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Geopoéticas e Geopoéticas

relato crítico por Leandro Cardoso Nerefuh

Relato da fala de Mark Nash em exposição de Isaac Julien, SESC Pompéia/VideoBrasil

 

Seminário Internacional Isaac Julien

20 de Outubro de 2012

Por Leandro Cardoso Nerefuh

 

Como experiente professor e chefe de departamento acadêmico, Mark Nash foi bastante claro e metódico na sua apresentação. Organizada em tópicos seguidos à risca, a fala começou com uma introdução (muito por alto mesmo) sobre curadoria de imagem em movimento, tendo a Documenta 11 como exemplo. Em seguida, passou a falar mais propriamente do trabalho de Isaac Julien, enfatizando bastante seus aspectos formais. E, por fim, tratou de explicar o que vem a ser o termo geopoéticas, título da exposição no Sesc Pompéia, em relação ao trabalho de Isaac Julien.

Mark Nash se apresenta. Curador e escritor, com interesse específico em imagem e movimento. Ensina “o que é ser um curador” no Royal College of Arts, em Londres. Destaca que entrou no ramo através da história e teoria do cinema. No inicio dos 70, ele editou o periódico Screen que usava a psicanálise para pensar o cinema. Esse cruzamento entre psicanálise e cinema foi uma certa novidade para a academia Britânica da época. Podemos ver isso no trabalho de Laura Mulvey, por exemplo, que incluiu mais um ingrediente na mistura: cinema, psicanálise e feminismo. Seu filme-ensaio Riddles of the Sphinx, é um bom exemplo do ‘cinema pensamento’.

Foi nos anos 70, quando Mark Nash se envolve com o sindicato de cineastas que ele e Isaac Julien se conhecem. E logo no inicio dos anos 80, os dois se encontram trabalhando juntos no filme educativo Fanon, para um novo canal da TV britânica, a TV4. Feitas as devidas apresentações, o palestrante passa a falar

 

Sobre Imagem em Movimento e Curadoria

 

A Documenta 11, que aconteceu em 2002 em Kassel, na Alemanha, serviu como um marco para o que Mark Nash (co-curador daquela exposição) chamou de um ‘giro documental’ – a documentary turn - na arte contemporânea da época. No texto para o catálogo da Documenta 11, o palestrante escreveu que o “documentário, apesar de nosso entendimento escorregadio dessa palavra, se tornou nos últimos anos uma forma quase privilegiada de comunicação, provendo um meta-discurso que garante a verdade da nossa vida política, social e cultural.” Lembrei do que o filósofo Jacques Rancière fala sobre essa tal verdade documental. Ele diz que “escrever história e escrever estórias funcionam sob o mesmo regime de verdade”. Eu não lhe perguntei, mas acredito que o palestrante concorda que a lógica dos fatos e a lógica da ficção se mesclam ao extremo na arte contemporânea de cunho ‘documental’.

Mark Nash explicou que a exposição Documenta 11 surgiu a partir de uma série de encontros e conferências que abrangeram quatro temas centrais: 1. O desafio das democracias contemporâneas. 2. Desenvolvimento em cidades. 3. Questões da verdade e reconciliação. 4. Creolização. E que a articulação desses temas, na exposição, envolveu necessariamente o formato de documentário. Entende-se que a forma documental ganhou maior proeminência na exposição justamente porque parece tratar de conectar arte com realidade social e política (algo que não deve ser reduzido à ideia de arte engajada ou ativismo ou agência política de artistas).

O palestrante ainda destacou que a evolução digital facilitou a produção e ampliou a quantidade de artistas trabalhando com imagem em movimento, principalmente nesse viés documental. Algo há tempos já verificável nas escolas de arte do mundo afora, por exemplo. E também defendeu que esse crescimento foi uma espécie de resposta à crise da arte pós-modernista do ocidente (mas ficou nos devendo uma explicação mais detalhada a respeito dessa afirmação – qual das crises da arte?).

Mas apesar ou por causa desse crescente número de trabalhos ‘documentais’ utilizando imagem em movimento, Mark Nash reclamou educadamente que poucos trabalhos são realmente bem resolvidos, em termos de expertise técnica e apresentação (e aqui ele aproveitou o gancho para elogiar o Sesc e o VideoBrasil pela montagem da exposição de Isaac Julien). E, entrando um pouquinho no tema curadoria, ressaltou que a preocupação técnica não é somente uma preocupação técnica, e sim conceitual. “Em uma mostra que tem muita imagem em movimento, como estabelecer um diálogo entre essas imagens. E como criar um diálogo com todas as obras de arte. Isso que nós curadores estamos tentando trabalhar”, diz Nash.

 

Sobre Isaac Julien

 

Passando mais propriamente ao trabalho de Isaac Julien, Mark Nash se concentrou bastante em aspectos formais. Disse que poucos tem a qualidade de Julien e acredita que a formação do artista em cinema faz a diferença. Gosta que o trabalho de Isaac Julien “tenta manter uma experiência cinemática, mesmo que não seja cinema [...] em termos de uma qualidade imersiva, de fantasia que ele cria”. Mark Nash se ateve por um tempo à evolução do trabalho do artista em relação ao número de telas utilizadas nas suas instalações, de três telas (em Paradise Homeros) a sete telas (em Ten thousand Waves). Algo que me pareceu um tanto esquisito como argumento:

“Um número maior de telas permite explorar vários pontos de vista, o espectador tem que se mover, não dá para ver tudo de uma vez [...] abrindo assim a experiência cinematográfica para além da linearidade. [...] Os filmes dele, usando as múltiplas telas, nos permite participar de narrativas ou fragmentos de narrativa em possibilidades, não em linha única de montagem”.

Eu experimentei isso mesmo na exposição de Isaac Julien e entendo o que Mark Nash quer dizer, no entanto, não é preciso aumentar o número de telas para fugir de uma linearidade. Vide todo o histórico de experimentos com edição, cut-up, colagem, mash-up, e por aí vai.

O palestrante esboçou uma história de experimentos com telas múltiplas: “é um formato muito antigo, muito familiar para a arte europeia. Como um retábulo de três partes. É um legado muito importante, histórico”. Disse que, no início de século XX, alguns diretores de cinema mudo já usavam várias telas. Como o pioneiro Abel Gance que inventou o cinema polivisão, usando câmeras sincronizadas. “Algo que Isaac Julien também faz, utilizando-se de projetores sincronizados por computadores”. Disse ainda que Hollywood também experimentou com um formato de telas divididas, até chegar ao iMax de hoje em dia. “São experimentos que refletem o trabalho que Isaac Julien está fazendo”, defende Nash.

Seguindo uma linha argumentativa mais interessante, a meu ver, o palestrante falou ainda que um maior número de telas permite um maior jogo com contornos e repetições, em que “as imagens podem se repetir e ecoar por todo o espaço da exposição”. Redundância e repetição são características intrínsecas à comunicação (- Alô? – Alô.). Nesse sentido, as múltiplas telas operam uma fragmentação tanto do campo de visão quanto da mensagem.

 

Sobre geopoéticas

 

De tempos em tempos, a arte contemporânea também apresenta suas modas e tendências e essa história de geopoéticas figura como uma das mais recentes. A Bienal do Mercosul de 2011 - Ensaios de Geopoética - e a Trienal da Tate Britain de 2009 – Altermodern – são exemplos marcantes de exposições internacionais que privilegiaram trabalhos de arte “geopoéticos”. Ou seja, que propõem relações (de indivíduos) com determinados territórios. Tanto uma como a outra exposição (entre outras tantas) apresentaram trabalhos que refletem/reagem a uma vivência de deslocamentos, migrações e fluxos constantes que se impõem num mundo de cultura globalizada. Parece que há nisso uma nova bandeira à internacionalização - preocupação clássica das vanguardas do século XX – que dessa vez não é utópica, ou seja, não diz querer mudar o mundo e nem mesmo imaginar outros mundos, mas sim enfrentar o que está aí. Nesse contexto, a docu-ficção, o documentário, materiais históricos e de arquivo, assim como narrativas pessoais são recursos bastante usados para compor camadas entrelaçadas de ‘verdade’ e de ‘ficção’.

Mark Nash ensaia uma explicação parecida. Diz que o termo geopoéticas é uma linha de pensamento que emerge de um espaço-tempo específicos, e trata de pensar a prática (artística) num tempo e local específicos e, ao mesmo, tempo conectá-la com uma rede global. Ele defende que esse tipo de arte nos apresenta a confrontação entre mundos, com suas  ideologias e suas perspectivas. É nessa linha que ele inclui a ideia de ‘Sul Global”, trabalhada pelo VideoBrasil. E aproveita para dar alguns exemplos que partiram desse sul global, como “Julio Garcia Espinosa e seu ‘cinema imperfeito’ e o ‘cinema’ novo, no trabalho de Glauber rocha, que envolve o tropicalismo e antropofagia”. O palestrante ainda argumenta que a obra de Isaac Julien ressoa as ideias do mundo do sul. Por exemplo, no seu uso de conexões entre o Caribe e Londres. Ou de mitos e lendas da Grécia antiga ligadas ao Caribe e ligadas a Londres. Ou ainda, na conexão da historia do cinema, com o mito de liberação da África, no caso da obra Fantome Afrique.

O palestrante vê uma consistência entre a obra de Isaac Julien e o títulos da sua exposição no Sesc Pompéia, considerando que o artista trabalha muito com movimentos de migração e historias que refletem experiências de minorias e pessoas deslocadas. Historias que, segundo Nash, desenvolvem essa geopoética de relações dialéticas de reconectar e desconectar.

Geopoéticas é um termo escorregadio que, no âmbito da arte contemporânea, pode muito bem debandar para uma representação alegórica e mal feita de temas complicadíssimos que brotam em histórias e zonas de conflito pelo mundo afora. Tem muita obra de arte e exposição por aí que se apropria de um termo (e nada mais) para ganhar um ar intelectualóide, respaldando-se em citações de pensadores famosos. Geopoéticas para inglês ver. O uso de um termo em voga não legitima em si qualquer trabalho. Ao mesmo tempo, existe mesmo uma tentativa, por parte de artistas contemporâneos do mundo todo, de conectar questões geopolíticas com a arte, sem que a arte seja uma ilustração hipócrita destas questões. Uma arte que faz seu próprio pensamento, como destacou Mark Nash.


Jacques Rancière, The Politics of Aesthetics, Continuum, London, 2006, p.38.