literários x Estudos Culturais

Beatriz Sarlo mantém uma posição notadamente crítica em relação à matriz norte americana dos Estudos Culturais, surgida na década de 80, em que se impõe um “relativismo valorativo” em nome do politicamente correto. Para a autora, tal abordagem de estudo, se dá predominantemente sobre os temas e o modo como as minorias (raciais, de gênero, etc.) são tratadas na literatura, principalmente nos estudos comparativos, em que aspectos estéticos das obras literárias costumam ser negligenciados, conseqüentemente tende a não se levar em conta a distinção entre a cultura do mercado e a cultura letrada. A radicalidade relativista dos Estudos Culturais é visto pela autora argentina como algo nocivo e já superado.

Internet e Produção Literária

Segundo Beatriz Sarlo, as tecnologias digitais ou mesmo a própria Internet, não produzem qualquer ruptura na produção literária. Para ela, um autor pode escrever o mesmo romance com lápis e papel, como no Office Word, pois o meio em si, não permite qualquer ruptura. O livro impresso ainda é uma tecnologia muito sofisticada, não atingiu sua obsolescência com as novas tecnologias. A inovação tecnológica, para assim ser considerada, deve afetar formal e esteticamente a produção artística, tal aspecto, segundo a teórica, ainda não atingiu a literatura. Assim, segundo ela, não houve qualquer transformação estética na produção literária contemporânea com as novas tecnologias.

Internet e Formação Escolar

Embora concorde que a Internet possa assumir grande importância na formação escolar, a crítica argentina não deixa de nos alertar que assim como no Brasil, na Argentina a maioria das escolas públicas não contam com equipamentos suficientes que possam ser utilizados por todos os alunos. São raras as escolas que têm computadores e, mais raras ainda, as escolas que possuem e permitem aos alunos o acesso à Internet para as suas atividades escolares. Outro aspecto desolador, levantado pela autora sobre o contexto argentino, que também se aplica ao Brasil, é o baixo capital simbólico dos professores das escolas públicas e a inabilidade dos mesmos, para formular pesquisas básicas nos buscadores da rede. Neste sentido, a Internet não passa de uma utopia na formação escolar.

Internet e Jornalismo

Para Beatriz Sarlo, a grande transformação provocada pela Internet pode ser sentida no campo jornalístico. Com o acesso a rede, jornalistas têm criado blogs para publicarem informações importantes e de muita qualidade, informações que não podem ser publicadas em jornais institucionais, por vários motivos (linha editorial, posição ideológica dos editoriais, etc.)

O uso da arte em projetos sociais

Ao ser indagada sobre qual sua posição em relação ao uso da arte em projetos sociais, como o Projeto Eloisa Cartonera - pequena editora que publica livros a partir da reciclagem do papelão recolhido pelos catadores de papel de Buenos Aires - Beatriz Sarlo foi enfática em afirmar que sob o ponto de vista empresarial, trata-se de um empreendimento fantástico, mas partindo de uma perspectiva estética, sobretudo gráfica, revela-se um “brutalismo primitivo”, ou seja, não traz qualquer contribuição artística.

Marcelo Dias de Carvalho

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Beatriz Sarlo, editora da revista Punto de Vista, encerrou a edição da revista em 2008, depois de 90 números publicados. Para saber suas motivações ver: SARLO, Beatriz. Final. Punto de Vista, n. 90. disponível na versão on-line de Punto de Vista: http://www.bazaramericano.com/ultnum/revistas/nro_90_sarlo_final.html

2 Para esta discussão, Beatriz Sarlo recupera o texto “As estruturas estéticas da transmissão direta” de Umberto Eco. Ver em: ECO, Umberto. Estruturas estéticas da transmissão direta. In: ______. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 180-191

Ver: SARLO, Beatriz. A escola em crise. In: ______. Tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura. São Paulo: José Olympio, 2005. p. 101.

Para mais informações sobre o Projeto Eloisa Cartonera. Ver site do Projeto, disponível em: http://www.eloisacartonera.com.ar/eloisa/que.html.

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