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A relação inventiva: artista, curadoria e meio – Relato Crítico da 2ª mesa - Arte Hoje, e o pós–pós–Duchamp

Relato crítico do 1º Ciclo de Palestras Ready Made in Brasil – Por Erica Ferrari

Por Erica Ferrari

 

Convidados: Paulo Herkenhoff e Camilo Yáñez

Mediação: Martin Grossmann

 

Pensar sobre o que Marcel Duchamp (1897–1968) foi é algo tão complexo que parece ser necessário começar de trás para a frente: os artistas que lhe sucederam, o circuito artístico de hoje, o que parece familiar. Pois falar de Duchamp é falar de uma história da arte de um século todo e requer uma escolha precisa que caiba na contingência de uma palestra pública.

 

Segundo a introdução de Martin Grossmann, sua atuação precisa ser enfrentada e problematizada, já que traz em seu cerne a questão do ato criativo, tanto como uma possibilidade de ação desligada da ideia tradicional de habilidade e genialidade do artista quanto como uma instância cuja recepção do público é parte integrante. Com a desmaterialização da arte, o que ela se torna? Uma série de operações?

 

Camilo Yáñez, em seu recorte, investiga a prática de Duchamp a partir da identificação de suas proposições mais significativas, como artista, como curador, como provocador de novos posicionamentos culturais. Ele elege algumas linhas de interesse e produz uma cadeia de relações com outros agentes do circuito artístico, demonstrando ligações e legados possíveis do pensamento e da ação de Duchamp.

 

Uma das mais relevantes é o posicionamento de Duchamp como um definidor de certa forma de fazer curatorial de hoje, sendo a investigação sobre a ideia de mudança e transformação como uma de suas bases. Esse interesse já está claro em sua atuação como artista, como pintor que retrata não exatamente o movimento em seus trabalhos da fase de inspiração futurista, mas a transfiguração que ocorre pela experiência do tempo — a “virgem” que se torna a “noiva”, o grafismo que se torna objeto óptico.

 

“Não podemos entrar duas vezes no mesmo rio” é a frase de Heráclito de Efeso, rebatida depois de séculos por Roberto Matta (1911–2002): “Não se pode entrar duas vezes em um mesmo rio. Não se pode entrar duas vezes em um mesmo Heráclito”. Ou seja, as mudanças não estão apenas nas circunstâncias do mundo, mas no âmbito do próprio pensamento, que, por sua vez, é acelerado por essas mudanças. Duchamp pareceu captar essa urgência na estrutura própria do fazer artístico das primeiras décadas do século 20 e desenvolveu suas ações através de atos de liberdade criativa, como o encontro de uma roda de bicicleta com uma banqueta em seu ateliê em 1913, descrito por ele como “feliz” e que definiu o readymade. A mesma liberdade está no surgimento da colagem por Pablo Picasso (1881–1973), também em 1913.

 

A ideia de mudança, de transformação, faz com que o espectador — e o próprio artista — se torne testemunha de um fenômeno em contato com o trabalho. O encontro produz uma experiência, uma percepção. Chris Burden (1946–2015) e Francis Alÿs (1959) são artistas que lidaram com essa potência posteriormente.

 

Duchamp explorou isso com intensidade nos projetos como curador — em suas palavras, como “árbitro geral” — de exposições nas décadas de 1930 e 1940. Na Mostra Surrealista de 1938, seu intuito era promover a descoberta das obras expostas através da produção de uma situação que forçava um estado de atenção, inibindo a compreensão naturalizada dos trabalhos. Ele induziu uma “experiência de percepção” e uma relação de tensão no ambiente, com a instalação de 1.200 sacos de carvão e uma lamparina no teto do espaço, gerando a necessidade do uso de lanternas para a apreciação das obras. Em 1942, em outra retrospectiva surrealista, em Nova York, Duchamp interveio conectando os trabalhos através de um fio branco, formando uma grande cama de gato.

 

O artista como curador: para Yáñez, essa prerrogativa se repete constantemente na prática curatorial e geralmente se apresenta como um desafio. Um caso exemplar é de Gabriel Orozco (1962) na 50a Bienal de Veneza. Convidado pelo curador geral da mostra, Francesco Bonami, Orozco partiu das relações que estabelecia com o próprio curador e com os artistas selecionados para estipular algumas regras de um “jogo expositivo”. Sem paredes, sem pedestais, sem vitrines, sem vídeo, sem fotografias: os seis artistas participantes deveriam pensar obras a partir de meios simples. O resultado foi a ênfase na escala humana e uma forte intenção de comunicar a realidade social e política de cada um através de peças elementares, como na obra de Jimmie Durham (1940), na qual se investiga a relação da diferença entre os objetos examinando o pensamento agregado a eles.

 

A questão do ato criativo e da atuação do artista é relacionada por Paulo Herkenhoff com exemplos de artistas-chave brasileiros, especialmente do modernismo antropofágico e do neoconcretismo. Para Hélio Oiticica (1937-1980), o ato criativo é um “estado de invenção” — o artista não cria, muito menos produz: ele inventa. Herkenhoff associa o “estado de invenção” de Oiticica a um processo relacionado ao projeto antropofágico, especialmente de Oswald de Andrade — um plano cultural de incorporação das diferenças através do canibalismo como linguagem simbólica de absorção dos valores do outro, mas que se mostrou limitado. Suas obras emblemáticas, como A Negra, de Tarsila do Amaral (1886-1973), são composições feitas a partir de estudos acadêmicos e visitas a museus. A própria Tarsila é ligada ao capital acumulado na escravidão. Citando Leon Trotsky (1879-1940), o modernismo nas sociedades latino-americanas refletia uma situação histórica de busca de superação do passado colonial.

 

A antropofagia modernista não realizou o intento de autonomia de linguagem, e isso, para Herkenhoff, coube ao neoconcretismo e a seus desenvolvimentos. Com o neoconcretismo, tivemos a recusa da ideia da história da arte como uma sucessão de “ismos” ou uma sucessão de heróis da forma — expressão de Kasemir Malevitch (1978-1935). Também não se considera que seja um conjunto de imagens a serem refeitas ou reinterpretadas. É de fato uma história de invenção e um legado de problemas. O artista necessita ser seu inventor.

 

Com Fenomenologia da Percepção, de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), desenvolveu-se a questão da percepção como o espaço do sensível. Ela foi transformada pelo neoconcretismo em um corpo ciente e desejante, dotado de cinco sentidos. Os Bichos, de Lygia Clark (1920-1988), em conjunto com a escultura de corte e dobra e Amilcar de Castro (1920-202), segundo Herkenhoff, são as duas maiores contribuições para o grande salto da escultura brasileira. Como em Nu Descendo a Escada, de Duchamp, existe ali algo que é mais do que o movimento de um objeto-corpo: é a necessidade do “outro” para a completude da obra, à espera de um sujeito.

 

Já em Cildo Meireles (1948), a relação com os readymades de Duchamp ocorre como estratégia de sabotagem em sistemas específicos na sequência de trabalhos Inserções em Circuitos Ideológicos. Aí, o readymade não é um objeto industrial retirado do mundo e trazido para a condição de arte, mas o sistema sociopolítico é apreendido como readymade. Pode ser o sistema de circulação implementado pela Coca-Cola, de produção, venda e consumo, com a consequente reutilização dos vasilhames, ou o sistema de circulação do dinheiro como um processo de coesão social. A utilização do dinheiro como trabalho, para Meireles, é essencial no exercício de pensar o valor da arte incongruente ao valor do objeto. Suas séries são “infinitas” e embaralham a noção entre o valor de troca e da mais-valia.

 

Por fim, o artista é de fato um criador de símbolos, portador de um grau de expressão que é o ponto inicial do trabalho do curador, que produz seu discurso simbólico a partir desses símbolos. Para Herkenhoff, a curadoria é uma prática de negociação, de maestria dentro de uma economia do poder. Há um processo criativo que os curadores exercem e o sistema é o ponto inicial para desenvolver essa relação inventiva. Duchamp estava absolutamente consciente disso. Lidava com a curadoria como se lida com a matéria, como um artista, assim como Waltercio Caldas (1964) afirma sobre si mesmo. A curadoria é cuidado: para Herkenhoff, uma entrega da obra de arte ao olhar do outro dentro de determinadas condições; uma problematização constante da arte.