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Relato Crítico: “Atuação do Conservador-Restaurador: O Conservador de Museu e o Conservador de Ateliê”

O primeiro encontro da série “Mesas-Redondas em Conservação e Restauração” voltou-se à discussão das peculiaridades do trabalho do conservador de instituição em relação ao atuante em ateliê particular. O debate ocorreu nas instalações do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, em 26 de outubro de 2017, e contou com a participação dos conservadores Karen Barbosa (MASP), Teresa C. Toledo de Paula (Museu Paulista), Ana Carolina Delgado Vieira (Museu de Arqueologia e Etnologia) e Stephan Schäfer (Stephan Schäfer Conservação e Restauro Ltda.). A mediação foi de Isis Baldini, que também atua como conservadora. O debate foi transmitido em tempo real na página do IEA-USP por meio da qual os espectadores virtuais puderam enviar suas perguntas e comentários

 

Por Verônica Spnela

Atuação do Conservador-Restaurador: O Conservador de Museu e o Conservador de Ateliê

 

Visão geral do trabalho de conservação – Museu versus ateliê

Inicialmente, os expositores discorreram brevemente a respeito das atividades que desenvolvem dentro das instituições das quais fazem parte. Já neste momento, ao observar as falas das conservadoras de museu, fica destacado um ponto de convergência entre os dois nichos de atuação: o foco do tratamento concedido aos objetos.

No espaço do museu, o profissional lida com um número grande de objetos, atendo-se mais profusamente ao gerenciamento, ao monitoramento, à pesquisa e à conservação preventiva. Neste caso, a intervenção curativa encontra-se em última instância e todo esforço se dá no sentido de impedir que os objetos prescindam deste tratamento mais invasivo. Por outro lado, o conservador particular recebe objetos os quais, em sua maioria, já chegaram ao ponto de requererem restauro, em decorrência da não prevenção aos danos. Desta forma, as intervenções ali operadas são de caráter majoritariamente reparador e em menor parcela de contenção de degradações e acidentes futuros. Neste sentido, Stephan Schäfer observa que além das ações de restauro há um esforço de persuasão do cliente a fim de conscientizá-lo de que a conservação preventiva é mais eficiente do que o trabalho posterior de restauro.

Assim, fica claro que estar em contato permanente com o espaço de guarda das obras permite que o conservador tenha um controle muito maior do estado de preservação destes objetos e monitore periodicamente as peças mais fragilizadas, enquanto um conservador particular não tem possibilidade de intervir neste aspecto sem a aprovação e cooperação do proprietário. A este respeito, Karen Barbosa comenta que apesar da maior proximidade com o acervo, o conservador de museu não é dono do acervo, ressaltando a importância da consulta dos pares que possam auxiliar na tomada de qualquer decisão de tratamento.

Além das atividades mencionadas acima, outros procedimentos habituais dentro das instituições são o preparo de obras para exposições internas e externas e recebimento de pesquisadores. Em contrapartida, apesar de o conservador particular não lidar com estes mesmos procedimentos, diversas incumbências despendem o tempo de trabalho deste profissional – seja a feitura de relatórios, de propostas de tratamento, visita à clientes ou soluções de transporte das obras.

A questão da ética

É consenso entre as duas categorias que a adesão ao código de ética deve ser unânime entre os profissionais de conservação de bens patrimoniais, independente do espaço de atuação. O que se discute no caso do ateliê particular é a problemática da divergência entre o desejo do cliente e o procedimento ético do conservador. É o caso, por exemplo, de vernizes antigos e craquelês, como menciona Schäfer. Alguns clientes acreditam de maneira equivocada que removê-los e fazer a obra parecer nova é um modo de valorizá-la, não contemplando a questão da remoção de uma informação importante a respeito do modo e da época de confecção da obra.

Teresa Toledo pontua a importância da consulta a outros especialistas antes de qualquer intervenção, já que um tratamento equivocado ou malsucedido pode trazer danos irreparáveis ao objeto: “Você passa pelo objeto e não o objeto passa por você”. A importância do reconhecimento da incapacidade de desenvolver o tratamento indicado também é advertido pela restauradora.

A consulta aos povos de origem dos objetos também foi uma questão levantada por Ana Carolina Delgado. Faz parte do trabalho de conservação dentro do Museu de Arqueologia e Etnologia a orientação por parte da população de onde o objeto arqueológico é proveniente, acerca do caráter espiritual, de uso e autoridade.

Estágio e formação de novos conservadores

Acerca da opção mais adequada para se buscar um estágio na área, os debatedores ressaltaram a questão do foco de interesse do profissional em formação. Em um ateliê particular, é possível lidar mais freqüentemente com intervenções práticas sobre os objetos, assimilar técnicas e experimentar um considerável fluxo de trabalho. O foco de atuação é no restauro dos objetos e raramente há tempo hábil para debruçar-se em pesquisas em torno da obra, apesar de haver casos pontuais e projetos ligados à conservação e a desinfestação.

Já em instituições museológicas, a conservação preventiva é que aparece como cerne do ofício. Assim, a experiência nestes espaços é majoritariamente na direção do controle ambiental, gerência de empréstimo de obras, vistorias e pesquisas. O tratamento de restauro é o último recurso e por isso realizado em menor freqüência.

Falsificações de obras e princípios morais do conservador

Nos últimos anos, afirma-se que há um crescimento no número de obras falsas circulando no mercado de arte. Qual seria o posicionamento adequado do conservador ao deparar-se com um objeto desta natureza?

Mesmo no caso de defraudações de má qualidade, não é possível a fundamentação do prognóstico do conservador sem o apoio de aprofundadas análises históricas e materiais.

No caso dos museus, é responsável a constatação da veracidade e a consulta a um banco de dados de obras furtadas requeridas por seus acervos de origem (a red list do ICOM), de modo a garantir o investimento esperado por parte da organização, muitas vezes advindo de recursos públicos. Ana Carolina Delgado revela que há outra questão burocrática envolvida nos casos em que a descoberta da falsificação ocorre posteriormente à aquisição do objeto. Muitas vezes as peças já estão tombadas e o processo de descarte ou reinserção em outro acervo é muito complexo. Teresa Toledo faz referência à ocorrência no Museu Paulista em que os doadores acreditavam tratar-se de uma obra original e por este motivo ela teria sido adquirida pela instituição.

No caso da lida com objetos de particulares, Stephan Schäfer ressalta a cautela exigida no trato com o proprietário, já que as obras fazem parte de um pecúlio que pode ser contestado a despeito do valor originalmente atribuído.

Discute-se em seguida o uso que se dá à obra falsa. Pontua-se a possibilidade de ela conter elementos estilísticos ou materiais tidos como marca registrada do falsificador, os quais poderiam vir a constituir um banco de dados capaz de fomentar avaliações de outras obras.

O diálogo entre os conservadores

Em vista da freqüente demanda de trabalho solicitada pelos museus para os profissionais externos às instituições, a troca entre as duas partes é rotineira. Por meio de projetos, licitações e contratações de diversas qualidades, conservadores particulares são chamados à prestação de serviços para os museus. Tais convênios permitem que os objetos sejam tratados sempre pelos melhores especialistas, garantindo que seja aplicado o procedimento mais adequado para cada caso.

Em contrapartida, Ana Carolina Delgado expõe o diálogo insuficiente entre os conservadores de instituições, os quais mantêm-se debruçados em seus afazeres locais e poucas oportunidades têm de trocar experiências com seus pares. Neste sentido, concebe que os conservadores de ateliê têm suas relações interpessoais mais bem desenvolvidas, já que em decorrência do trabalho com as instituições, têm mais oportunidades de dialogar com outros profissionais.

Finalmente, fica manifesta a necessidade do constante intercâmbio entre os conservadores das diferentes áreas de atuação e da troca generosa de experiências entre si, pois a atuação isolada não atende a gama de problemas encontrados nos acervos brasileiros. Mais do que isto, o engajamento é necessário à garantia do futuro da profissão, desde a formação de novos conservadores até a liberação de novas contratações em instituições públicas e a criação de novos postos de trabalho.