A História como campo de batalha

relato crítico por Maria Inigo Clavo

Relato crítico: Narrativas Museológicas

Uma conversa entre as pesquisas de Maria Leonor Carvalho, Fernando Stankuns e Zita Possamani

 

A primeira palestra, “Estudar a História com os pés na terra: uma perspectiva museológica aplicada ao currículo de História no 3º ciclo do Ensino Básico: o caso de Alcobaça”, de Maria Leonor Carvalho, deu uma boa base para a conversa. Sua pesquisa mostrava como o Museu e o Patrimônio das cidades pode ser um material pedagógico fundamental numa relação triangular: educação-patrimônio-museologia. O eixo principal do seu argumento seria, sem dúvida, a possibilidade de gerar uma cidadania ativa e um senso de pertença numa comunidade para os alunos. Para Carvalho, a tomada de consciência histórica na aula permite que os estudantes se apropriem de sua própria história, a partir da idéia do nosso: pois o sentimento de pertença é uma consequência da consciência histórica.

A proposta que a palestrante desenvolveu no Instituto de Educação da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em 2011 tem a ver, por tanto, com um ensino da história territorializada. Para isso ela marca três elementos fundamentais: temporalidade, espacialidade e contextualização. Tendo como ponto de partida essa tomada de posição, Carvalho elaborou cerca de 80 materiais pedagógicos que trabalham com diversos elementos do patrimônio: desde o patrimônio habitual como  uma catedral ou os objetos de um museu, até as novas formas de apropriação da história para a criação de novos patrimônios. Um exemplo disso são as jóias que usam os símbolos criados pelos canteiros pontos e que estão nas pedras do edifício da catedral.

Fernando Stankuns mostrou sua pesquisa sobre Le Corbusier e o uso da fotografia tanto para o próprio trabalho do arquiteto quanto na hora de mostrar seus trabalhos para o público. Nesse sentido, o autor questiona: "Qual é o valor que a fotografia assume nas exposições de arquitetura? Será que ela pretende trazer a realidade na forma de documento ou seria uma (re)interpretação do que nos é apresentado pelos arquitetos em seus projetos? As fotografias são apresentadas em seu valor artístico ou como documento?". Ao longo da palestra comentou vários casos de mostras históricas nas quais se expôs pela primeira vez o trabalho de Le Corbusier, e nas quais ele teria participado do planejamento do display, já que nessas mostras a fotografia era um importante articulador do discurso curatorial. Se bem Stankuns mostrou como a relação da fotografia com a arquitetura é tão antiga quanto a invenção mesma da fotografia, a relação vai se consolidar a partir da aparição da arquitetura moderna: do mesmo jeito que a arquitetura divulga a arquitetura também a promove.

Stankuns foi apontando uma cronologia de alguns momentos importantes como as de Mies van de Rohe nos EUA até chegar à mostra de Le Corbusier no MASP que aconteceu pela primeira vez em 1950. Ela já tinha sido realizada dois anos antes no Institute of Contemporary Art de Boston.  Um pouco antes da mostra Lina Bo Bardi tinha reformado o MASP, dessa forma, a mostra de Le Corbusier foi uma das primeiras a inaugurar o novo espaço. O palestrante mostrou as diferenças entre o display de Boston e a mostra do MASP. Nesta última o trabalho de Le Corbusier estava muito mais integrado produzindo relações interessantes com o próprio edifício e a criação de Bo Bardi.  Na minha opinião, o argumento poderia ter se beneficiado de uma postura um pouco mais crítica e política do uso da fotografia, por exemplo, seria interessante saber qual é a consequência da inclinação de Le Corbusier pela fotografia monumental de seus prédios, realizar uma análise das implicações que tinha o display em Boston vs. MASP para compreender melhor o propósito e as conclusões  dessa comparação.

A última apresentação, “Imagem e Artefatos: estudos sobre o acervo do Museu Júlio de Castilhos”, de Zita Possamai tinha por tema o estudo do Museu Júlio de Castilhos, (situado no Rio Grande do Sul) e a sua relação com o público durante o período de 1903-1925. O espaço foi usado para colecionar e mostrar objetos de zoologia, botânica e mineralogia, e receber visitantes interessados na sua coleção.  Um dos propósitos é mostrar como os museus históricos podem ser estudados a partir de uma perspectiva histórica. Possamai mostrou a evolução do projeto e como foi desenvolvendo programas de ensino inovadores e comprometidos com uma educação mais relacional, que na época era menos habitual.  A estudiosa substituiu os exercícios de memorização por um fomento da intuição do aluno. O método das lições tinha sido veiculado por meio de manuais pedagógicos da época.

O museu conciliou a função científica e a educativa partindo da idéia de que a educação científica era uma via para "alcançar o progresso civilizatório da sociedade", "legitimou-se na sociedade gaúcha por oferecer os subsídios necessários a uma educação calcada nos parâmetros positivistas e evolucionistas", e "forneceu exemplares naturais para a educação dos sentidos, lição das coisas aplicada nas escolas do Rio Grande do Sul".

Achei muito interessante, que nos dois casos de museus sobre história se mostra uma importante tradição de trabalho educativo através do patrimônio que, segundo Luis Gerardo Morales Moreno, é uma das características do Museu Latino-americano, e concordo que é um das matérias-primas mais importantes que temos para estudar tanto o passado quanto o presente. Também acho fundamental essa procura na História, de acordo com Didi-Huberman, “só se expõe a política mostrando os conflitos, os paradoxos e o choques recíprocos que tecem toda a História”. A memória será um campo de batalha, pois quem tem o poder de escrevê-la poderá definir o presente e sequestrar o futuro. Para resgatá-lo será preciso repensar a História de uma forma crítica. Em todas as palestras, e especialmente na última, senti falta de uma problematização dos termos usados para as argumentações. Essa falta de  questionamento seria o sintoma de que os pesquisadores  não estão interessados nas relações de poder que acontecem nos espaços institucionais, acima de tudo, espaços disciplinares. Teria sido interessante, para mim, introduzir uma reflexão sobre palavras como civilizatório, identidades nacionais, discursos históricos oficiais, evolucionismo e positivismo. Uma visão crítica poderia garantir uma evolução, uma aprendizagem da história que fosse além dos grandes símbolos e grandes nomes oficiais, uma visão crítica para ajudar na criação de modelos para o futuro.

 

Maria Inigo Clavo