Você está aqui: Página Inicial / Eventos / Exposições / Isaac Julien / Relatos / Imagens migrantes

Imagens migrantes

relato crítico por Gilberto Mariotti

Relato da fala de Vinicius Spricigo sobre exposição de Isaac Julien.

Por Gilberto Mariotti

 

A fala de Vinicius Spricigo, disparadora de discussões em torno do trabalho de Isaac Julien, funcionou também como mediação entre as falas das palestrantes, Lisa Bloom e Rania Gaafar. Aliás, não entre estes dois discursos, mas a partir de um terceiro ponto, ampliando o campo previamente aberto para a discussão. Este terceiro ponto é fixado a partir de seus estudos sobre a relação entre o pensador Vilém Flusser e a Bienal de São Paulo. Flusser concebia a Bienal como um privilegiado lugar de intervenção, antecipando reflexões e fundando conceitos que se mostraram inovadores e pertinentes para se pensar o espaço expositivo hoje.

Em outra triangulação, Vinicius liga a influência de Flusser à reflexões de Benjamin, fazendo-as chegar até o trabalho de Julien. Um argumento central para este movimento: para Walter Benjamin, a exponibilidade, ou valor de exposição, está relacionada à reprodutibilidade das imagens contemporâneas, em oposição ao valor de culto. Resultado do vazio devorador mediático, as videoinstalações de Julien nos apresentariam imagens póscoloniais, ou, dito de outro modo, uma história imaginada.

O foco argumentativo que vem da reflexão sobre a imagem é base para a análise feita por Spricigo da exposição de Julien, pois entende sua trajetória e seus produtos no contexto de sua circulação e a partir da dinâmica do sistema de arte e o circuito das exposições internacionais, do qual faz parte, inclusive, a nossa Bienal, pensada por Flusser em sua condição mais perene: a de meio. Para Spricigo, essa instituição é símbolo de uma relação ainda submissa em relação ao eixo Euroamérica, por depender de uma defesa insistente de sua “sincronia” e “atualização” da arte brasileira com o que ocorre no exterior.

Flusser não via o pensamento dito ocidental como um produto cultural homogêneo. Para ele, as imagens produzidas tecnicamente poderiam ser incorporadas no pensamento imaginativo, competência que sobrepunha, de certo modo – por que retornaria historicamente como uma cultura nova– ao pensamento conceitual, linear e histórico. Isto ocorrendo, teríamos uma transformação do conceito de história, numa reintegração entre corpo e imaginação, tendo o pensamento imaginativo como seu meio (medium).

Para Spricigo, esse processo estaria acontecendo atualmente em diversas práticas estéticas que utilizam a capacidade imaginativa para manipular conceitos lineares. O procedimento usado é o da inversão do processo de colonização das imagens por meio do uso e manipulação de arquivos históricos e da operação da “montagem”, aqui entendida como descontrução de uma linearidade histórica. Daí se justificaria a conexão com o trabalho de Julien. Suas videoinstalações conseguiriam esta inversão por meio de uma associação entre reflexão conceitual sobre os deslocamentos póscoloniais com uma investigação sobre a linguagem cinematográfica.

Um exemplo dado por Spricigo são cenas do filme Small Boats, filmadas no Palazzo Gangi, em Palermo, indício do que seria uma operação antropofágica do filme Il Gattopardo (1957), de Luchino Visconti, que retrata o declínio da aristocracia italiana durante os conflitos pela unificação do país na segunda metade do século XIX: “A coreografia de corpos que percorrem o espaço arquitetônico causa estranhamento, se pensarmos o local como cenário de um suntuoso baile na película do diretor italiano, e a relação desses personagens com os corpos dos viajantes clandestinos abandonados na praia junto aos banhistas. Dessa forma, as imagens produzidas por Julien operam criticamente reincorporando a tridimensionalidade ao plano, através de corpos transformados em imagem do ‘novo homem’”.

Spricigo encerra o texto que dá base à sua fala realçando um pressuposto para uma atitude de questionamento acerca de nossa herança cultural e a possibilidade para pensarmos a descolonização das exposições de arte por meio da imagem mediática: “Tal ponto de vista requer portanto uma nova maneira de estar no mundo, na qual somos sempre estrangeiros, nos encontrando sempre em condição transitória e nômade, como corpos devorados pelo vazio.”

Como uma continuação da mediação iniciada por Spricigo e guia para outros desdobramentos, incorporo ao relato um texto de Flusser, “Exílio e Criatividade”, em que ele trata mais diretamente da condição de exilado e estrangeiro – apesar de grande parte de sua produção ter sido alimentada por esta condição.

Falando indiretamente sobre si mesmo, seu argumento inicial é justamente o de que esta condição de exílio nos obriga ao deslocamento não apenas físico mas também das percepções “O hábito é um cobertor macio.” escreve ele.

A compreensão do corpo como lugar em que imagens conflitantes possam gerar conhecimento parece se confirmar em uma outra passagem: “A descoberta da monstruosidade de nossa contingência física resulta da estranha habilidade de exilar nosso corpo em nossos pensamentos. Tal exílio radical não se mantém por muito tempo. Uma saudade irresistível do corpo nos assola, e então remigramos. Esta experiência de exílio extremo é reveladora. Para o exilado é como se ele tivesse sido expulso do próprio corpo. Mesmo as coisas rotineiras causam estranhamento. Tudo se torna anguloso e barulhento. Ele se volta para a descoberta e a verdade.”

Novamente o estranhamento como disparador da reflexão e transformação, que me parece ser parte do pressuposto colocado por Spricigo em Flusser e importante conectante com o trabalho de Julien. Flusser trata do exílio como o início de um processo dialógico que fundamenta a criação aliada à transformação: “Podemos falar da criação como um processo dialógico. A chegada de exilados provoca diálogos, e uma colméia de criatividade circunda o exilado. [...] Se, porém, ele se dá conta de que sua dignidade está na ausência de raízes, um diálogo interno acontece. Esse diálogo consiste na troca entre as informações que ele traz em sua bagagem e o oceano de ondas de informações que o banham no exílio. Quando estes diálogos internos e externos geram sentido, tudo e todos se transformam criativamente. Eis o que quis dizer quando afirmei que a liberdade do exilado consiste em permanecer estrangeira. Trata-se da liberdade de mudar aos outros e a si mesmo.”

Assim como a condição de exilado, também presente no trabalho de Julien, possibilita este estranhamento interno, ou mesmo em relação a um viver de forma automática, esta também se volta para o habitante antigo e, a partir do diálogo ou do conflito, criar identidade: “O exilado é o Outro dos outros. Isso significa que ele é diferente dos outros e eles permanecem diferentes para ele. Sua chegada no exílio permite que os outros descubram que podem criar sua identidade somente em relação a ele. Ocorre uma abertura do ‘eu’ à alteridade. Um estar juntos. O espírito dialogal que caracteriza o exílio pode não ser de reconhecimento mútuo; ele é na maioria das vezes polêmico e até violento. Isso porque o exilado ameaça a singularidade dos habitantes antigos. Até o diálogo polêmico é criativo, porque também conduz a síntese de informação nova. O exílio, não importa sua forma, é incubador da criatividade a serviço do novo.”

Flusser quer garantir aqui a invenção por meio deste lugar de exílio, que representa um estranhamento, um deslocamento, sem, de modo algum, prescindir do conflito, que como se lê, para ele faz parte também do processo de transformação. O que me obriga a perguntar: pode haver deslocamentos que não levem à nenhuma transformação?

Frequentemente, embora deslocamentos ocorram e os atores sociopolíticos troquem papéis, a lógica social vigente permanece a mesma com leves alterações, e certas conquistas visíveis vêm a reboque de concessões ao jogo econômico, ocorrência que está diretamente associada ao papel desempenhado por imigrantes e exilados no capitalismo tardio.

Tal lógica talvez tenha uma conexão considerável com o status da imagem que é base para as reflexões de Spricigo. O trabalho de Julien pode representar um movimento de luta de reconquista e reapropriação de identidade travado de dentro do jogo das imagens que sempre definiram à forca a identidade do estrangeiro, no colonialismo e que ainda o seguem fazendo após o próprio colonialismo não mais receber este nome. Mas o jogo alienante das imagens também funciona em certa medida por uma lógica antropofágica. Visões fixadas culturalmente são reapropriadas e podem ser, até certo ponto, recolocadas. Mas é dessa forma que as imagens se multiplicam: desaparecendo e reaparecendo, alteradas em outros lugares, num jogo de espelhos de alta rotatividade (desde que estas visões estão submissas ao seu potencial de consumo enquanto imagens, é preciso que circulem mais rapidamente para que não pereçam enquanto mercadoria). Há trânsito intenso, mas não necessariamente o que mereça ser chamado de transformação.

A pretexto da apropriação do filme Il Gattopardo, vale lembrar do mote proferido pelo principal personagem, Don Fabrizio, sobre as transformações políticas em curso, que prometem retirar de sua classe o papel de protagonista na cena social vigente: “As coisas devem mudar para que continuem as mesmas.”