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Sobre "exercícios experimentais da liberdade"* na Galeria expandida - parte II, Daniela Mattos

Relato acerca dos depoimentos do eixo curatorial histórico em 14/04/10, por Daniela Mattos


Um trabalho realizado há menos de vinte anos pode ser considerado histórico? Em que medida arte e comunicação se relacionam em um projeto artístico que se pretende intrinsecamente dialógico? Como usar os circuitos midiáticos sem sucumbir puramente à sua especificidade? Essas foram algumas das questões que permearam os depoimentos de Ricardo Basbaum, Lucas Bambozzi e Gilbertto Prado, no segundo dia dedicado à fala de artistas do eixo curatorial histórico da exposição Galeria Expandida.

Abrindo sua contribuição na série de depoimentos, Ricardo Basbaum destaca a importância da oportunidade de se dar visibilidade às ações artísticas realizadas por ele e outros artistas nos anos 1980, ainda não apropriadamente inscritas na história e na crítica de arte, tanto para um entendimento mais amplo de seus trabalhos atuais, quanto para que essa “revisão” contribua para uma melhor compreensão do panorama das artes na atualidade. Contextualizando sua obra, o artista descreveu um panorama do momento em que começou a desenvolver suas experiências com o projeto da marca Olho, iniciado a partir do convite para a exposição Como vai você geração 80?, em 1984, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro. Nesta exposição, foram reunidos trabalhos de artistas que começavam suas trajetórias na década de 1980, alguns ligados à escola enquanto alunos. A proposta de Ricardo naquele momento, foi colar e distribuir adesivos em forma de olho –  como o que foi mostrado na Galeria Expandida, mas de tamanho reduzido – em diversos objetos da escola (mesas, cadeiras, quadro negro, etc.), além da venda de pares de adesivos, no mesmo local onde era feita a venda do catálogo da exposição. A utilização dessa “marca” não era controlada por ele, portanto cada pessoa colava o adesivo onde bem queria, tanto no espaço do Parque Lage quanto em qualquer outro lugar, como uma espécie de intervenção coletiva.

Para Ricardo, o que se delineou como “jovem arte brasileira dos anos 1980” se confunde com a implementação de uma lógica neoliberal e de uma euforia gerada por essa aparente sensação de “liberdade”, já que esse período coincidiu com o fim da ditadura no Brasil e o decorrente processo de redemocratização no país. Esse júbilo desmedido acabou por corroborar com uma mercantilização excessiva da arte, em especial em relação à produção de pintura. Entretanto, o artista ressalta que a construção de sua lógica de trabalho se deu a partir de uma relação tardia com o mercado, ou seja, sua inserção no circuito de arte se deu sem uma mediação puramente comercial, permitindo-lhe a autonomia poética através da qual pôde produzir agenciamentos de circuitos independentes.

Dando continuidade ao projeto com os adesivos, fez inserções em cartazes, postais e chegou a pensar em intervir nas pinturas de outros artistas, o que não aconteceu, e acabou realizando essas inserções em suas próprias pinturas. Suas experimentações artísticas não se limitavam à produção pictórica, como era mais comum naquela época, e seu interesse em explorar diferentes linguagens deu origem a uma iniciativa intitulada Dupla Especializada, realizada junto ao artista carioca Alexandre Dacosta, a partir de 1981. O trabalho da dupla começou com uma série de ações estruturadas a partir do lema: intervir em meios de comunicação de massa, utilizando pinturas-cartazes (os quais eram inicialmente serigrafias – “como um grafite impresso” – e os posteriores impressos em off-set), que os artistas colavam em lugares diversos do espaço urbano do Rio de Janeiro. Na quarta série de cartazes, realizada em 1984, o que se via nos impressos era apenas os nomes dos artistas e sua ocupação (Alexandre Dacosta e Ricardo Basbaum, artistas plásticos), a que chamaram de cartaz-conceitual. Além dos cartazes, os artistas produziam também filipetas-manifestos que traziam um perfil humorado da dupla como, por exemplo, “garçons nas horas vagas”, em menção a uma performance feita em inaugurações de exposições junto ao grupo Seis Mãos, formado por Dacosta, Basbaum e pelo artista carioca Barrão. Esta filipeta reivindicava “eleições diretas para presidente, legalização do aborto e espaço para artistas plásticos na televisão”, este último item, segundo Ricardo, se referia a performances do anos 1970 que haviam estudado e que lidavam com esse contexto, como algumas ações de Joseph Beuys. Nas performances do grupo Seis Mãos, os artistas entravam em exposições caracterizados de garçons, distribuíam frases ou pequenos objetos e carimbavam espectadores com a palavra “impresso”. Ricardo esclarece que o interesse do grupo na figura do garçon se dava por sua quase invisibilidade no contexto das inaugurações de exposições, característica que servia a eles como um aspecto incorporado em suas ações. Para Basbaum, a Dupla Especializada trabalhava, de um modo geral, com a problematização dos processos de formação da figura pública do artista, e como este produz sua inserção no circuito de arte, propondo que tais procedimentos se configurassem através dos contextos comunicacionais, pelos mecanismos da mídia. Segundo o artista, as atividades a partir da marca Olho podem ser encaradas como desdobramentos das ações da dupla e do trio, no sentido conceitual das mesmas.

O projeto acerca da marca olho conforme foi apresentado na plataforma curatorial Galeria Expandida, está mais próximo e vinculado ao que desenvolveu enquanto sua residência artística no campus da Unicamp, em 1987, e que tem como registro o vídeo também apresentado no eixo curatorial histórico da Galeria Expandida. A escolha de trabalhar a marca Olho como par conforme fez até então, relacionando-a com uma dimensão antropomórfica, foi rompida com as experiências da Unicamp, como mostra a intervenção feita na torre daquela universidade, uma espécie de panóptico. O “olho” foi apropriado por diversas instâncias dentro da universidade, e o esforço de Ricardo era que seu projeto não se deixasse capturar por essas demandas (que iam desde reivindicações do DCE até a eleição da associação de funcionários), não representando-as intrinsecamente.

Ricardo reforçou em sua fala que a construção da marca olho partiu da pintura, posteriormente veiculada segundo alguns aspectos do campo da comunicação. Na década de 1980, momento em que o projeto surgiu, os procedimentos adotados se baseavam na pintura, no desenho e na tecnologia analógica, diferente do vinil adesivo que foi apresentado como intervenção no espaço externo da Luciana Brito Galeria, feito por processos digitais. Além do olho, o trabalho contou com uma outra intervenção durante a exposição: o som de uma vinheta, composta por Sérgio Basbaum, era emitida diariamente das 16hs às 16:01hs. A vinheta, feita especialmente para a intervenção produzida na Unicamp, seria o equivalente sonoro da marca visual. Também no eixo curatorial histórico da Galeria Expandida foi exibido o vídeo intitulado É a questão, que documenta a experiência do artista na Unicamp, que conta ainda como trilha sonora com a canção É a questão (composta por Ricardo Basbaum), mostrando um outro campo explorado pelo artista: a música.

Finalizando seu depoimento, o artista enfatizou que a “Geração 80”, de modo geral, estava mais preparada para lidar com os circuitos da comunicação para além da negação e da resistência, diferente de como fizeram os artistas da geração anterior, nos anos 1970. Alguns textos e entrevistas do artista podem ser encontrados em seu blog: http://rbtxt.wordpress.com/.

Seguindo com os depoimentos, Lucas Bambozzi contou um pouco mais dos projetos que apresentou na Galeria Expandida: Puxadinho e Projeto Kinotrem. Lucas – que em simultâneo à realização dessa plataforma curatorial coletiva estava apresentando uma exposição individual na Luciana Brito Galeria, intitulada Presenças Insustentáveis – dedicou praticamente todo seu tempo de fala ao Projeto Kinotrem.
Desenvolvido em parceria com Eliane Caffé, para o evento Arte/Cidade - A cidade e suas histórias, em 1997, Kinotrem levou dois anos para ser estruturado junto ao grupo de artistas, videomakers, cineastas, VJs e pesquisadores envolvidos em sua realização. A proposta de Bambozzi e Caffé foi diretamente inspirada pelo projeto homônimo produzido pelo cineasta Alexsander Medvedkin na antiga União Soviética, entre os anos 1931 e 1933, onde populares eram documentados em suas peculiaridades (desde situações mais decadentes até suas ações produtivas), e os filmes gerados eram posteriormente exibidos aos próprios populares, praticamente no dia seguinte às filmagens.

Funcionando como produtor de circuitos midiáticos, integravam o projeto documentos em vídeo dos bairros paulistanos onde o projeto acontecia (no entorno das regiões Luz, Barra Funda e Água Branca), a partir de recortes temáticos ligados ao funcionamento dos bairros (divididos em: ocupação / transporte / indústria-comércio / arquitetura), além das tipologias, que mapeavam em vídeo a ocupação popular local. Além desse material, eram produzidas conversas em vídeo entre um espaço e outro da região, mediadas por um VJ e exibidas ao vivo e que contavam, para tanto, com uma espécie de central móvel: a kinokombi. Ainda integrando o projeto, durante o trajeto de trem entre as estações Julio Prestes – Moinho Santista – Fábrica Matarazzo, haviam carrinhos que ofereciam vídeos a la carte aos viajantes e câmeras de vídeo aos passantes. Em seu site, na página dedicada ao Kinotrem, http://www.lucasbambozzi.net/, Lucas descreve melhor o projeto:

“(...) Assim foi criado um circuito conectando espaços para além do Arte/Cidade, envolvendo ações diversas: um link duplo de transmissão simultânea, carrinhos oferecendo videoarte ‘a la carte’, câmeras portáteis VHS disponíveis para os visitantes, registros de anônimos, parcerias com os artistas participantes, projeções no espaço expositivo e intervenções nos bairros vizinhos. (...)”

A intenção dos artistas com essa iniciativa era claramente causar uma fricção entre os campos da comunicação e da arte, através da criação de dispositivos em rede, criando espaços de comunicação entre o evento Arte/Cidade e a população local. Utilizavam o sistema de difusão entre a unidade móvel e as torres de transmissão, como os utilizados pela TV aberta. O VJ que gerenciava as transmissões fazia intervenções ao vivo que eram exibidas em estruturas instalativas intituladas malhas-rede, no entorno da área ocupada pelo Arte/Cidade.
Os vídeos disponibilizados por Lucas em sua participação na Galeria Expandida são fitas VHS com materiais brutos e editados, além de vídeos realizados pelos espectadores-passantes, gerados durante a realização do Projeto Kinotrem. Para o artista, o trabalho conforme foi exibido na Galeria Expandida gerou mais uma camada relacional com o espectador, que pôde escolher e assistir ao material disponibilizado. O artista destaca que uma das questões levantadas pelo projeto – e agora retomada – era a possibilidade de tomar contato com a crítica feita pelo público, por via do pensamento videográfico sobre a arte, veiculado em tempo real no contexto da exposição Arte/Cidade.
Finalizando sua fala, contou um pouco sobre Puxadinho como a continuidade de um movimento de “ir para fora”, e de um desejo de expansão do que estaria “dento” do espaço da galeria. Essa ocupação do espaço externo da galeria, possibilitou, por exemplo, que pessoas em horário de almoço parassem para assistir aos vídeos exibidos nesse dispositivo temporário de exibição, ampliando as margens de alcance de público pela obra.

Encerrando a série de depoimentos, o artista Gilbertto Prado contou um pouco de sua trajetória como produtor em contextos midiáticos e de suas obras apresentadas na Galeria Expandida. No final dos anos 1970, Gilberto participou das redes criadas pela Mail Art no Brasil e na Europa e depois de chegar ao que nomeou como um “esgotamento” das possibilidades dessa prática, começou a desenvolver, na década de 1980, Turismo Artístico, projeto no qual o artista registrava em vídeo uma espécie de mapeamento da rede instaurada pela arte postal, indo conhecer em suas casas e ateliês (muitos fora do Brasil) os artistas com os quais se correspondia e trocava trabalhos no final dos anos 1970.

No final dos anos 1980, começa a desenvolver o projeto Connect (que continuou ativo durante a década de 1990). Este projeto, um dos trabalhos apresentados por Gilbertto na Galeria Expandida, se dava através da troca de imagens em tempo real via fax (também referida pelo artista como um fax-evento), com intervenções gráficas e desenhos feitos por diversas pessoas em vários países, simultaneamente. Algumas fotos e mais detalhes do projeto estão disponíveis no site que reúne ainda outros trabalhos individuais e coletivos: http://www.cap.eca.usp.br/gilbertto/connect.html. O artista destacou sua imensa dificuldade em realizar esse projeto, visto que naquele momento os meios de comunicação em rede, como a internet, não existiam no Brasil ou existiam em contextos muito específicos e praticamente inacessíveis. Uma das experiências feitas a partir de Connect foi mostrada na exposição Art Reseau, na França. Ao final da exposição todo o registro do intercâmbio das intervenções coletivas nos faxes foi apagado por conta da incisão de luz no papel de fax, que é fotossensível, fazendo que as marcas deixadas pelas ações ganhassem também a efemeridade que o próprio trabalho possuía.

Ao final de seu depoimento, Gilbertto falou numa concepção que permeia muitas de suas obras: problematizar o olhar do outro como espécie de “canibalização de imagens”. Essa canibalização espectral ou cartografia de afetos é o que o artista propõe através do trabalho Desluz (projeto desenvolvido pelo Grupo Poéticas Digitais do qual ele é coordenador junto a Silvia Laurentiz). O trabalho é formado por um sistema que conjuga uma webcam que mede a freqüência da passagem das pessoas na movimentada Rua Augusta, e as transmite para uma estrutura que está na galeria, formada de leds que emitem luzes infra-vermelhas, bem como vibrações sonoras através de auto-falantes. As freqüências podem ser experimentadas pelo espectador pelo toque dos auto-falantes (que emitem vibrações sonoras inaudíveis) e através de câmeras fotográficas de celular que captam a luminosidade dos raios infra-vermelhos, invisíveis a olho nú.

Ainda que atuem de formas muito diversas, em perspectivas múltiplas, talvez seja possível dizer que esses artistas têm algumas características em comum: tanto a exploração de dispositivos e circuitos midiáticos, como o caráter processual e de experimentação que suas poéticas apontam. Suas obras nos respondem, de modos muito particulares, que é possível produzir territórios de ação fronteiriços e dialógicos, entre arte e comunicação. A visada aqui desenvolvida, deve-se à riqueza da plataforma curatorial concebida por Christine Mello. Galeria Expandida foi produzida não apenas como um recorte, característica inerente ao campo da curadoria, mas delineada com a atenção de uma curadora-pesquisadora ligada à universidade (como observou Ricardo Basbaum), que mostrou-se consciente e comprometida com a importância dessas ações no sentido da formação de jovens artistas, historiadores e críticos de arte, bem como da transformação do espaço da galeria comercial – para além de seu papel mercadológico – em um locus possível de diálogo e pensamento.


(*) em citação à célebre frase do crítico Mário Pedrosa no texto “Por dentro e por fora das Bienais”, de 1970 (in: AMARAL, Aracy org. Mário Pedrosa - Mundo, Homem, Arte em crise. Coleção Debates, Editora Perspectiva, São Paulo, 1975)

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