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Pesquisa Nomádica e Envolvimento do Público, Gabriel Menotti

relato do painel 4

Para os que tiverem o interesse despertado pelo texto, sugiro assistir a gravação disponível aqui no Fórum Permanente, que tem o painel registrado na íntegra. O vídeo pode facilitar a compreensão das questões levantadas por esse relato, que adotou um viés mais crítico do que descritivo. Além disso, o vídeo ainda inclui apresentações da artista holandesa Wapke Feenstra e dos projetos britânicos FACT (Foundation for Art and Creative Technology), Mixed Reality Laboratory e Active Ingredient, que escaparam ao direcionamento temático adotado.


O último painel do Paralelo buscou especializar a discussão do binômio arte e ciência colocando em questão os conceitos de lugar e público. Ele começou promissor, com a pauta levantada por Gisela Domschke, convidada de supetão para abrir o debate. Gisela falou do Cactus Project[1],  da artista Laura Cinti[2],  um cacto com cabelo humano criado por meio de engenharia genética – obra que posteriormente se revelou uma farsa. Segundo Gisela, o que tornou a situação especialmente problemática foi que o projeto constituía parte da pesquisa de Laura para o Mestrado, em 2004. Enquanto obra de arte, por mais ficcional que seja, a planta cabeluda não deixa de ser instigante. Pelo contrário, talvez se torne uma criação ainda mais válida. Mas o que entra em questão é o diploma de Laura, não sua qualidade como artista. Então, o que separa esse trabalho conceitual de um fracasso acadêmico? Parece haver uma incompatibilidade entre o exercício poético traiçoeiro e o rigor que mantêm a Academia coesa, talvez porque sejam ambos arbitrários. Se é assim, por que interessaria ao artista conquistar o reconhecimento de uma Instituição construída sobre valores que sua própria prática relativiza? Aí entram debates cruciais sobre fato e ficção, e sobre a distância inevitável entre a ética do cientista e a permissividade do artista – ambas necessárias, cada qual para o seu exercício particular.

Cabe ressaltar que não é fácil encontrar sites que ponham em questão o trabalho de Laura. Com uma busca rápida na Internet, somente o Museum of Hoaxes parece ter alguma coisa a apontar[3].  Mesmo numa entrevista de Laura ao blog We-Make-Money-Not-Art, de 2007, a veracidade do Cactus Project não é questionada[4].  Parece-me que isso torna tudo ainda mais problemático, de uma forma ou de outra. O sistema de autorização dos circuitos de arte é praticamente o oposto do constante escrutínio sobre o trabalho do pesquisador ou do engenheiro. Sob o regime científico contemporâneo, o que são obras de arte não passariam de hipóteses ou provas superficiais de conceito, a serem testadas à exaustão. No entanto, são elas que são expostas, apreciadas e negociadas. E não esqueçamos que a arte possui muito mais publicidade lato sensu que a ciência. Essa pode ser uma combinação ameaçadora, considerando que as invenções do artista podem causar efeitos tão poderosos quanto as do cientista. Talvez a ciência use a arte para abrir exceções e contornar sua própria ética. Não seria hora de colocarmos a prova esse outro efeito de realidade, pelo bem da própria arte e em defesa da parábola?

Nesse sentido, convido os leitores a ponderar sobre o novo trabalho de Eduardo Kac, Natural History of the Enigma, que possui estrutura muito semelhante ao de Laura[5].  Como tais obras contribuem ao desenvolvimento da pesquisa genética e à real humanização das questões que direcionam tal pesquisa? Se elas se assumissem como ficção científica, será que ainda seriam interessantes? Ou será que, por outro lado, poderiam ir além em sua própria aventura? Pergunto pois nada parece justificar a escultura e a série de litografias que Kac produziu em cima de sua petúnia transgênica – nada além da histórica fetichização que ainda direciona o mundo da arte. Esses objetos contradizem qualquer rigor científico por trás do projeto – o mesmo rigor que o torna poeticamente relevante. Seu resultado final são metáforas, produto de uma técnica que não possui qualquer conexão direta com a pesquisa que as justifica, alienando essa pesquisa, e segmentando ciência (de ponta) e arte (caríssima) da maneira mais ingênua. O que podemos tirar dessa contradição? Talvez estejamos simplesmente acompanhando a consolidação das plantas alteradas com genes humanos como um novo gênero artístico.

Sem ter a noção dessa distância metodológica entre arte e ciência, e dos paradoxos que ela provoca, não é possível aproximar esses campos de maneira crítica, talvez nem sequer frutífera. O artista aparece como um agente que simplesmente dá a ver os efeitos de uma pesquisa na qual ele não está engajado. Nesse caso, seu papel não é o de um mero acessório pedagógico ou mercadológico? Um funcionário de divulgação? Ao focar esse nível superficial de envolvimento do público, o painel reuniu projetos de forma pouco empolgante.

Essa superficialidade também pode ser perigosa, como num caso apresentado pelo próprio Tapio Makela, sem que ele se desse conta. Tapio abriu oficialmente o painel com uma reprise da palestra que havia dado no sábado anterior, na distante Helsinki[6].  Evocando Guy Debord e Donna Haraway, ele falou da urgência em se responsabilizar pelo ambiente – de ser capaz de responder sobre e por ele. Para tanto, disse ser necessário que a informação ambiental seja apresentada de forma não só acessível, como também “esteticamente radical” – contrariando o que ele chamou de “pandaficação” da natureza. Nesse ponto entraria o trabalho do artista.

Como exemplo bem-sucedido dessa estética comovente, Tapio citou a obra Nuage Vert, um poderoso canhão de laser verde que desenha o contorno da fumaça emitida por uma empresa de energia de Helsinki[7].  O brilho da projeção é proporcional ao consumo de eletricidade dos moradores – doravante, a obra ilustra a poluição da fábrica em relação ao desperdício de energia. Assim, segundo a lógica de Tapio, Nuage Vert possibilitaria uma maior compreensão do ambiente, da infraestrutura da cidade e da forma tudo isso responde às mais simples ações do homem. O problema é que, do mesmo modo os críticos de arte não se importam se o trabalho de Laura Cinti é real ou não, o público, hipnotizado pela espetacular silhueta na fumaça, sequer chega a perguntar quanta energia a própria obra consome. Se o artista não se responsabiliza sequer por seus próprios métodos, como podemos pretender que a arte nos leve a uma responsabilidade geral sobre o ambiente?

Existe aí uma crença datada no poder da informação e na capacidade do artista de comunicar, como se por si só isso resolvesse algo. É o que percebemos também na fala de James Wallbank, do Access Space Network[8]. O Access Space é um tipo de rede de telecentros, criada em prol da regeneração artística da região de Sheffield, no Reino Unido. Esses laboratórios de mídia são espaços abertos a qualquer cidadão que queira fazer sua própria pesquisa auto-dirigida. O cerne do projeto é um conjunto de metodologias para a gestão e o uso de tecnologias recicladas e de baixo custo. Em seu depoimento, James expôs a dificuldade de criar um público e propagar essas técnicas, lamentando que, em nove anos de existência, somente oito unidades do Access Space tivessem se constituído. Para ele, isso parecia constituir um certo fracasso, ainda mais considerando o resultado de um equivalente brasileiro: os Pontos de Cultura[9].  O projeto do MINC, surgido depois do Access Space, já possui pelo menos dez vezes mais unidades funcionais que sua contraparte britânica. Da forma como o caso foi colocado, a deficiência do Access Space parecia ser simplesmente de comunicação. Encontrando um modo eficaz de disseminar sua ideologia e técnicas, a rede entraria em pleno funcionamento e cresceria de forma exponencial. Humildemente, James requisitava a assistência dos brasileiros para a solução desse problema.

Mas ora, vista por outro ângulo, a eficácia dos Pontos de Cultura aponta justamente para a insuficiência da comunicação e a importância de outras estruturas na constituição dessas realidades. Como apontou Felipe Fonseca ao final do painel, o sucesso da idéia de metarreciclagem[10] é relativo a situação brasileira, e superficial se comparado à penetração de outros projetos semelhantes (como o próprio Access Space). Por mais autônomos que se pretendam, os Pontos de Cultura são o resultado de políticas estratégicas do próprio governo federal, e não o efeito espontâneo de uma sociedade civil consciente e organizada.

Afinal, o que pode essa tal consciência? É a pergunta que me provocou a apresentação de Rejane Spitz. Como todos os outros participantes da mesa, Rejane parecia motivada por uma inquietação sincera: o interesse em ligar a alta ciência aos desafios diários da população, relacionando o conhecimento gerado localmente com pesquisas mais amplas. Nesse sentido, ela relatou a experiência inicial do projeto PIMAR, uma parceria do Departamento de Geografia da PUC-Rio com a Secretaria do Meio Ambiente e o Instituto Estadual de Ambiente do Rio de Janeiro[11].  O PIMAR tem por objetivo gerar imagens analíticas de áreas reflorestadas na região urbana do Rio de Janeiro, de modo a possibilitar o mapeamento e monitoramento dessas áreas. Rejane está diretamente envolvida com o braço online do projeto, que envolve gente ligada à área cultural/artística e líderes comunitários das áreas monitoradas, de forma a criar dialogo entre os resultados da pesquisa e as comunidades locais (quatro das principais favelas do Rio de Janeiro).

Mas ora, de que adianta a população saber que um desmatamento não é de 800 hectares, mas de quatro campos de futebol? A possibilidade de abstrair essa quantidade reflete numa real compreensão do que está acontecendo? E, mais importante, essa compreensão abre espaço para qualquer forma de reação eficaz, senão pra culpa, pro desespero e pra Hora do Planeta?[12] Como a própria Rejane coloca, a favela causa desequilíbrio ambiental, mas ela é inevitável – principalmente para seus moradores. Essa configuração urbana não pode ser contornada com simples separação de lixo. Ela é o resultado de questões sociais, econômicas e políticas muito mais complexas, além de qualquer indivíduo, artista ou pesquisador.

Eu olho para o Breathing Earth[13],  um site realmente impressionante mencionado por Rejane, e não sei o que fazer. Mais do que nunca, me parece que uma real e profunda “tomada de consciência” implicaria em se posicionar contra tudo que está aí. Nesse sentido, a recusa quase romântica do carro, da internet e do próprio sistema de arte é menos ingênua do que a crença que podemos usá-los para superar as crises em que eles estão imersos – e mesmo essa recusa não seria muito eficaz, já que outros sete bilhões de pessoas estariam fazendo o contrário. Agora, o que aconteceria se todos os sete bilhões parassem?

Talvez no centro de todas essas questões esteja uma incompreensão elementar do que é público – algo que não pode ser separado de certa prática (como a arte ou a ciência) ou das Instituições (como esse evento), portanto algo impossível de se envolver ou formar. O público está lá, ativamente, mesmo que você não diga que todos os participantes do painel são “mediadores” e não os deixe lançar perguntas à platéia. O público está lá, mesmo numa programação fechada que se dá em um suposto open space. O que o indivíduo pode fazer a respeito?

O discurso do VJ Spetto, que aconteceu após o painel, recolocou em foco o artista no meio disso tudo. A princípio, ele parecia comprometido como provocador agente duplo. Infelizmente, seu freestyling não alcançou a mesma qualidade de seus remixes, e produziu pouco mais do que uma incoerência superficial. Ele próprio tratou de esgotar as contradições que expôs com uma overdose de irreverência – com direito a imagens de “Cher Guevara” e outros trocadilhos audiovisuais. Ao final se rendeu, apologeticamente, assumindo que sua função é entretenimento – isto é, manter entre, e não levar além. Se acreditarmos que o mundo será deixado às baratas e tudo o que podemos fazer é “bullshit”, como o próprio Spetto diz, então talvez só o que reste seja mesmo soltar a batida e aplicar uns filtros estroboscópicos. Nesse caso, o artista fica mesmo muito bem no papel de bobo-da-corte.

 

[1] http://www.thecactusproject.com/
[2] http://c-lab.co.uk/default.aspx?id=15&authorid=1
[3] http://www.museumofhoaxes.com/hoax/weblog/comments/580/
[4] http://www.we-make-money-not-art.com/archives/2007/04/alignleft-you-b.php
[5] http://www.ekac.org/nat.hist.enig.html
[6] http://2009.pixelache.ac/
[7] http://www.pixelache.ac/nuage-blog/
[8] http://www.access-space.org/
[9] http://www.cultura.gov.br/programas_e_acoes/programa_cultura_viva/pontos_de_cultura/index.php
[10] http://www.metareciclagem.org/
[11] http://www.nima.puc-rio.br/sobre_nima/projetos/pimar/index.php
[12] http://www.wwf.org.br/informacoes/horadoplaneta/
[13] http://www.breathingearth.net/

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Número 2