Outros museus; outros processos

relato crítico por Claudia Rodríguez Ponga

Relato do painel “Museologia, Território e sociedade”

 

O primeiro simpósio internacional de pesquisa em museologia (SInPeM), realizado na Pinacoteca do Estado de São Paulo, se destaca por seu abordagem interdisciplinar, o que o diferencia de outros encontros sobre museologia e provavelmente contribuiu a torná-lo muito mais acessível para aqueles que não estão envolvidos diretamente nessa disciplina. A sua interdisciplinaridade vem da relação deste evento com o primeiro programa de pós-graduação inter-unidades em Museologia da Universidade de São Paulo, sendo esse o contexto acadêmico no qual o simpósio foi concebido.

O painel 2 serviu como prova de que a museologia não é necessariamente assunto tedioso ou só apto para seus próprios praticantes. Intitulado “Museu, território e sociedade”, o painel da tarde abriu com o auditório lotado. Felizmente a Pinacoteca tinha habilitado provisoriamente a área do pátio com equipes audiovisuais adequados para presenciar, mesmo que fosse virtualmente, as comunicações dos palestrantes.

A primeira palestrante, Camila Moraes Wichers, apresentou o projeto mais completo, rigoroso e  socialmente comprometido do painel. Infelizmente, não é sempre que os melhores projetos fazem as melhores comunicações, e a apresentação de Camila não conseguiu estar a altura dum projeto que a situa como uma figura de referência na área da musealização do território e a sociedade brasileira.

O grande eixo de reflexão da pesquisa de Camila Moraes Wichers é a noção de memória exilada aplicada à arqueologia brasileira. Trata-se de uma reflexão sobre a construção da memória como suporte fundamental da identidade, e de como esse processo pode significar a inclusão ou exclusão social de alguns grupos, dependendo do que for lembrado ou esquecido. Nesse sentido, a arqueologia pode ser instrumentalizada na luta contra os passados subterrâneos para trazer uma materialidade que fortaleça “uma memória do poder ou o poder da memória”. Assim, a arqueologia contribui para desfazer falsas narrativas, ajudando na construção duma identidade mais acorde à verdade. Os museus locais e regionais seriam os espaços privilegiados para esse tipo de processo, ao invés dos museus nacionais, dado que a identidade homogênea não existe.

Mas o importante da pesquisa desta palestrante não é apenas seu respaldo teórico, senão o trabalho de campo por ela realizado ao longo de duas teses: uma em relação ao percurso da ferroviária nordestina, e outra ao redor do museu de Araraquara e as comunidades do norte do estado de São Paulo. Nas duas destaca-se o que parece um trabalho magnífico com as comunidades envolvidas, em parceria com ONGs e instituições governamentais. A maioria destas comunidades não tem aceso a museus de tipo nenhum, e por isso o projeto da palestrante consistiu também na criação de programas de educação patrimonial realizados nas respectivas regiões onde foram desenvolvidas as pesquisas. O tempo dedicado a colocação em prática do projeto de Camila foi, porém, brevíssima, um erro que talvez se justifica, ao menos parcialmente, pela limitadíssima duração das comunicações.

A continuação veio com Bruno Brulon Soares, que provavelmente foi o palestrante de  maior interesse para quem pertença à área da teoria da arte. Bruno Soares expôs seu conceito de performatividade em relação à sacralização do musealizado por um lado, e a musealização do sagrado por outro. Para isso apresentou ao longo de sua comunicação dois estudos de caso, ambos franceses: o Ecomusée d’Alsace e o Musee du Quai Branly.

O primeiro, um museu rural contemporâneo, supõe primeiramente um exemplo perfeito de território (e sociedade) musealizado. Em segundo lugar, apresenta uma série de caraterísticas que o convertem também num “meta-museu”, já que dentro da estrutura deste museu de vanguarda pode-se achar também um pequeno museu tradicional. Este simulacro de museu (um artificio que se produz dentro do que é já artificial) representa um anacronismo dentro dum museu que se caracteriza por ser performático e interativo, e onde os visitantes estão ocupados vendo coisas acontecer ou serem dramatizadas através de sua encenação. Como o palestrante lucidamente reflete: “num mundo povoado por museus e performances não existe cultura sem palestra”.

Em outra seção do museu pode-se visitar um museu-cemitério, tão bem encenado que recebe aos visitantes com uma placa onde adverte: “Este não é um cemitério. Trata-se de uma coleção de monumentos funerários datando do século XIX ate meados do século XX e salvos da destruição”. Sem dúvida um aviso necessário dado o realismo do simulacro. É graças a este exemplo que o palestrante começa a dirigir sua fala para o assunto da religiosidade, incluindo neste ponto de seu discurso a referência a uma igreja rural que também pode-se visitar dentro do mesmo complexo cultural. Nesse momento do percurso “os visitantes tornam-se fiéis”, reproduzindo nesse palco os comportamentos próprios dos crentes.

O segundo caso de estudo que Brulon Soares apresenta é o Museu etnográfico de Quai Branly, especializado em expor objetos pertencentes a cultos religiosos alheios (não ocidentais). Especificamente, o palestrante analisa o caso duma exposição sobre arte maori. O conflito reside em que os materiais que se expõem (tendo sido tirados do contexto onde eram transcendentes) viram elementos decorativos com um sentido unicamente estético. O exemplo é usado para falar de como os objetos, tendo sido de-sacralizados por causa de sua musealização, são sacralizados dentro de outra forma de religiosidade laica.

Teria sido produtivo colocar o discurso de Bruno Brulon Soares em relação com o da próxima palestrante, Maria Ignez Mantovani Franco, cuja pesquisa visa sublinhar a importância de desenvolver museus de (e sobre) as megacidades. Os argumentos apresentados pela palestrante são razoáveis e sólidos, sobre todo desde o ponto de vista da sociologia.

A importância deste tipo de projeto museológico é justificada pelo argumento de que no ano 2030 aproximadamente 5 bilhões de pessoas serão moradores de alguma megacidade, e que ainda não existe um museu que dê conta deste fenômeno. A hipótese que defende Maria Ignez Mantovani é que, tendo a estatística anterior em consideração e sendo que o XIX foi o século dos museus de história natural e o XX o século dos museus de arte, o século XXI será o século dos museus de cidade. Especificamente, dos museus das megacidades.

Este museu é esboçado como um observatório com capacidade de absorção das constantes transformações da megacidade. Mas, além da utilidade deste museu, nós não podemos deixar de perguntar:  Que seria sacralizado nesse processo? Enquanto o eco-museu rural supõe uma idealização duma forma de vida sustentável e equilibrada, será que o museu da megacidade poderia talvez servir para envolver num aura sagrada uma forma de vida inviável e baseada na miséria da maioria e na deteriorização massiva do meio ambiente? Ou seria o museu da megacidade um lugar onde assumir e encarar as dificuldades que apresenta dita macro estrutura?

Pontualmente (pois a duração de vinte minutos por comunicação foi respeitada rigorosamente ao longo do painel) chegou a hora do último palestrante, Pedro Leite, que nos falou sobre o seu projeto Casa Muss-Amb-Ike. Enquanto a exposição de Camila Moraes, a despeito de sua ausência de atrativo comunicacional, serve para entender a seriedade de sua proposta e o volume de trabalho nela implícita, a comunicação do ultimo palestrante, Pedro Leite, deixa dúvidas sobre o peso real de seu projeto.

O projeto (cujo espírito foi, sim, bem transmitido pelo palestrante) consiste na integração da experiência sensorial e mnemônica no processo de musealização duma cultura. Partindo da base, no entanto, de que o museólogo, neste caso, só pode operar desde o olhar do “outro”. Isto é, desde um lugar alheio à cultura que visa musealizar. A experiência da viajem é essencial dentro do modelo que propõe este palestrante, sendo a viagem o espaço onde se interligam a sensação de tempo que o viajante e museógrafo experimenta no seu percurso com a informação dos sentidos. O museu é entendido como pesquisa sensorial. Em resumo, a noção de poética acha-se totalmente ligada à proposta de Pedro Leite.

Mas o mesmo que faz este projeto atraente contribui à confusão quando exposto. Pode-se pensar que o palestrante, preocupado com a coerência, quis procurar uma forma de se exprimir que estivesse de acordo com a essência do projeto. No entanto, o que talvez procura ser um uso poético da linguagem e da terminologia vira um impedimento, sobre tudo porque não parece se organizar em torno duma estrutura. A repetição de conceitos ambíguos em ordem aparentemente aleatória confunde o discurso do palestrante. Como resultado, a comunicação evoca uma visão do projeto fragmentada e nebulosa, onde não fica claro o que foi feito ou, simplesmente, quais foram os achados do processo.

O Painel 2 do simpósio organizado pelo Museu de Arqueologia e Etnologia, a ECA-USP, o Museu Paulista e a Secretaria de Cultura fecha com a intervenção da coordenadora Heloise Lima Costa, que na sua conclusão cita uma frase de Pedro Leite, e que talvez tenha a ver com o caráter interdisciplinar deste simpósio. A noção de que “quando olhamos para o outro estamos olhando para nós próprios” tem se espalhado ao longo de inúmeros ramos de conhecimento, e talvez especificamente das chamadas ciências humanas.

Que as verdadeiras pesquisas só podem ser realizadas desde um lugar especifico no mundo, desde um centro ou, citando ao curador da ultima Bienal de São Paulo Luis Pérez-Oramas, desde um “ser locais[1] é uma verdade dificilmente discutível. Mas “ser locais não é ser localistas” e a certeza de saber “que se pensa a partir de um limite”[2] não pode ser pretexto para a perpetuação duma “nova cara de uma velha afeição européia pelo exótico”[3]. Sendo, é claro, o exótico algo que muda de um lugar para outro. Por isso acha-se importante sublinhar que quando olhamos para o outro deveríamos estar, principalmente, olhando mesmo para o outro, ainda se desde os limites (infinitamente proveitosos) de nosso ser único no mundo.

 

Claudia Rodríguez Ponga



[1] PÉREZ-ORAMAS, Luis (2012) A iminência das poéticas. Dentro do Catálogo da 30º Bienal de São Paulo: A iminência das poéticas / curadores Luis Pérez-Oramas ... (et al.). Fundação Bienal de São Paulo, São Paulo. p. 28

[2] PÉREZ-ORAMAS, Luis (2012) Op.Cit: p. 28

[3] PÉREZ-ORAMAS, Luis (2012) Op.Cit: p. 28