Relato por Diogo de Moraes

Relato produzido para o Fórum Permanente a partir da palestra "A curadoria no campo expandido: pós-institucionalismo?", ocorrida no Centro Cultural São Paulo, na noite do dia 22 de novembro, proferida por Ann Demeester, diretora do De Appel Arts Centre (Amsterdam), mediada por Martin Grossmann, coordenador do Fórum Permanente e debatida por Ana Maria Tavares, artista e professora do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP.

[TEXTO]

A palestra proferida pela curadora belga Ann Demeester, intitulada A curadoria no campo expandido: pós-institucionalismo?, conta com a apresentação do coordenador do Fórum Permanente Martin Grossmann, o qual destaca em sua explanação introdutória as questões principais que norteiam a fala da palestrante. Entre elas, chama atenção para a problematização das práticas curatoriais que lidam com a produção artística contemporânea, sobretudo aquela que se desenvolve a partir da noção de campo expandido. Como forma de situar a discussão no âmbito da historiografia da arte, Grossmann localiza a gênese desta noção naquilo que foi conceituado e teorizado por Rosalind Krauss sob a designação de ‘escultura no campo expandido’, que, grosso modo, corresponde à ampliação do conceito de escultura e à diversidade de situações e contextos em que esta passa a se manifestar.


Logo de saída, Ann Demeester destaca que sua explanação se pauta na realidade institucional da Europa do norte, principalmente em países como Holanda, Bélgica e Suécia. Portanto, como ela adverte, a validade de seus apontamentos para o contexto brasileiro é apenas parcial, o que não pode ser de forma alguma desconsiderado. Enquanto no Brasil há uma enorme e urgente necessidade de consolidação das instituições artísticas, a Europa do norte desfruta de uma estrutura estável e eficiente, diferença esta que nos faz relativizar a suposta globalidade do contexto artístico.

A questão central de sua fala diz respeito à busca de novos formatos para as instituições artísticas na contemporaneidade, que estejam atentos e em consonância com as práticas artísticas atuais. A primeira pergunta lançada então por Demeester é sobre a pertinência e a real necessidade do prédio expositivo equipado e destinado às mostras de arte contemporânea. Esta dúvida é um sintoma (por revelar uma perturbação) da discrepância entre a instituição artística tradicional e as propostas dos artistas que lidam com o campo expandido, com um fora que engloba a esfera da virtualidade, o universo midiático e o campo social da vida cotidiana. Na esteira desta indagação, Demeester se pergunta sobre uma possível dispensa da moldura institucional por parte de determinados projetos artísticos. Um dos motivos disso é o crescente abandono, pelos artistas, da produção objetual, que dá lugar a processos efêmeros e quase invisíveis. Esta atitude pode ser interpretada como um desejo de afastamento das instituições artísticas, pelo menos no que se refere ao seu caráter conservador. De acordo com Demeester, nas instituições há ainda uma forte demanda e fixação por objetos, e as relações entre curador e artista acontecem segundo um padrão hierárquico.

A partir destas considerações, não seria possível pensar em um contato direto entre as proposições dos artistas e o público, sem a necessidade da mediação institucional? As instituições não se tornaram redundantes? Ou então, numa direção alternativa, não seria mais interessante e proveitoso trabalhar para a renovação e reinvenção destas instituições e suas metodologias, tornando-as mais flexíveis e, portanto, consonantes com as práticas artísticas atuais, que trabalham de forma processual? Demeester defende esta última idéia, contando com uma organização institucional menos rígida, mais solta e espontânea, com curadores que se dediquem às proposições dos artistas de forma mais sintonizada e imaginativa.

Como forma de contextualizar esta mobilização rumo à reestruturação dos modelos institucionais em arte, Demeester faz menção à década de noventa, mais especificamente, à sua segunda metade, quando passa a se manifestar com maior ênfase o desejo por um novo tipo de instituição. Neste momento, surge na Europa do norte um movimento cunhado pelo termo ‘novo-institucionalismo’, atribuído pelo curador escandinavo Jonas Ekberg. Tratava-se de um modelo que se pretendia renovador, e que incorporava inclusive as críticas institucionais feitas pelos artistas. Existia aí uma maior preocupação com o público e seus diversos segmentos. A exemplo das práticas artísticas contemporâneas, os procedimentos se tornaram mais maleáveis e menos burocráticos, podendo assim dedicar uma atenção maior àquilo que era temporário e processual, a partir da renúncia a uma estrutura rígida. Dentro de um conjunto que se queria democrático, era almejada a participação dos diferentes públicos, entendidos para além da mera condição de observadores passivos, no sentido de aproximá-los tanto das obras quanto dos artistas e seus processos, em situações de caráter dialógico em que eram incitados a se manifestar. Um exemplo deste tipo de instituição é o Rooseum, sediado na cidade de Malmö, na Suécia. Em instituições como esta, as abordagens em torno das propostas dos artistas adquiriam um acento discursivo, através de encontros, palestras, debates e oficinas, situações estas propícias a uma abordagem detida dos assuntos envolvidos nos projetos artísticos, numa perspectiva reflexiva e crítica. Por conta das características de tais projetos, muitas vezes estes eventos discursivos ganhavam uma importância maior do que a própria exposição, como sugere Demeester. Isto se explica, entre outras coisas, pelo fato dos trabalhos artísticos não se pautarem em questões puramente estéticas, mas em problemas de natureza discursiva e contextual.

Nas antípodas do formato assumido pelo ‘cubo branco’, as instituições comprometidas com o ‘novo-institucionalismo’, aqui exemplificado pelo Rooseum, não se viam como campos autônomos, isolados, mas como esferas permeadas e comprometidas com a sociedade, arrogando para si a responsabilidade de reagir às mudanças políticas e sociais. Assim, buscavam assumir o caráter de centros comunitários, pontos de encontro entre artista, público, curador e profissionais de áreas distintas, não restringindo seus programas à promoção de exposições. De forma análoga aos procedimentos dos artistas com os quais trabalhavam, estas instituições atuavam a partir de operações interdisciplinares, promovendo intersecções entre diferentes funções sociais e áreas do conhecimento.

Porém, como ressalva Demeester, há muitas coisas a serem criticadas nas instituições norteadas pela noção de ‘novo-institucionalismo’. Apesar de sua abertura e vocação democrática, elas geralmente criavam um novo tipo de elitismo, principalmente em virtude de as pessoas que não desfrutavam de um conhecimento mais consistente no campo da arte contemporânea não conseguirem ou não se sentirem encorajadas a se envolver efetivamente com as atividades discursivas propostas. Tais eventos atraiam muito mais aqueles que já possuíam, além dos subsídios e instrumentos intelectuais necessários para lidar com os assuntos abordados, uma familiaridade maior com o circuito artístico e seus agentes, o que acabava gerando um exclusivismo. Outro aspecto problemático, do ponto de vista de Demeester, era o fato de o ‘novo-institucionalismo’ cultivar valores como hospitalidade e generosidade, que acabavam por configurar uma postura institucional um tanto passiva, de espera. Em contraponto a isso, Demeester defende a necessidade da instituição estimular seu público de forma estratégica, entendendo que este não surgirá e, muito menos, se envolverá de forma espontânea com as atividades oferecidas pela instituição, principalmente quando se trata do público não-iniciado. Além disso, ao se depararem com um panorama de produção artística que lida com a arte em termos de produção de conhecimento – e que portanto está a todo momento repensando e reinventando seus procedimentos – essas ‘novas-instituições’ apenas davam conta de privilegiar o tipo de arte que podia ser facilmente categorizada, o que representava uma limitação comprometedora. E, para completar o quadro, essas instituições enfrentavam enormes dificuldades para provar ao Estado sua eficiência e produtividade, devido principalmente ao número muito baixo de visitantes que as freqüentavam. Com isso, passaram a sofrer uma crescente falta de apoio e financiamento, o que provocou o fim do ‘novo-institucionalismo’.

Para Demeester, é fundamental evocar e refletir sobre este passado institucional recente, visto que ele pode nos informar sobre os acertos e falhas no processo de reinvenção dos formatos institucionais. A busca por novas metodologias, que trilhem um caminho diverso ao proposto pelo ‘novo-institucionalismo’, mas considerando suas contribuições para o debate, é algo que tem surgido com força na Escandinávia e também na Holanda, sob o nome de ‘pós-institucionalismo’.

Este movimento surge como uma alternativa em países que contam com um grande número de instituições de formatos tradicionais consolidadas, que, de maneiras diferentes, tentam acomodar e discutir a arte contemporânea (justamente aqui pode-se perceber uma diferença decisiva em relação à situação brasileira, vide a precariedade de sua mais importante instituição, a Bienal de São Paulo). Os envolvidos com o ‘pós-institucionalismo’ entendem que há um número excessivo de instituições desta espécie na Escandinávia e na Holanda, e que, portanto, devem ser criadas iniciativas concomitantes – a estas já consolidadas – de retorno a um sistema mais solto, espontâneo e intuitivo. Iniciativas que não almejem a longevidade, permitindo uma gama maior de possibilidades de atuação e inserção na esfera pública.     

Neste sentido, Demeester faz referência ao texto Ascensão e queda do novo institucionalismo, de Nina Montmann, no qual se pode encontrar passagens relativas a práticas institucionais alternativas levadas a cabo na Ásia, mais precisamente, na Índia e na China, e que de certa forma poderiam indicar direções para aqueles que são se dedicam à vertente ‘pós-institucionalista’. Estruturas mais dinâmicas vêm sendo experimentadas nesses países, o que tem conferido uma vitalidade notável aos seus respectivos circuitos. Demeester destaca que tais iniciativas são sempre coletivas, e que abandonam o modelo tradicional que concentra as decisões e o poder nas mãos de um diretor. Algumas delas inclusive são administradas por artistas. Neste ponto, entre parênteses, cabe evocar de passagem algumas iniciativas deste e de outros gêneros desenvolvidas por artistas no Brasil, tal como as galerias 10,20 X 3,60 e A Gentil Carioca, o Ateliê 397, a Casa da Grazi, o Rés do Chão, a Casa da Xiclet, o Torreão, entre outras.

As experiências asiáticas citadas no texto de Montmann acontecem num registro interdisciplinar, desenvolvendo projetos que não se limitam ao campo das artes visuais. Neste caso, percebe-se uma afinidade com o que vinha sendo proposto pelo ‘novo-institucionalismo’. Mas no que concerne ao tempo de vida das iniciativas e às suas estruturas físicas, as experiências asiáticas diferem bastante do modelo ‘novo-institucionalista’. Segundo Demeester, a viabilidade de determinadas iniciativas indianas e chinesas independe de uma estrutura arquitetônica, de um espaço físico para receber exposições. Na maior parte dos casos, pequenos escritórios servem de sede a partir da qual os envolvidos operam num movimento de irradiação, seja através da web em espaços virtuais, seja através da intervenção direta em espaços urbanos. Além disso, se dedicam ao que está sendo feito no presente, no agora, com todo frescor e nebulosidade que isso implica, o que é possível principalmente graças a uma espécie de despreocupação com a manutenção e longevidade das iniciativas.

Contudo, como alerta Demeester, não faria sentido importar este modelo asiático para a Europa do norte. A situação das instituições artísticas desses países é, de longe, menos favorável que a da Europa do norte. Estas iniciativas, que gozam de pouca ou nenhuma estabilidade, surgem como reações possíveis e alternativas em um contexto desfavorável em termos institucionais, como forma de manter a respiração crítica e criadora em atividade.

Provida de uma estrutura institucional consistente, a Europa do norte, de acordo com a sugestão de Demeester, deve levar em conta esses exemplos asiáticos, não no sentido de reproduzi-los, o que representaria um grande equívoco, mas como influências a serem aproveitadas e recontextualizadas pela corrente ‘pós-institucionalista’. Então, não seria o caso de abrir mão dos edifícios e de toda a infra-estrutura que os abastece e sustenta, muito menos posicionar-se à margem da cena institucional, mas pleitear uma posição que podemos chamar de oblíqua, visto que não é nem perpendicular (que corresponderia a um outro eixo, à parte) e nem paralela em relação às convenções institucionais, o que obviamente pressupõe uma forma estratégica de atuação. Esta obliqüidade traduz-se em atributos como a disposição para uma constante mutação, a abertura para os mais diversos avatares, a multiplicidade de abordagens, o desejo de ser um organismo vivo, um animal atento, a inclinação para o ‘além muro’, para o espaço público da vida cotidiana – em complemento às atividades discursivas e expositivas ocorridas no interior das instituições – a vocação promíscua, o interesse por colaborações de várias naturezas, a pluriformidade e uma atenção aguda àquilo que os artistas estão propondo, percebendo-os como os grandes agentes criadores.

Tais são as premissas que vêm direcionando a atuação de Demeester como diretora do de Appel arts centre, fundação artística sediada em Amsterdam, Holanda. Articulado a isso, ela usa uma metáfora extraída do romance A casa das folhas, de um autor cujo nome escapa ao conhecimento de quem redige estas linhas, que se aplica muito bem às instituições artísticas verdadeiramente comprometidas com as questões contemporâneas. Segue abaixo a transcrição desta fala de Demeester, que encerra a sua exposição oral:

No romance, ele [o autor] descreve a casa de um cineasta, o qual descobre que há nela um “problema”. A cada manhã aparece uma sala nova. Num determinado momento, ele [o cineasta] descobre uma caverna infinita. A casa se expande e se encolhe, ela se mexe, ela se transforma, e ela se adapta ao estado mental das pessoas que moram dentro dela. Então a casa é um tipo de organismo vivo, ela reage à psicologia e às necessidades das pessoas que nela moram. 

No papel de debatedora da conferência, a artista e docente Ana Maria Tavares, após traçar um providencial panorama histórico da situação institucional no Brasil, formula uma questão bastante pertinente à discussão acerca do acolhimento e extroversão de práticas artísticas imateriais, pautadas na processualidade, e que freqüentemente acontecem fora da moldura institucional. Neste sentido, teríamos duas situações e públicos distintos: primeiro, as pessoas envolvidas diretamente com o processo disparado pelo artista numa espacialidade/temporalidade específica; segundo, as pessoas que acessam este processo de maneira indireta, por meio de referências apresentadas no contexto institucional. Em resumo, as facetas do problema levantado por Ana Tavares podem ser apresentadas nestes termos: como estas práticas artísticas podem retornar para a instituição? a quem cabe esta transposição ou tradução? a responsabilidade é dos artistas? como os curadores podem proceder? Articulado às indagações, a debatedora cita o caso da 27ª Bienal de São Paulo, que contou com uma quantidade significativa de trabalhos e traduções desta espécie. A título de exemplo, podemos evocar os projetos de Gordon Matta-Clark, Minerva Cuevas, Marjetica Potrc, Virginia de Medeiros e do Superflex (apesar da censura), além de iniciativas como o Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC), Taller Popular de Serigrafía e Eloísa Cartonera.

Para comentar esta questão, Demeester se baseia numa prática museológica desenvolvida em certas instituições belgas, que buscam formas alternativas de preservação e apresentação de práticas artísticas imateriais. O procedimento corresponde a uma larga documentação das experiências envolvidas nos projetos artísticos, possibilitando a construção de um arquivo “sombra”. Apesar de perceber um impulso paradoxal nesta operação, Demeester crê na possibilidade de se coletar e colecionar o maior número possível de elementos concernentes às práticas (efêmeras) em questão, para uma posterior filtragem e seleção. A partir disso, torna-se possível aos curadores inspirar-se em tais projetos, não num sentido meramente alusivo, em que os elementos são apresentados como vestígios em vitrines, mas criando uma segunda vida para estas práticas, numa tentativa de atualização. 

Aqui, para finalizar, caberia citar duas realizações, frutos de pesquisas desenvolvidas por curadoras brasileiras, que trazem contribuições significativas para este debate. Trata-se da exposição Lygia Clark, da obra ao acontecimento. Somos o molde, a você cabe o sopro, de Suely Rolnik, montada na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2006; e do livro Poéticas do processo: arte conceitual no museu, de Cristina Freire, que traz a investigação e a retomada do acervo de arte conceitual do MAC-USP.