Espaços de empatia

relato por Ana Maria Maia

A exposição Seu corpo da obra estava sendo aberta naquele fim de semana em três instituições da cidade de São Paulo e, a tirar pelo seu título, pressupunha um convite à interação do público com a obra de Olafur Eliasson. Ao demarcar esta abertura com uma fala pública do artista dinamarquês no Sesc Pompéia, no cair da tarde do domingo, 1º de outubro de 2011, o 17º Festival Videobrasil desdobrou em ação educativa, e oportunidade de trocas com o meio crítico local, o caráter sempre relacional da produção de Eliasson. Relacional nos procedimentos e na abertura que adota para estruturar trabalhos, mas também na genealogia artística e curatorial de que faz parte.

Eliasson despontou durante os anos 1990, época em que uma geração de artistas majoritariamente europeus inspirou o debate da “arte relacional” definida e divulgada pelo curador Nicolas Bourriaud. Dentre eles, além de Eliasson, estavam nomes como Liam Gillick, Rirkrit Tiravanija e Maurizio Cattelan. A circunscrição da trajetória do artista nesta matriz discursiva e neste lugar de enunciação deveriam livrá-lo de expectativas por parte do público que lotava o auditório bipartido de Lina Bo Bardi à espera da fala “universal” de um cânone internacionalmente reconhecido.

Sua generosidade para com o encontro e o fato de ter desenvolvido trabalhos site-specific para o contexto arquitetônico e urbano paulistanos não lhe dão pronta condição de manejar especificidades de uma história social do corpo no Brasil. Sua eloquência e a extensa exemplificação dos assuntos abordados não garantem o entendimento de comum acordo, do público e dele, sobre convicções e anedotas que muitas vezes residem na camada cultural de seu discurso.

Em detrimento destas ressalvas, que não exatamente restringem-se à tarefa de Eliasson de apresentar seu trabalho num formato de palestra, mas envolvem-na na tarefa do público de percebê-la com disposição e criticidade, pode-se dizer que o encontro cumpriu seus principais propósitos. Embalado por um dia inteiro de visitações a mostras e passeios coordenados pelo Festival para um público majoritariamente composto por artistas e agentes do circuito da arte internacional, o autor do célebre The sun project (Tate Modern, 2003-2004) ilustrou aspectos de sua pesquisa sobre o estatuto e/ou a política dos espaços de arte; o estatuto e/ou a política do espectador de arte.

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Imagem 1 - The sun project, no Turbine Hall da Tate Modern, 2003 – 2004.

 

A noção de estatuto garantiria a regra. Já a de política abriria espaço para a constituição de uma plataforma para irredutível dissenso sobre o que seria ou deveria ser a regra. Como identificar essas duas instâncias (estatuto e política), e até optar por uma delas em detrimento da outra, num campo de formas historicamente universais (o cubo branco, os panoramas, as Bienais…) e ambições presentes da ordem do relacional, do relativo, do subjetivo?

A fala de Eliasson suscitou várias dúvidas desta natureza, embora tenha seguido por terreno firme e assertivo. Um percurso de obras recentes – o que inclui instalações consagradas e projetos inéditos, feitos para esta exposição, sua primeira individual no Brasil – permite que o artista contextualize sua pesquisa e aponte alguns de seus principais problemas e hipóteses. Esta terminologia, aliás, junta-se com palavras como “experimento” e “laboratório”, e com a associação constante entre arte e ciência, no vocabulário de Eliasson.

O artista entrecruza a arte com campos de conhecimento científicos, como a ótica, a física e a neurologia. Aposta que, na interseção entre eles, possa gerar efeitos de “realidades e identidades produzidas”, criar “espaços de empatia” que “ativem os saberes do corpo”, e não apenas as faculdades retinianas e cerebrais, com as quais somos acostumados a fruir arte. The sun project é dado como exemplo desta premissa interdisciplinar. A fisicalidade de sua metáfora de uma espécie de sol “interior”, feito em luz incandescente no Turbine Hall da Tate Modern, em pleno inverno londrino, torna sensível, consciente e reagente um corpo comumente adormecido, tanto nos espaços expositivos quanto em diversas situações do cotidiano.

Ao comentar um dos trabalhos montados no Sesc Pompéia, um ambiente preenchido por fumaça espessa e iluminado por um grande painel de luz na parede do fundo, Eliasson apresentou outra característica presente em sua produção. Esta característica tem a ver com o recorrente despertar do espectador para as privações e cooperações que constituem o espaço público. “Se você discorda das regras do espaço, você é excluído dele”, afirma o artista. Apesar de dispor de aparente liberdade para atravessar a sala da instalação como queira, se você não atenta para os pilares, nem confia na integridade de um caminho cuja perspectiva é ocultada de seu olhar, não lhe resta muito movimento.

 

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Imagem 2 - Seu caminho sentido, Sesc Pompéia, 2011.

 

Eliasson diz fazer arte para colocar em evidência e problematizar o lugar do indivíduo no espaço social, um espaço que, como a névoa, pode conter zonas cegas e um autoritarismo fino suspenso sobre as possibilidades de atuação e convívio. Através de suas instalações e intervenções públicas, o artista busca “tornar a realidade relativa”, hiperlativizar as noções de escala humana e de processos de subjetivação como preponderantes para a sedimentação do que se convenciona como “realidade”.

“Nós criamos a realidade vivendo a realidade”, afirma Eliasson. Deste modo, não apenas a singularidade de nossos juízos e perspectivas de apreensão, mas a temporalidade dos mesmos “co-produzem” a realidade, a obra de arte, o espaço social. As cachoeiras instaladas primeiramente em Nova York (New York city waterfalls, 2008) e, por ocasião da mostra do Videobrasil, redimensionadas para o Sesc Pompéia (apenas uma, em tamanho bem menor), encerram o conjunto de obras exibidas na fala com a defesa do presente como instância experiencial e não contemplativa.

Esta obra transforma o skyline da metrópole norte-americana em acontecimento. “Temporaliza” a paisagem estática à medida que a confronta com a dinâmica de uma queda d’água, cujo movimento pode-se vislumbrar mesmo à distância. Para o artista, “temporalidade tem a ver com criticalidade”. “Como podemos viver a fisicalidade das coisas se não nos resta tempo para tanto?” A pergunta não almeja a respostas, apenas aponta o atestado de Eliasson pela “dilatação” dos tempos de experiência individual e principalmente coletiva. Seu estar na obra, ou mesmo ser a obra, pelo tempo necessário, representaria uma ato de “resistência ao consumismo”.

 

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Imagem 3 - The New York City Waterfalls, 2008.

 

Após cerca de uma hora de apresentação, Eliasson concluiu uma fala elucidativa sobre sua agenda artística e suas principais realizações. A essa altura, a plateia que, além de assisti-lo, seguiu “exercícios de integração” (“Qual o efeito que a risada produz? Para senti-lo, quero que todos tapem a boca e riam” ou “tentem mensurar o carinho que têm por alguém como se fosse uma escultura, desenhem o volume imaginário dessa escultura com as mãos”) propostos para didatizar, mas também tornar cênica e engraçada a situação de palestra, pode fazer perguntas e tirar dúvidas.

Sem grandes impasses ou ataques por parte daqueles que pediram a palavra, completou-se o roteiro de um encontro. Na sequência de falas ainda recentes de “celebridades” do circuito internacional da arte, como Rem Koolhaas e Hans Ulrich-Olbrist (Sesc Pompéia, agosto de 2011) ou Jeff Koons (Auditório Ibirapuera, setembro de 2011), a palestra de Olafur Eliasson foi indiscutivelmente a mais genuína e proveitosa.

O público, talvez desconfiado com a onda crescente de visitas “ilustres” às instituições brasileiras e principalmente paulistanas, ou talvez martirizado pela macaquice dos “exercícios de integração”, assimilou as asserções do encontro, mas não por isso parece ter resolvido as questões que tinha em aberto. Como evitar a infantilização da experiência artística ou mesmo sua indissociação ante os mecanismos de entretenimento e alienação?  O que condiciona esta experiência no contexto brasileiro, que entraves e vocações? Ao se almejar o convívio dos diferentes e os “espaços de empatia” dotados de um estatuto e também de uma política, como cultivar a tensão produtiva ao invés do riso nervoso?