Mesa 3 - Interesses e conflitos, mercado e artista

Ana Letícia Fialho, Ricardo Basbaum (palestrantes), Afonso Luz (debatedor), Laymert Garcia dos Santos (moderador), por Beatriz Scigliano Carneiro

O debate da véspera teve como foco a compreensão da arte brasileira como uma questão local em relação à arte ocidental e os conflitos decorrentes, foi portanto uma discussão mais conceitual. Agora nessa mesa são abordados os pólos mercado e artista, em busca de um diagnóstico das relações estabelecidas entre estes no sistema internacional, em termos tanto de convergência de interesses, quanto de conflitos. O moderador assinala que a discussão começa a se encaminhar para a situação contemporânea.

Ana Letícia agradece a oportunidade de debater questões que a preocupam e que foram deixadas de lado temporariamente depois do doutorado concluído na França em 2006 e que agora mostram a importância de serem retomadas. Apresenta então uma parte do seu estudo sociológico sobre a arte brasileira inserida no mercado internacional da década de 80 até o ano 2000. A tese demandou seis anos de estudos. O ponto de partida do trabalho foi operacionalizar uma pesquisa que problematizasse uma afirmação corrente dos anos 90, a de que “os artistas brasileiros estavam conquistando espaço de destaque internacional”. Logo ao se dar início à investigação surgiram os equívocos e as nuances dessa afirmativa. Além disso, muitos outros locais de produção cultural não eram alvo de interesse dos centros hegemônicos da arte. Nesse sentido coube-lhes a definição “zonas de silêncio” do curador e crítico Gerardo Mosquera, que caracteriza lugares com intensa atividade artística mas que não ecoa nos centros. Surgiram então duas questões: Qual a origem do movimento que abriu a arte internacional para outros locais ? Havia reconfiguração dos centros hegemônicos de legitimação da arte?

A hipótese central do trabalho de doutorado implicou investigar se houve de fato diversificação de artistas e obras de locais diversos nestas três décadas e se ocorreu aceleração dos processos de legitimação da arte fora dos centros, com foco na posição do Brasil. A complexificação das instâncias de legitimação traz aumento da concorrência entre elas, isso faz com que cada uma procure se distinguir das outras como a mais capaz de avalizar a arte.

Pesquisou-se cuidadosamente o que se produzia sobre a arte do Brasil na cena internacional em críticas, textos, exposições no período escolhido. Três pontos surgiram da análise desse material empírico levantado: havia uma tendência apoiada na linha do exotismo, da diferença, do sotaque local, outra vertente buscava aniquilar as diferenças, pois as obras teriam aspectos universais, o terceiro ponto é a forma crítica atual que rejeita os dois pontos anteriores mas ainda não está consolidado.

No telão foram mostradas tabelas com dados concretos sobre o aparecimento do Brasil nos centros hegemônicos, em leilões internacionais de arte, em eventos como a Bienal de Veneza, Documenta de 1959 a 2002, nas coleções do MOMA, da Tate – locais que ditam a arte contemporânea, sem perder de vista a forma como a arte brasileira foi entrando nesses espaços. Os artistas brasileiros que estavam participando da cena internacional foram identificados nominalmente, o foco recaiu porém, nos artistas que eram escolhidos por curadores internacionais, para assim se observar melhor a posição e atuação de certos curadores estrangeiros nas suas estratégias de buscar uma renovação para seus próprios centros hegemônicos.

Hoje se percebe que algo mudou, há maior diversidade na reconfiguração dos lugares que o Brasil ocupa internacionalmente. Permanece porém um eixo EUA-Europa que produz e legitima. Esse eixo é composto de uma rede de marchands, museus, editores que se abre ou se fecha ao que vem de fora e escolhe o que entra ou não. Esse conjunto forma uma espécie de academia invisível que nunca é colocada em cheque, e assim continua ditando o que interessa ou não.

Afora isso, nós do Brasil continuamos dando aval para certas instituições de fora como legitimadoras da arte, como a Documenta, por exemplo. Ao mesmo tempo há esse discurso atual de que não há mais centro de poder legitimador. O mercado está presente hoje, até nas políticas públicas de inserção de arte, mesmos na escolha dos temas das teses acadêmicas, assim como na inserção institucional nos museus. O Brasil não ocupa o “mercado global”, o que entra nesse mercado são apenas artistas e obras pontuais.

A globalização abre oportunidades a países que estavam fora, mas mesmo assim continua a ocorrer uma renovação controlada e desigual. Uma renovação controlada também pelo mercado.

De 2000 até hoje, as coisas têm mudado e iniciativas como a ZKM contribuem para uma alteração da exclusividade de um eixo e para a emergência de novas iniciativas..

A seguir a palavra passa para Ricardo Basbaum. Além de pensador, ele é também artista, no entanto, logo de início, deixa claro que não pretende funcionar como representante de artistas. Reconhece, porém, que suas reflexões e seu pensamento não se afastam da prática de fazer arte, pois seu próprio trabalho artístico lida com indagação do que é ser artista, de como este pensa sobre seu papel no circuito entre outros assuntos.

Novas práticas artísticas estão sendo realizadas no mundo, constroem sua especificidade em cada local onde é exibida e construída. Os artistas deslocam suas poéticas de bienal em bienal, de museu a museu. Suas obras são articuladas com as próprias estratégias de seus deslocamentos, e não apenas com as especificidades do local onde circulam. Aqui é importante deixar claro que se tratam de artistas, circuitos, coleções, sempre no plural.

No trânsito entre diferentes realidades durante seus deslocamentos, o artista acaba sempre por se sentir confortável ao encontrar o “cubo branco” em qualquer lugar. Todos os cubos brancos são semelhantes em qualquer lugar do mundo e funcionam como um tipo de abrigo.

Em 200 anos de herança das atividades artísticas, emergiu uma autonomia conceitual da arte, diversificaram-se os materiais, temas, funções. Essa autonomia conquistou-se por uma prática aberta e experimental que articula o campo sensorial com o campo conceitual. A obra coloca hoje uma dimensão sensível e também novos conceitos e sujeitos. A indagação sobre a arte incorpora-se na obra contemporânea. A obra traz nela mesma sua própria indagação enquanto arte. Entretanto, as potencialidades dessa articulação entre campo sensorial e campo conceitual não tem sido completamente exploradas.

As possibilidades múltiplas resultantes do experimentalismo são responsáveis também pela ruptura de fronteiras de linguagens entre as artes, assim como pelos deslocamentos da própria arte pelo circuito global.

A arte globalizada não é porém simples conseqüência dessa flexibilização, mas também dos rearranjos capitalistas que se interessaram pela arte. A dinâmica da arte encontra-se associada ao capitalismo e ao mercado de modos muito diversos. As coleções e as peças dos leilões são feitos com suportes mais convencionais. Já os eventos culturais estão ligados à espetacularização da cultura. Por sua vez, a opção artística mais radical se reúne sob certo didatismo, em ações que visam “construir” um público que seja diferente do público arregimentado pelo marketing.

Nesse circuito que envolve diretamente o artista no mercado, encontram-se as grandes feiras internacionais de arte empreendidas por galerias e marchands de várias partes do mundo. As feiras de arte descontextualizam as obras de seu local e as contextualizam na feira, sem que haja compromisso com algo que negue tal deslocamento de contexto. A obra na feira perderia então seu sentido crítico? A obra certamente agrega valor econômico, preço, ao entrar nessas feiras, então como retornar dessas feiras e produzir ou afirmar algo com outro sentido? Entretanto, há algo na arte que não se reduz a compra e venda, ao mercado.

Hoje, o artista brasileiro se “profissionaliza”, há honorários, contratos com instituições, é um processo relativamente recente em relação ao que já acontecia nos centros hegemônicos internacionais. Mas ainda há grandes eventos culturais que não “pagam” o artista no Brasil, este aparece como “anterior” às instituições da arte e é visto como alguém que trabalha por um altruísta “amor à arte”. A informalidade em ambientes comerciais é péssima para o artista, pois ele acaba trabalhando de graça, se torna infantilizado e considerado um mero diletante.

Em relação às coleções, a apropriação pelos museus e instituição das obras com parte de seu acervo depende mais de um “jogo de relações” do que dos reflexos da própria produção. No Brasil a distribuição de renda é desigual, assim com a dos valores culturais. Por outro lado, trabalhar internacionalmente desamarra o artista do “localzinho” e abre maiores possibilidades investigativas da própria arte com reflexos na criação e expansão de instituições que o abriguem.

O debatedor Afonso Luz esclarece que sua fala procede de sua filiação institucional enquanto representante do Ministério da Cultura para o setor de artes visuais.

Em relação aos pólos que nomeiam a mesa, afirma que hoje, não há mais dicotomia entre eles, pois tanto o artista quanto o mercado estão inseridos na economia contemporânea. Além disso, os palestrantes dessa e de outras mesas mostraram como conflitos de artistas com o mercado podem dinamizar a própria economia da arte, pois este sempre requer novos nomes e produtos e novos modos de se organizar. A economia contemporânea tem vendido não apenas obras mas o nome dos artistas. Isso talvez explique a dinâmica das feiras, a feira se tornou um verdadeiro portfólio de artistas.

Outra questão importante é a de quem determina o preço. Há uma configuração de ativos no nome da galeria e também no evento no qual a galeria está presente, como por exemplo, na feira de Basel. Entra aqui portanto, a questão do preço da arte. O artista precisa mostrar o que produz, onde expõe, os conceitos que vende com sua arte, assim se valoriza e sua representação no mercado por intermédio de galerias permite que sua trajetória seja reconhecida em circuitos amplos. O caso de Cildo Meirelles é emblemático da junção de valor artístico e valor comercial.

Atualmente, se assiste a uma recomposição do mercado mundial, não só da arte, com uma recuperação da influência da Inglaterra. Valem aqui notar o interesse londrino pela Tropicália e os temas das exposições da Tate Modern voltadas para arte latino-americana. Há diversas maneiras de se efetuar a pluralidade requerida por um mercado em expansão. As residências de artistas, por exemplo, pelas quais a produção é barateada, e os artistas muitas vezes produzem para serem colecionados.

Se o artista é o valor nessa globalização, como fica a economia do sujeito quando este é “precificado”? E a experiência desse sujeito, como fica? Afonso Luz introduz a noção de economia da experiência como uma das características da época contemporânea. Vivemos uma economia de experiências programadas. O sistema de design programa nossa vida, nossos objetos, nossos ambientes. Há uma economia de designs de experiências, experiências valorizadas e selecionadas pelo seu valor de uso e não apenas pelo valor de troca. O próprio centro cultural ZKM venderia experiências.

O conceito de arte depende também de uma “fidelização” do público pelo sistema artístico. Nessa economia de experiências programadas qual seria então a embalagem brasileira? O nacional poderia entrar com embalagens de nossas obras nesse sistema?

Hans Belting entra da discussão, antes pede desculpa por eventuais interpretações equivocadas que ele possa fazer, resultantes da confusão de línguas, pois em alguns momentos ele fala em inglês e em outros em alemão. Comenta a afirmação de Afonso de que o ZKM venderia uma etiqueta. Na verdade o projeto do ZKM procura uma nova “etiqueta” e não a venda de alguma marca pronta. Arte se vincula ao mercado, o ZKM e o mercado mudam, um fator condiciona o outro. O ZKM altera a arte e isso acaba por alterar o mercado. A seguir faz uma questão a Ana, partindo do pressuposto que ela teria mostrado que a que arte brasileira está representada no circuito. Pergunta se não seria necessário pensar outra forma de inserção. Argumenta que o MoMA está muito “historicista”, já não conta com a vibração de antes, trabalha quase que exclusivamente com que as pessoas querem ver. Sugere que é preciso então construir estratégias novas, novas instituições, novos posicionamentos, sair do eixo EUA-Europa, do eixo dos grandes museus. Seria ainda tão importante posicionar artistas brasileiros nesse eixo? Em vez disso, Belting coloca como muito mais relevante construir aqui no Brasil um eixo que tenha ressonância no exterior, no próprio eixo EUA-Europa a ponto de até ameaçá-lo. O eixo do mercado internacional está enfraquecido hoje. Demonstra curiosidade em entender porque museus e instituições de arte no Brasil criados nos anos 50 não se fortaleceram no sentido de se constituírem em um eixo capaz de gerar estratégias próprias de inserção.

Ana Letícia esclarece que apresentou os resultados de uma pesquisa sobre a inserção da arte brasileira no mercado e no sistema internacional de arte. Foi parte de um estudo sociológico com dados empíricos coletados para permitir um diagnóstico sobre o que de fato estava ocorrendo naquela época, sem julgamento do valor estético da produção brasileira. Não havia tampouco pretensão normativa de sugerir estratégias de inserção. No entanto, entre os aspectos que ela percebeu durante a pesquisa e que tem grande importância para esse debate é que a representação brasileira, independente de sua significação, não é feita por nós do Brasil, mas sim por instâncias do chamado eixo internacional, por curadores internacionais que se interessam por nossa arte. Exemplo: a história da arte do Brasil está sendo escrita, ou re-escrita pela Tate, pelo Museu de Houston.

Então, como criar estratégias de deslocar esse eixo como foi feito na China? Como seremos “players” nesse cenário?

Na condição de gestor de museu, Marcelo Araújo apresenta dúvidas sobre a presença do mercado ser assim tão decisiva na valorização das obras e dos artistas e questiona em que medida o mercado interfere com as atividades do museu e vice-versa. Qual a relação entre mercado e museu? Há limites para a questão do mercado, e cita que, por exemplo, o artista brasileiro que mais tem vendido para coleções internacionais, Cildo Meirelles, está ausente das feiras. Da perspectiva do museu, o que interessa é o impacto da arte global nas coleções brasileiras. Em relação à descontextualização da obras nas feiras de arte, caberia então ao museu o papel de ativar o sentido da obra em termos mais públicos.

Ana Belluzzo vê como muito positiva a possibilidade do artista hoje se deslocar, não se prender aos mesmos sítios, pois isso permite pensar a diferentes leituras de uma obra em contextos muito diversos. Esses deslocamentos são também demandas atuais que um artista deve atender. Em relação ao que Afonso comentou, ela questiona porque de repente fazemos questão de mostrar uma “embalagem brasileira” se buscamos ser internacionais.

Ricardo Basbaum responde a partir de uma experiência propiciada por sua produção artística. Na feira de Basel, havia um projeto para ser feito em containers. A ocupação que ele propôs para o container seria comentar, com outros artistas, a descontextualização das obras de arte proporcionada pela feira. Elaborou duas questões a cada artista convidado por ele para participar do projeto e apresentou um texto sobre a feira feito por uma crítica tcheca de arte. No entanto, havia o perigo de tudo isso ser neutralizado pela própria situação de feira. Vender a situação criou certo confronto. A obra foi usada para discutir a questão.

Ana Letícia responde a Marcelo Araújo e afirma que as instituições museológicas interferem no preço, no valor da obra, não há uma pureza que distingue espaço-mercado e espaço-instituição museu. O valor se cria nessa relação e não em abstrato no mercado. Desse modo, não se pode abrir mão de criar valor para nossas obras lá fora. Por outro lado, o mercado interno para o jovem artista brasileiro é mais generoso.

Segundo Afonso Luz, a questão da valorização do artista nacional toca o modelo de desenvolvimento do Estado brasileiro para o qual não interessam Inglaterra e outras nações e estabelecendo preços. Há estados nacionais e esse fato deve ser considerado. Infelizmente temos ainda um comportamento deslumbrado com o estrangeiro. A arte brasileira nos anos 60 foi favorecida por galerias inglesas. Como aproveitar as galerias de fora para nós agenciarmos nossos artistas hoje?

Para encerrar os trabalhos da mesa, o moderador Laymert comenta que na China se potencializaram estratégias, redefiniram-se as regras de acordo com seus interesses, por exemplo, a questões de propriedade intelectual foram equacionadas pelos chineses. Nós no Brasil não temos estratégias, reproduzimos tentativas de obter uma vaga no cenário internacional e quando conseguimos uma “vaguinha”, ficamos contentes, e parece que se perde o interesse de buscar outros espaços. A discussão do tema transcorria incisiva, propiciada pelo formato da oficina que possibilita a contribuição efetiva e adensada de cada convidado nos temas propostos, no entanto devido ao adiantado da hora, o debate é interrompido para o intervalo e montagem da próxima mesa.

A China apareceu nas falas de vários participantes, inclusive na apresentação inicial do projeto, senão como modelo, ao menos como um bom exemplo de planejamento de inserção institucional de arte de uma nação no mundo. Boa parte da iniciativa de colocação da arte contemporânea chinesa no circuito da arte, na rede de museus, galerias, leilões, catálogos, partiram de artistas chineses que se organizaram e contaram com o apoio do governo e foram parcialmente capturados dentro de uma estratégia maior de reposicionamento da nação na cena mundial. Entretanto não se problematizou até que ponto as experiências mais radicais chinesas tem criado algum ruído que ameace esse Estado extraordinariamente centralizador, a arte chinesa parece um setor neutralizado por uma redoma; é tolerada, desde que não coloque em cheque a autoridade, e útil à política de estado de “conquista” do ocidente.

A proposta de Hans Belting reforça-se nesta mesa pela intervenção deste no debate, o ZKM procura aliar-se a iniciativas institucionais dos lugares escolhidos para apresentação do projeto no sentido de ambos criarem estratégias de resistência ao eixo central de legitimação da arte global, o qual segundo ele já está enfraquecido. Percebe haver no Brasil elementos para isso, no entanto, sua perplexidade frente à impossibilidade de instituições brasileiras criadas nos ano 50 e 60 em se impor no eixo internacional não foi debatida. A entrada da arte brasileira na cena internacional não poderia depender de uma abertura de mercado internacional e de seus interesses de ocasião, mercado seria conseqüência e não meta, nem meio de se inserir. A proposta do ZKM tem o sentido de se aliar a núcleos de produção local significativa em termos estéticos e conceituais e seguir com estes em novos circuitos. Entram aqui os artistas, os poetas, os inventores como os agentes dinamizadores dos circuitos. Essa produção local precisa mostrar uma potência intrínseca e diruptiva que instigue centros hegemônicos a alterarem seus critérios e valores e descentralize a sede de convicções estéticas.