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Curadoria: exposição, educação e público

Relato por Beto Shwafaty

 

Esta mesa de discussão se iniciou com a fala de Maria Marta Recca, do Museu de La Plata [1], que apresentou reflexões sobre a construção de novos modelos crítico-reflexivos acerca das representações culturais em museus etnográficos tradicionais. Marta abordou o desafio de alterar as bases de funcionamento e formas de atuação desses museus que, por terem muitas vezes mais de um século de existência, foram formados segundo parâmetros cientificistas do século XIX [2]. Ela afirmou que nestes encontramos uma prevalência sobre o objeto isolado, uma visão estática das culturas e um fortalecimento da diferença para fins de catalogação e organização que são construídos, em certa medida, alheios às realidades originárias dos objetos.

Fotografias de esqueletos de ‘antigos indígenas’ sobre os quais vemos bustos de famosos antropólogos.
Museu de La Plata, 1890/91. (foto: Moreno, Francisco Pascasio)

Estas características do século XIX estão sendo questionadas atualmente, explicou Marta. Certas mudanças de visão nos marcos teóricos estão ocorrendo em direção a valorizar a força do contexto e não do objeto em si, buscando abordar a multiplicidade de realidades que o circunda e mobilizar, assim, novos conceitos. Se tais paradigmas clássicos entram em crise frente a esta nova postura, esta crise deve ser assumida como uma possibilidade de constatar que não existe apenas uma história única, mas que convivem múltiplos olhares sobre uma determinada realidade. Neste sentido sua fala evocava o fato de que a história é resultado de processos políticos que validam uma narrativa (que torna-se histórica) ao invés de outra, uma ação embasada muitas vezes pela leitura e interpretação de artefatos específicos a partir de um ponto de vista particular. E é precisamente esta constatação que abre possibilidades para detectar a profundidade e as possibilidades de propostas inovadoras para esses tipos de museus, quando se questiona como os objetos e artefatos museológicos são apresentados, narrados e partilhados.

Marta também afirmou ser necessário estabelecer um campo de reflexão que nos permita questionar ‘em que relato expositivo tal objeto se integra, e como?’ Não é o caso então de manter os objetos em vitrines, disse ela, para que por si só estes dêem conta de representar ‘o outro’ (de forma linear). A coleção etnográfica deve tornar-se um sistema aberto com possibilidades múltiplas de musealização. Nesta nova situação, ela afirma que ‘uma mente criativa pode seguir tecendo relações sobre um mesmo objeto, questionando em quais contextos este atua e recriando diversas situações a fim de estabelecer comparações e verificar diferenças ou similaridades, para incorporar a história, falar do passado e pensar o presente’.

A qualidade especulativa parece tornar-se mais ativa nesta proposta de produção descrita por Marta. Através de múltiplos vetores de trabalho, podemos verificar certos avanços na incorporação do sujeito produtor de conhecimento e não apenas do conhecimento produzido (ou seja, perceber de qual posição e contexto o conhecimento é gerado). Neste sentido, o antropólogo é trazido para dentro do campo visível da pesquisa e deixa de ser um autor passando a ser também ator daquilo que narra. E o objeto, que está imerso neste contexto de significação, torna-se também ativo: seu caráter de signo o permite atuar como um ‘novo objeto interpretável’. [3]

A trajetória de coleta, conservação, exibição e interpretação devem refletir, então, as próprias formas de construir uma idéia e visão sobre ‘o outro’ pois, por definição, este momento museográfico constitui já uma posição de relativo poder. Assim, a produção museográfica não está desvinculada dos novos campos teóricos e metodológicos da cultura e suas tentativas de des-hierarquizar formas tradicionais de poder.  Questionar os esquemas taxinômicos herdados das ciências naturais e das disciplinas científicas, seu modelo teórico e sua necessidade em classificar a natureza a fim de controlá-la (produção de conhecimentos ‘isolados’ como forma de controle), pode ser um dos caminhos iniciais. Também são úteis alguns novos modelos especulativos que incorporam noções de hibridização, de contato e conflito como vetores de reflexão sobre qualidades inter-étnicas e multiculturais dos objetos em coleções museográficas, como artefatos e elementos pertencentes a culturas vivas – vivos não apenas porque a cultura ainda existe, mas porque nós os ativamos frente a uma constelação de significados e manifestações culturais.

Ao assumir essa complexidade como um momento de ruptura nos modos objetivos de ver e de se aproximar do objeto etnográfico, incorporando o caos como parte da realidade, Marta afirmou que podemos nos afastar dos modelos dicotômicos que separavam e classificavam os elementos etnográficos (visando apontar e congelar movimentos de causa e efeito, bases da construção de uma visão cultural específica). Então, uma visão construtivista – que incorpore a multiplicidade e seja inversa a uma visão de caráter essencialista e cientificista, pertencente a um sistema fechado e unívoco – pode auxiliar na flexibilização de hierarquias que determinam a representação externa (o controle) sobre uma cultura, sobre o sujeito e as comunidades com as quais o museu trabalha através de sua coleção. Ou seja, buscar a possibilidade de uma flexibilização dos discursos de controle sobre a produção de subjetividades que advém do trabalho e contato museográfico. Assim, se na etnografia clássica parecia haver uma suspensão temporal do objeto (torná-lo quase atemporal), agora se privilegia uma descrição constelar de modos de vida diversos. Também são incorporadas semioses diversas neste ato produtivo: múltiplas formas e atividades diversas que produzem sinais e sentidos, num processo que também os interpreta como referentes em relação à outros objetos e realidades externas.

Marta assinalou ainda que discursos, segundo uma abordagem semiótica, são instâncias de representação, e é através desta disciplina que podemos explorar os estágios entre objeto-coisa e sua passagem para uma condição de objeto-signo, consequentemente constituindo a produção de uma mensagem. Ela aponta que são necessários ao menos três elementos para falar de interpretação e produção de sentido: um intérprete ou interpretante (para alguém as coisas têm sentido); um fundamento (falar em favor de algo); em alguma relação (algo tem sentido para alguém numa determinada relação). São as relações entre estes três componentes que permitem produzir e sustentar os contextos de interpretação: quem constrói, quem exibe, quem interpreta. Para ela, a semiótica auxilia a entender que não é a melhor comunicação aquela que tem a certeza de uma única mensagem, pois é saudável que haja uma dispersão semântica e conceitual que configure um campo de interpretação aberto, múltiplo e incerto. E este momento, por sua vez, também pode ser agregado positivamente aos momentos de exibição, evitando construções culturais e discursivas unívocas e fechadas. ‘Mas, qual é a condição do objeto etnográfico quando já não se concebe mais enquanto coisa? Que qualidades possui o objeto que permite relacioná-lo, a partir de um intérprete, a um contexto particular?’ pergunta Marta. Em sua trajetória no museu, o objeto utilitário vai se transformar em objeto museológico, ocupando um lugar dentro de um relato e narrativa expositiva (no espaço tridimensional da exposição), onde outras condições de construção culturais incidem. São as passagens através destes contextos que nos permitem perceber o caráter mediador da sala de exibição do museu que, segundo Marta, torna-se o contexto que permite explorar relações tanto numa representação do conhecimento quanto em apropriações deste. E é no interstício destes contextos que novos intérpretes podem encontrar espaços de atuação, como, por exemplo, as nações e povos indígenas que, antes excluídos historicamente da construção de suas próprias representações e formas de exibição, agora podem incidir de forma mais ativa nos discursos que os representam e ali são produzidos.

Vista externa do Museu de La Plata, 1891 (foto Heynemann, Friedrich and Aberg, Henrik).

Dando sequência a sua apresentação, Marta introduziu o Museu de La Plata, cujo projeto baseia-se nos conceitos tradicionais do século XIX (apresentados no início de sua fala), e situa-se num edifício arquitetonicamente imponente e autoritário. Marta explica que estas configurações de museus funcionavam como reservatórios e detentores ‘da verdade, e o conhecimento ali produzido destinava-se a poucos, cumpria uma função de difusão, porém imposta (devido aos seus próprios métodos de exibição) a um visitante passivo, que deveria ser previamente instruído, e que, entretanto, continuava separado e alienado da instituição’. Mas tal situação parece se alterar hoje: ‘O visitante torna-se um sujeito ativo, conhecedor histórico, forma parte de sua produção cognitiva na circunstância da visita, projeta sua própria experiência de vida naquele momento, e a conecta ao seu mundo cotidiano’.

É nesta perspectiva que Marta apresentou a nova configuração da sala de etnografia do Museu, denominada ‘Espelhos Culturais’ e cujo objetivo consiste em dar espaço ao visitante para que possa se refletir na coleção, e não ser um ente alienado daquele contexto. Outra mudança conceitual importante do Museu é a mudança das nomenclaturas de suas salas: antes denominadas a partir das disciplinas que representavam (ex. sala de geologia, antropologia etc.), agora possuem nomes como ‘Espelhos Culturais, Tempo e Matéria, Ser e Pertencer'.

Vista da sala etnográfica ‘Espejos Culturales’, inaugurada em 2007 no Museu de La Plata.

Guiada pela questão em como alterar o foco do objeto ao sujeito e então em direção aos contextos, a produção museográfica combinou então modalidades clássicas de apresentação com outras mais inovadoras para causar no visitante uma ruptura de percurso, provocando (para além de uma interação tecnológica) uma incisão mais conceitual, cultural e cognitiva. Marta fes também uma referência a Umberto Eco e sua noção de obra aberta: porém, aqui ela não se referia a uma abertura porque existam múltiplos intérpretes, mas porque o objeto provoca esses intérpretes a gerarem múltiplos significados, ou seja, uma obra já aberta em sua intencionalidade e produção.

Nesta mesma direção, realizar ‘estudos de público’ é um fator preponderante para desenvolver as novas políticas museológicas, diz Marta, pois este também é um exercício antropológico, uma vez que se configura como momento de observação e especulação que procura imaginar e verificar como o público poderá reagir e perceber a mostra, o que dizem e priorizam, como projetam suas experiências pessoais a partir da experiência no museu. Ela resumiu, então, alguns pontos relativos a certas tendências atuais: 1. Reconectar a antropologia aos museus; 2. Assumir a complexidade da definição dos contextos de interpretação; 3. Incorporar as comunidades (com todo o cuidado que esta proposta e reflexão merecem em relação à auto representação); 4. Fomentar estudo de público; 5. Definir um conceito dinâmico de patrimônio, visto sob as lentes de momentos históricos, políticos e sociais em que o objeto é coletado, catalogado e reinterpretado; 6. Pensar os espaços dos museus como espaços de reflexão teórica assim como de construção de identidade não só para as comunidades, mas para os trabalhadores, curadores, antropólogos e para o visitante.

Marta finaliza afirmando que o Museu de La Plata não possui ainda um trabalho com as comunidades e culturas originárias da Argentina, mas vem realizando restituições de restos humanos pertencentes ao acervo do museu – em suas palavras, um tema sensível e difícil de resumir.

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Dando sequência às apresentações da mesa, Cynthia Vidaurri, do Smithsonian Institute [4], apresentou uma visão panorâmica sobre esta instituição e tratou de um tema que abrangia a noção histórica de ‘Exposições Viventes’ e seus desenvolvimentos em novos modelos atuais de exposições virtuais, como possibilidades e alternativas às formas de representação etnográfica. Cynthia nos conta que há uma grande discussão atualmente nos EUA sobre o projeto de construção do novo Museu de História e Cultura Afro-Americana, um questionamento sobre a necessidade de criar diversos museus étnicos ao invés de um único museu de história americana – pergunta à qual ela responde ‘que seria impossível, pois, como o Brasil, os EUA são um país de imigrantes, que ainda hoje recebe novas culturas e etnias, não havendo uma história ou narrativa única que conte a história Norte-Americana’. Para ela, porém, o debate mais importante neste caso não reside em afrontar novas teorias, mas sim em rever a função (e capacidade) do museu em ‘fazer um mundo melhor’, ou seja, uma implicação e comprometimento deste em aproximar mundos e não separá-los. Ela introduziu rapidamente o Smithsonian, frisando que, pelo seu tamanho[5], existe certa dificuldade em alterar suas direções.

Fotografia do jornal St. Louis Post,  cuja manchete comunicava ‘Bárbaros vistos nos Jogos Atléticos” - St. Louis World Fair,1904.

Cynthia refletiu sobre certas tipologias de representação ao vivo, cujo início histórico remete ao período colonial no qual o conquistador Colón transportou e exibiu povos ameríndios para a Corte Espanhola, chegando até a representação deste gênero realizada nas grandes feiras mundiais. Estas primeiras exposições e coleções recorriam à idéia de exotismo e primitivismo, afirmando as diferenças entre povos ocidentais e não ocidentais, características reforçadas pelo fato que indígenas e outras culturas não-ocidentais têm sido exibidas em contextos que não são de sua própria criação. Assim, as representações de pessoas ao vivo serviam para os fins de diferenciar, inferiorizar e contorlar ‘o ourto’, métodos instrumentalizados e  implementados com o consentimento das comunidades Européias imperiais, que foram incorporados e aceitos pela maioria dos museus e consequentemente incorporados pelo público.

Estes modelos representacionais são hoje criticados, principalmente por suas agendas coloniais e imperiais,  uma vez que atuavam como justificativa para levar a cabo políticas econômicas apontadas ora à exploração de trabalho humano, ora à eliminação destas culturas e comunidades; sempre, porém, com o intuito de extrair seus recursos naturais. Nestes modelos, o Ocidente Europeu se colocava como estágio evolutivo superior aos não-ocidentais, e os que escreveram a história afirmaram empiricamente uma superioridade (falsamente) construída.

Publicação, Feira Mundial de Chicago - EUA, 1933.

Uma confluência de vários fatores obrigou a reconsideração das normas das coleções etnográficas, das curadorias e das exposições: uma crítica das exposições coloniais e imperiais; o desenvolvimento de disciplinas acadêmicas e as queixas das comunidades representadas nos museus. Nos EUA, esta confluência coincidiu com os movimentos de luta pelos diretos civis (décadas de 1960 e 1970), momento de questionamento nacional sobre as normas e legados do passado, pois no centro destes movimentos encontravam-se demandas das diversas comunidades para que fossem reconhecidas como parte do País (em seus esforços e contribuições para a criação da nação), para que fossem também representadas a partir de seus próprios pontos de vista, e não de outro, externo a eles.

Cynthia nos contou que é sob a gestão do secretário S. Dilon Ripley que surgiu o maior momento de mudanças no Smithsonian, pois este defendia que os cidadãos deveriam ter o direito de criar sentidos de identificação e pertencimento com a história e com os tesouros nacionais (seja nos acervos da instituição quanto nos monumentos, lugares e edifícios que formam a cultura cívica estadunidense). Cynthia frisou que a esplanada possui também uma forte conotação cívica e política como local emblemático de protestos e demonstrações civis, na qual o povo vem escutar e se faz ouvir.  Ela nos apresentou então o Smithsonian Folklife Festival [6], que surgiu em 1967, instalando-se nos espaços da esplanada nacional. O festival dura cerca de duas semanas, com um público de um milhão e meio de visitantes, e almeja ser um fórum internacional de representação cultural.

O festival apresenta um programa de atividades e manifestações ligadas às culturas populares de diversas regiões do país e de todo o mundo. Neste, atividades de gêneros culturais diversos se desenvolvem, funcionando como catalisadores para outras ações e políticas culturais, assim como as pesquisas e trabalhos de campo preparatórios fornecem bases para produções museológicas diversas (mostras, publicações, edições de música, materiais didáticos etc). A filosofia do festival baseia-se na idéia que, independente de classe, formação acadêmica ou nacionalidade, todos possuem uma cultura tradicional e popular próprias. Assim, o festival se caracteriza em certo modo como uma ‘exposição viva’, porém diferente daquelas citadas que ocorriam no período colonial, pois há ali um outro regime e exercício de livre auto-representação.

Imagem referente ao Folk Festiva, na qual se pode ler “Cultura Do, Por e Para o Povo. Bahamianos montaram uma parada Junkanoo especial para o 4 de Julho de 1994” .(imagem: http://www.folklife.si.edu/)

No festival, todas estas apresentações in-situ criam um ambiente de troca entre o produtor da tradição e o público, abrindo possibilidade de conectar culturas diversas através dos olhares e interações entre sujeitos e manifestações culturais, comunicando assim cosmologias próprias de cada cultura ali representada. O festival, ainda que busque ser diverso das feiras tradicionais, parece adotar ao final modelos muito similares destas tipologias de evento: ao invés de pavilhões nacionais temos tendas típicas, e ainda que não divididas por nacionalidades cada uma torna-se um campo específico e próprio de representação, composto sim de atividades diversas mas que representa (ainda que de forma deslocada e um tanto parcial) uma determinada manifestação popular ou cultural a ser traduzida num novo contexto. Por outro lado, a idéia de um festival multicultural quase autônomo de micro-manifestações culturais e nacionais pode abrir espaços para trocas subjetivas e ações em escalas micropolíticas que talvez não ocorressem de outra forma. Também se torna interessante a possibilidade de criar, ainda que temporariamente, uma situação de comunidade – mesmo que as manifestações ali apresentadas sejam, em certo modo, musealizadas (deslocadas de seus contexto original e representando-o momentaneamente). Entretanto, no festival temas como identidade cultural, conhecimento tradicional, sustentabilidade e a formação de narrativas históricas são abordadas a partir de pontos de vistas múltiplos e diversos.

Cynthia também apresentou a exposição El Rio [7], frisando que um dos pontos altos deste projeto (uma curadoria colaborativa) foi propor uma tactilidade para certos objetos da exposição, fato que gerou inicialmente certo temor por parte da instituição que abrigava a mostra, mas que era um ponto chave para o contato do público com os objetos e elementos apresentados. A mostra também possuía diversos ‘cenários’ em forma de tendas que buscavam contextualizar situações diversas existentes ao longo do Rio. Em outra direção, Cynthia disse que nesta mostra buscou-se ‘diminuir a voz do curadores para incorporar as vozes dos produtores’, fato observável nas formas com que os painéis descritivos foram produzidos, privilegiando a língua original das culturas apresentadas assim como a aplicação das normas gramaticais locais (mesmo que sejam diferenciadas das oficiais), incorporando padrões de linguagem e formas de ‘ser’ locais nos dispositivos informacionais e narrativos que mediavam aquilo que foi exibido. Segundo ela, assumir estas características na mostra buscava ativar a percepção do observador de que a cultura é algo dinâmico e vivo.

Vista da exposição El Rio e visitantes interagindo com elementos da museografia.

Vidaurri nos apresentou, então, o Museu Nacional do Indio Americano [8], que possui uma coleção de 825 mil objetos, assim como diversos arquivos documentais. Ela explica que o museu foi concebido de modo diferente dos museus convencionais, pois desenvolve exposições, programas públicos, publicações e produções on-line que tratam de preservar a história e cultura dos povos originários (e migrantes) relativos ao hemisfério norte-americano. Ela apontou que o departamento para a América Latina está desenvolvendo um projeto intitulado ‘povos antigos, migrações modernas’ no qual explora os desafios de manutenção da identidade cultural que enfrentam os povos indígenas latino-americanos que migram aos EUA. A pesquisa também aborda as estratégias criativas com que estas comunidades mantém sua cultura e identidade, ao mesmo tempo em que assumem (e lutam) por seus lugares na sociedade norte-americana.

Vista Externa do Museu do Indio Americano, EUA.

Num exemplo relativo a uma das produções do projeto, Cynthia apresentou o museu virtual MAYA - USA: um mundo 3D on-line, baseado em avatares e que apresenta atividades de imersão e aprendizado. Ela justificou a escolha em realizar uma plataforma on-line por esta ser um formato atrativo (principalmente para os jovens) e que permite um acesso mais ágil e até descentralizado, em certa medida, para a representação cultural. A fusão da tecnologia e cultura abre espaços para desenvolver outras formas de interpretação e representação espaciais e de atividades – o que numa exposição física seriam custosos.

Apesar de ser on-line e digital, o modelo apresentado por Vaudurri continua ligado à noção tradicional de mostra, com um edifício museológico virtual que abriga textos, música, tendas de produtos locais etc. Essa ligação ainda demasiadamente literal (simulacro) nos faz refletir se não seria possível também explorar outras possibilidades destes ambientes virtuais afim de comunicar, de modos ainda mais potentes, as cosmologias, mitos, narrações culturais e visões de mundo destes povos; pois é certo que o distanciamento inerente ao meio tecnológico e as formas com que interagimos com este já o evidenciam como uma construção e mediação cultural (e neste caso museológica). Resta a dúvida, então, se seria possível assumir também as possibilidades ‘de construir uma realidade alternativa’ (que esse meio oferece), para tornar ainda mais acessível o universo cultural e imaterial que formam as culturas representadas, enriquecendo talvez essa nova interface e o contato com seus visitantes, numa simulação de território e de cultura e não apenas de uma instituição museológica que as media. Pois, de fato, estas não são mais ‘originárias’ e sim fruto de um tecido complexo de hibridizações e contaminações socioculturais, políticas e históricas.

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A parte final da mesa contou com a apresentação de Camilo de Mello Vasconcelos do MAE-USP. Ele iniciou a fala explicando que esteve sempre ligado ao setor educativo do museu (uma relação de quase 20 anos). Durante este período, relatou que sempre se deparou com questões que o afligiam, por exemplo: como trabalhar num museu universitário arqueológico e etnográfico, numa cidade como São Paulo e em contato com um público tão heterogêneo como o escolar? Ele nos contou também que sempre o impressionaram as diferentes manifestações do imaginário desse público em relação ao indígena, tanto por parte dos professores quanto dos alunos. Guardadas as limitações do museu e do trabalho de mediação (que normalmente dura, no máximo, duas horas e em condições nem sempre favoráveis) o trabalho de educação e mediação ocorre num embate entre diversos pré-conceitos relativos ao indígena que geram perguntas do tipo: ‘Mas ainda existem indígenas no Brasil? Em que lugar? Não são apenas retratos do nosso passado, já não foram extintos?’.

Tais questões (e outras desta mesma natureza) parecem ser o resultado de um imaginário que se (de)forma devido aos vários vértices que, de modo consciente ou não, reforçam preconceitos e distorções arraigados profundamente na sociedade brasileira. Seja através da mídia, quanto da relação com livros didáticos ou num imaginário social e popular, o desconhecimento sobre as realidades indígenas se mantém e gera as discrepâncias citadas por Camilo. Ele pergunta então: ‘Como é possível trabalhar contrariamente a estes preconceitos para fornecer possibilidades de construir outra leitura, menos manipulada, através de artefatos e outros dispositivos museológicos?’ Seria diferente trabalhar em museus em localidades diferentes, como São Paulo [9], Bahia [10] e Goiás [11]?  É assim que Camilo iniciou, em 2010, um projeto de pesquisa e análise dos discursos curatoriais e ações educativas no qual busca explorar como estas imagens (os diversos imaginários sobre as populações indígenas) se formam, se reproduzem e circulam.

Camilo realizou, assim como a Maria Marta Recca, uma revisão da relação entre antropologia e museus: uma relação marcada por momentos de aproximação e ruptura. Ele frisou que é no século XIX que a antropologia surge como disciplina, ligada diretamente aos museus antes mesmo de ingressar no universo acadêmico, sendo este o momento de produção de conhecimento etnográfico ligado às novas coleções em formação naquele período, assim como esta forneceu as bases para a formação de teorias antropológicas da época como o evolucionismo [12] e o difusionismo [13]. Camilo apontou então que é Franz Boas [14], antropólogo do final do século XIX e início do século XX, um dos fortes contestadores destas teorias. Boas defendia que era fundamental pensar os objetos a partir de suas funções e significados no âmbito dos contextos culturais das sociedades em que estavam inseridos, e não apresentá-los isolados sob uma perspectiva de leitura eurocêntrica. Boas estabelece, ao final, as bases para uma antropologia moderna, que incidiu na alteração dos modos de apresentação dos museus modernos por privilegiar a representação das diferentes culturas a partir de seus próprios contextos.

Vista de uma vitrine do MAE-USP.

No Brasil, Camilo afirma que o estudo das sociedades indígenas vem sendo tratado de modo relativamente lento e pergunta: ‘Deveriam os museus contribuir para a formação de uma sociedade mais homogênea ou revelar e fortalecer as diferenças culturais?’ A questão fundamental, neste atual contexto de globalização, parece ser a importância em evidenciar a temática da diversidade cultural e a riqueza das sociedades representadas através dos acervos. Porém, advertiu Camilo, não podemos ser ingênuos em acreditar que apenas ao mostrar as diferenças culturais nos acervos (retórica material) podemos contribuir para uma tomada de consciência sobre nossas próprias identidades. É necessário, segundo ele, atentar para não cairmos num modelo norte-americano multiculturalista, que reforça através destes discursos a alteridade e a formação de novos guetos.

É necessário então politizar essa questão, afirmando que os diferentes possam interagir e conviver socialmente e não apenas nos acervos e eventos culturais. Ele também coloca que uma das funções dos museus, segundo estas perspectivas, é ser capaz de comunicar e refletir sobre as mudanças culturais em que estamos imersos, pois tal comunicação é necessária a fim de responder (e senão desconstruir) as diversas questões informadas por inúmeros preconceitos (como, por exemplo, as citadas no início de sua fala, ou outras do tipo: não é normal que estas sociedades desapareçam, que tendam à extinção, uma vez que estamos em um novo tempo social e capitalista?). O papel dos museus deve incidir sobre esta situação, pois o discurso sobre as diferenças culturais é sedutor, segundo Camilo, mas não deve afastar e dividir os atores sociais.

Camilo então passou a tratar em sua fala das representações de culturas indígenas no Brasil. Citou que os museus mais importantes do país (como o Museu Nacional, o Museu Paulista e o Museu Emílio Goeldi) nasceram sob uma forte tradição de pesquisas ligadas às ciências naturais, campo de estudos que exerceu uma forte influência sobre a área antropológica, tornando-se referência (tanto metodológica e quanto conceitual) para a maioria dos pesquisadores e museus. Foi somente em 1953, com a criação do Museu do Índio, dirigida por Darcy Ribeiro, que uma instituição se definiu como marco sociocultural para combater o preconceito contra as populações indígenas, pois em grande medida também os museus eram responsáveis, enquanto instituições sociais, pela criação de diversos preconceitos. O Museu do Índio é apontado como a primeira instituição museológica que assumia, assim, um papel político, social e educacional alinhado e favorável a uma causa: a indígena.

Vista externa do Museu Magüta, Amazonas.

Atualmente assistimos a uma interessante interação entre museus e populações indígenas, que culmina em processos de auto representação (destas culturas e sociedades) em instituições museológicas brasileiras (citou as diversas tipologias de museu, apresentada neste simpósio, que se referem a diversos modos de constituição de museus: ‘do índio, para o índio e com o índio’). Ele também apontou que há uma política de repatriação de objetos a estas sociedades, assim como a criação de museus estabelecidos pelas próprias comunidades indígenas, como o Magüta no Amazonas e o Museu do Quari no Amapá, entre alguns outros em fase de formação (no estado do Ceará, por exemplo).

Camilo cita algumas passagens de sua pesquisa, como o caso do Museu da UFG, cuja produção museográfica (que é mais recente) busca fundir visões etnográficas e arqueológicas para refletir sobre a diversidade das sociedades indígenas hoje. Outras constatações referiram-se às características recorrentes nestes casos de estudo de museus: a presença da temática da diversidade cultural, a classificação tipológica por vezes exagerada em relação aos acervos e a utilização da linguagem fotográfica em diversos casos – uma linguagem que, dado seu poder de comunicação, pôde ser utilizada para materializar diversas situações e circunstâncias que são difíceis de comunicar de maneira tão direta – que, porém, não garante que as relações entre as pessoas sejam de fato exercitadas, permanecendo somente em níveis representacionais. Ele também apontou que, em certos museus, recursos expográficos oriundos de linguagens contemporâneas (tais como instalações, gráficos, mapas, cenografias etc.) são utilizados, pois, apresentam maior poder e liberdade de comunicação. Camilo concluiu que ainda prevalece um discurso especializado nas pesquisas curatorias, e o desafio a ser enfrentado pelos museus antropológicos refere-se a como desfazer esta natureza complexa da fala do especialista no momento de produção e comunicação de mostras deste gênero.

Des-hierarquizar os discursos e relações socioculturais nos processos produtivos e discursivos torna-se um modo de aproximar o visitante ao museu e aos universos que este procura representar e transmitir, pois uma mostra não é a totalidade de uma pesquisa, mas sim um momento constelar de comunicação material, narrativo e cultural. Explorar a integração entre os diversos atores e disciplinas que produzem e fruem a experiência museográfica pode ajudar a fomentar uma redefinição das funções dos próprios museus em relação à sua função na sociedade, uma que não busque mais afirmar diferenças hierarquizadas, mas desconstruir os imaginários preconceituosos que ainda persistem em nossos olhares.

 



[2] Baseadas numa visão positivista, de controle e progresso, na verificação empírica de um modelo científico moderno que busca a evidência de suas teorias em um artefato.

[3] Este conceito busca redefinir as práticas, processos, significados e usos de interpretação quando relacionados à estética. Tamen tem como preocupação mostrar como os objetos inanimados ganham vida através de sua interpretação - especialmente, em nossa própria cultura, quando são recolhidos e armazenados em museus. Um objeto torna-se então interpretável apenas no contexto de uma "sociedade de amigos" (uma constelação de elementos relacionados entre si) - o que sugere que nossa tendência para interpretar o mundo fenomenologico dá aos objetos não apenas uma vida, mas também uma sociedade. Focando naqueles que, através da interpretação, fazem os objetos "falarem" em configurações tão diferentes como igrejas, museus, florestas e galáxias distantes, Tamen expõe o terreno comum compartilhado pela crítica de arte, ciência política, direito civil, e ciência. O conceito, no final, reordena completamente o nosso entendimento de como podemos dar sentido ao nosso mundo. Para um aprofundamento desta reflexão, sobre formas e possibilidades de interpretação, animação e agenciamento de ‘objetos’, ver ‘Friends of Interpretable Objects’. Tamen, Miguel. Harvard University Press, 2001.

[4] Instituição sediada em Washington D.C. -EUA. http://www.si.edu/

[5] Ela forneceu alguns números para que tivéssemos uma idéia geral das dimensões desta instituição: o Smithsonian possui um acervo com cerca de cento e trinta e sete milhões de objetos e emprega aproximadamente seis mil pessoas.

[8] http://nmai.si.edu/home/

[9 ] Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo http://www.mae.usp.br

[10] Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia http://www.mae.ufba.br/

[11] Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás http://www.museu.ufg.br/

[12] Camilo forneceu rapidamente uma definição para o evolucionismo social, que marcou o universo das exposições e museus deste contexto. Evolucionismo social, ou também conhecido como darwinismo social, tecia um modelo de interpretação de diferenças entre as sociedade humanas em uma escala que se dividia em estágios e graus de evolução: selvageria, barbárie, civilização. O conceito e criado por antropólogos vitorianos e a regra de mediação desta escala baseava-se nos conceitos etnocêntricos com bases em valores culturais europeus.  Este modelo, por sua vez, fornecia diversas bases aos movimentos neocolonialistas que estavam em consonância com um período de expansionismo global, o qual culminaria no desenvolvimento do capitalismo internacional (desenvolvido segundo uma visão linear do progresso histórico, cujo centro era a Europa).

[13] O difusionismo preocupava-se com os processos de difusão e trocas de traços culturais de uma sociedade a outra, assumindo os objetos etnográficos como os meios para reconstituir estes processos. Assim, era possível identificar um único centro do qual teriam partido todas as invenções culturais da humanidade, permitindo também perceber as modificações sociais (o desenvolvimento) dessas sociedades nos objetos que produziam, em termos culturais e tecnológicos. Entretanto, assumiam-se os objetos, mas não as culturas, fato que influenciou os modelos expográficos de grande parte dos museus enciclopédicos do século XIX (como o Louvre e o British Museum) que visavam narrar a história da humanidade desde suas origens remotas até os estágios mais avançados (exemplificados pelas sociedades modernas européias).

[14] Franz Boas interessava-se principalmente pelos métodos visuais que empregava em seus registros de pesquisas de campo. Boas foi o primeiro antropólogo a assinalar o caráter inconsciente dos fenômenos linguísticos e dos fenômenos etnológicos, distinguindo sempre a partir daí as noções de consciente e inconsciente na antropologia. Suas pesquisas originaram o campo denominado antropologia cultural norte-americana, assim como formou bases para a antropologia estrutural de Lévi-Strauss.