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Sobre "exercícios experimentais da liberdade"* na Galeria expandida - parte I, Daniela Mattos

Relato acerca dos depoimentos do eixo curatorial histórico em 07/04/10, por Daniela Mattos


Ao iniciar cada um dos depoimentos vinculados ao eixo curatorial histórico da exposição Galeria Expandida, a curadora Christine Mello reiterou que sua intenção acerca deste projeto como um todo, em especial ao convite à fala dos artistas, foi produzir fontes primárias de pesquisa, visto que as obras apresentadas ainda não se encontram devidamente inscritas pela História e Critica de Arte. Reunindo e apresentando ações midiáticas ocorridas desde os anos 1970 até a atualidade, a curadora possibilitou ao público o contato e conhecimento de obras que, em sua maioria, não ganharam a visibilidade merecida quando aconteceram, ou ainda, lidam com as questões da efemeridade, da crítica institucional ou mesmo da transgressão, e portanto já surgem sob uma certa invisibilidade proposital.

Os depoimentos do primeiro dia foram abertos com Analivia Cordeiro, que destacou a dança enquanto marco inicial de sua trajetória artística. Suas experimentações com o corpo influenciam com profundidade a investigação da artista em relação às novas tecnologias, a partir de 1969. A conversa foi praticamente toda dedicada à videodança M3x3, exibida na Galeria Expandida e realizada a partir de uma coreografia veiculada em tempo real pela TV Cultura, no ano de 1973. O título da obra, M3x3, segundo à artista, se refere a uma matriz de três linhas por três colunas, que era enfocada pela câmera por três ângulos de visão: o frontal, o lateral e o superior, e formavam uma espécie de cubo no espaço utilizado para a ação. O planejamento de enquadramentos e os cortes presentes no vídeo, foram levados a cabo por um diretor, não havendo edição posterior das imagens. A coreografia era composta de instruções precisas, que ainda assim previam espaços para criação dos bailarinos. Essa possibilidade de raciocínio coreográfico, de certa forma tornando cada bailarino uma espécie de co-criador da performance, é apontada pela artista como algo bastante raro no contexto da dança daquela época. Em seu texto O Coreógrafo Programador, publicado em 1976 (acessível em no site da artista: http://www.analivia.com.br/ - seção escritos), Analivia explora as questões da coreografia programada para TV.

As informações visuais e sonoras do trabalho eram binárias, fato observado pelo uso das cores branco e preto, das coordenadas matriciais e da sonoridade do vídeo (no qual ouve-se o som de um metrônomo). É importante colocar que, nesta obra, a artista lidou com modos de veiculação de uma obra midiática bastante específicos - e ainda pouco explorados no panorama artístico da época - como, por exemplo, o broadcast com emissão em tempo real. Sendo assim, o trabalho aciona importantes camadas conceituais, de produção e de circulação, desde o desenvolvimento de uma ação performativa pensada para o suporte videográfico, até a sua distribuição em tempo real pelo sistema de broadcasting (tipo de difusão utilizado pelo rádio e pela TV aberta). A artista acredita que um dos mais impactantes aspectos de sua videodança foi a aparente artificialidade das imagens – que é reforçada pela ausência de cinzas ou meio-tons no vídeo – e como resultante desse processo, a ação humana naquele contexto aparenta ser quase “biônica”. Mesmo acreditando na sobrevida do vídeo para além do acontecimento, Analivia considera que este trabalho, de nove minutos no total, hoje parece ter noventa, dada a rapidez de assimilação do espectador na atualidade. Deste modo, a saída adotada é expor apenas fragmentos do vídeo.

Durante sua fala, a artista destacou como sua infância, vivida em um contexto em que o pensamento vanguardista era parte do cotidiano, a influenciou. Filha do artista Waldemar Cordeiro – um dos mais representativos artistas do Movimento Concreto, pioneiro nas experimentações com computador e artes plásticas no Brasil – viveu em um ambiente fértil de criação e inventividade. No entanto, o caráter de planejamento mais controlado em seu trabalho se contrapõe, segundo ela, à improvisação que caracterizava algumas obras produzidas por artistas brasileiros na década de 1970, como os Parangolés de Hélio Oiticica, amigo e conviva de seu pai.

Como suas referências artísticas diretas, tanto em M3x3 quanto em toda a sua obra, enfatizou dois artistas vinculados à importante escola de arte e arquitetura alemã Bauhaus (1919-1933): o fotógrafo e pintor László Monholy-Nagy e o pintor, escultor, coreógrafo e diretor de teatro Oskar Schlemmer, um dos pioneiros nas experimentações entre artes plásticas, dança e teatro, contribuindo, postumamente, para a geração da performance como linguagem artística.

A artista finalizou a conversa, contando um pouco sobre Ver para Ler, obra de 2009, também apresentada na exposição Galeria Expandida. Nesse trabalho, composto por vídeos realizados para transmissão por telefones celulares, a artista propõe um processo de alfabetização para ser apreendido durante o deslocamento do aluno em ônibus ou trens. Para ela, mais do que criar objetos de interação fácil com o espectador, o artista deve disponibilizar, por meio de seu trabalho, instrumentos para estimular a potência de criação do receptor.

Em seguida foi a vez do depoimento de Regina Silveira. A artista começou a conversa dando destaque para o trabalho Pudim Arte Brasileira, de 1977 que junto a Pronto para Morar, intervenção urbana de 1994, compõem sua participação na exposição. A performance feita a partir do primeiro trabalho, aconteceu em 1978, na estação Sé do metrô paulistano, depois da implementação do jardim de esculturas contemporâneas no local. Em seu texto acerca desta ação (também exibido na exposição e publicado no catálogo da mesma), a artista ressalta que sua intenção era provocar “uma forma alternativa de dar a conhecer uma arte – também alternativa – aos usuários do metrô”. Durante a conversa, Regina localizou esse trabalho como um dos poucos em que o viés performativo se evidencia, assim como na ação Biscoito Arte, da qual foi realizado um registro fotográfico em 1976, onde vemos a própria artista “comendo o trabalho” (acessível no site: http://www.eca.usp.br/prof/martin/aocubo/opregin1.htm - acerca da exposição Ao Cubo, que teve curadoria de Luciana Brito e Martin Grossman, sendo realizada no Paço das Artes no ano de 1997). Curiosamente, a distribuição dos panfletos com a “receita” Pudim Arte Brasileira, não foi registrada em fotografia ou vídeo. A ausência de documentação, nesse caso, foi uma escolha da própria artista, que enxergava o “desvio na indiferença do transeunte” como a questão principal deste trabalho, além de uma crítica à produção artística pautada nas exigências do mercado de arte, resultado de uma paródia a uma receita de pudim de côco, onde adaptou os ingredientes para tocar em questões ideológicas.

Uma das características que a artista explora em sua obra, não só no contexto dos anos 1970 mas também em sua produção posterior, como as projeções de laser que fez em fachadas em diversas cidades do mundo (ver em http://reginasilveira.uol.com.br/ seção portfólio, item projeções), é o interesse em trabalhar fora dos espaços “protegidos e consagrados” da arte, voltando-se para a cidade como local de ação, para entrar em uma outra lógica de comunicação com o outro: a da rua.

Relembrando sua experiência de trabalho fora do Brasil nos anos 1970, Regina conta que começou a ter contato com trabalhos em performance nos Estados Unidos, em Nova York, e na Espanha, em especial na cidade de Pamplona, no evento intitulado Encuentros de Pamplona (1972), onde presenciou uma ação do célebre músico e artista experimental – um dos fundadores da arte da performance – o artista John Cage (alguns registros podem ser vistos em: http://www.uclm.es/artesonoro/olobo3/Pamplona/fotos.html). Também nesse período, a artista destacou sua atuação, junto a Júlio Plaza, como professora universitária em Porto Rico, e seu contato com as redes formadas pela arte postal, desde artistas como Vera Chaves Barcellos, em Porto Alegre, passando por Ana Banana em Nova York e ainda, alguns artistas da Europa oriental. É fundamental mencionar, nesse sentido, a importante atuação dos artistas vinculados ao Grupo Fluxus, no panorama norte-americano e europeu, e Paulo Bruscky, no contexto brasileiro, para o que se constituiu como mail art, arte postal ou arte correio.

No campo da relação do artista com as instituições de arte, Regina apontou que muitas das ações na década de 1970 eram basicamente autogestionadas, o que de certo modo possibilitava uma experiência menos mediada com essas instituições – talvez motivada por gestores culturais e críticos de arte mais próximos e parceiros – se referindo em especial ao trabalho de Walter Zanini no MAC-USP. Ainda se referindo ao campo institucional, a artista ressalta o interesse de grandes instituições hoje, como o Museu Reina Sofia na Espanha, entre outros, em mapear e absorver a produção artística dos anos 1960/1970, com foco atual na América Latina. Continuando este debate em torno da esfera institucional e sua postura em relação ao trabalho mais experimental, e em resposta a questões colocadas pelo público presente durante seu depoimento, Regina enfatizou que obras como a de Hélio Oiticica, recentemente exposta em São Paulo no Itaú Cultural, são pejorativamente museificadas e descaracterizadas por algumas curadorias e montagens propostas. Como exemplo, Regina cita o contato que teve com os Ninhos de Oiticica, montados em seu apartamento em Nova York, e na exposição Information, realizada em 1970 no MOMA, que nada têm a ver com o que vem sendo exposto atualmente. Ainda que muitas instituições, como o próprio Centro de Arte Hélio Oiticica no Rio de Janeiro e muitas outras, realmente não tenham encontrado o tom para exibir com intensidade a obra de artistas como Hélio, é importante destacar a louvável iniciativa da curadoria no sentido de dar visibilidade para os escritos e discurso do artista no mesmo patamar de sua obra visual, colocando-os como textos de parede nos três andares (e como áudio de um dos vídeos) da exposição Hélio Oiticica - Museu É o Mundo.

Finalizando a conversa, e a respeito da relação com a curadora Christine Mello na exposição Galeria Expandida, o depoimento de Regina Silveira sublinhou o extremo respeito e cuidado com que Christine tratou sua participação na exposição, dando à artista total liberdade durante o processo de preparação da mostra, dizendo estar muito satisfeita com o resultado que esse diálogo gerou, e que pôde ser exibido através da parceria junto à Luciana Brito Galeria.

O terceiro depoimento foi dado por Fabiana de Barros, fechando o primeiro de dois dias de falas dos artistas do eixo curatorial histórico da exposição Galeria Expandida. Fabiana começou sua contribuição falando de suas obras produzidas a partir da plataforma Second Life, que na opinião da artista é mais do que um jogo, é um espaço público, assim como uma praça ou um centro comercial, espaço este criado por necessidades do imaginário de cada integrante e pelo que seria um imaginário coletivo desses indivíduos.

A partir das questões levantadas em seu projeto Fiteiro Cultural, onde a artista configura uma espécie de quiosque como espaço aberto a participações de outros artistas e acontecimentos diversos, concebido em 1998, Fabiana começou a desenvolver no espaço virtual do Second Life a ilha Casa Milagrosa, em 2007, onde instituiu o Fiteiro Cultural Second Life que também acolhe projetos de artistas convidados. No Fiteiro Cultural Second Life, a artista desenvolveu junto a colaboradores, projetos artísticos como Tree dance in Second Life, em 2009, remake de uma das intervenções do artista Gordon Matta-Clark (Tree dance, de 1971) e o remake em duas partes de One plus one (filme de Jean-Luc Godard realizado em 1968), intitulado Ça va, realizado em 2009 (disponível no endereço: http://www.youtube.com/watch?v=1Uy9RD6tkPs). Sobre Ça va, uma parceria entre Fabiana e Michel Favre, a artista ressalta que a intenção era abordar e atualizar algumas temáticas exploradas pelo filme de Godard, reativando e retomando em certa medida, questões de cunho racial e feminista.

Além dos já citados, Fabiana realizou projetos (alguns em regime de parceria) de artistas como Chris Marker, Michel Favre, Gianni Motti e do DJ Digital Francis. Em sua fala, a artista descreve o Second Life como um lugar de imersão em que se leva um certo tempo para criar familiaridade, mas já ocupado como plataforma de trabalho por muitos DJs e artistas. Contou também sobre suas experiências iniciais mal-sucedidas de co-produção de projetos artísticos, fato que a levou a comprar sua própria ilha, depois de ser expulsa por seus vizinhos virtuais. A artista chegou a sofrer preconceito por parte de muitas pessoas do meio da arte contemporânea, que entendiam a plataforma somente como um jogo, o que vem se modificando positivamente nos últimos anos, pelo modo como ela e outros artistas cada vez mais usam a plataforma.

Os depoimentos gerados nesse primeiro dia nos permitem refletir, a partir de contextos extremamente diversos constituídos pelas poéticas e experiências destas três artistas, como os trabalhos de arte a partir dos anos 1970, passaram a se relacionar diretamente – e muitas vezes de modo indissociável – com as novas mídias: o vídeo, a TV, os dispositivos de telefonia móvel, o computador em rede, entre outros, abrindo, com isso, um campo para novos modos de produção e recepção pública destas obras.

(*) em citação à célebre frase do crítico Mário Pedrosa no texto “Por dentro e por fora das Bienais”, de 1970 (in: AMARAL, Aracy org. Mário Pedrosa - Mundo, Homem, Arte em crise. Coleção Debates, Editora Perspectiva, São Paulo, 1975)

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