Você está aqui: Página Inicial / Eventos / Simpósios e Seminários / Impressões do Sul sobre o transmediale 2009

Impressões do Sul sobre o transmediale.09

Por Gabriel Menotti


conf transmediale.09


Aterrissar numa Berlin alguns graus abaixo de zero e andar por ruas perigosamente cobertas de gelo. De repente, o derretimento das calotas polares parece um risco distante na cabeça de qualquer sul-americano. A minha maior preocupação era não escorregar, enquanto me aproximava da House of World Cultures.

O peculiar edifício, apelidado pela população local de “ostra grávida”, é o mais relevante centro alemão de arte não-européia. Foi ali que aconteceu a Copa da Cultura, grande exibição de coisas-do-Brasil, simultânea à Copa de 2006. Envolto em neve, o lugar não parecia guardar resquício do calor e agitação tropicais. Assim mesmo, era nesse cenário congelado que o último festival transmediale situava uma intensa programação voltada para o debate das catástrofes climáticas que ameaçam o planeta, entre 27/01 e 01/02.

O transmediale está entre os mais importantes eventos de arte, mídia e tecnologia do mundo. Ele surgiu em 1988, um ano depois do primeiro Prix Ars Electronica (e cinco depois do primeiro Videobrasil). Até 1996, se chamava simplesmente VideoFest – desde então estabelecendo um contraponto tecnológico ao renomado festival de cinema de Berlin, que se explicita no seu título atual.

Muito embora seja baseado em uma exibição competitiva e encerrado por uma premiação, como tantos festivais do gênero, o transmediale é conhecido por seu alto teor propositivo – por buscar temas que sejam relevantes para a discussão do impacto sócio-cultural das novas tecnologias, definindo a pauta de outros fóruns de artemídia. O evento deste ano, no entanto, foi a reboque de um assunto que já há alguns anos vem ocupando os principais telejornais do mundo – pelo menos, desde o filme do Al Gore. Aquecimento global.

Ou melhor, Deep North: o norte gelado, território pronto a se desfazer em líquido e invadir a civilização. A sofisticação do tema pode sugerir que o principal efeito do aquecimento global seja uma aquaplanagem do mundo. Os pólos se alastram um em direção ao outro, transformando tudo que os separa numa superfície indistinta. Sem extremos para definir uma hierarquia climática, todas as regiões se tornam igualmente insuportáveis.

Por outro lado, o conceito também indica o quanto a discussão do festival era localizada. Para qualquer um abaixo da linha do Equador – os países do tal Sul – norte extremo anuncia calor insuportável e desertos escaldantes, e não geleiras prestes a derreter. Não deixa de haver aí um certo alarmismo de 1o Mundo, e não é pra menos. A catástrofe climática nivela o planeta completamente, inclusive em termos sócio-econômicos. Não haver extremo é como não haver margem: no centro ou na periferia, nações são igualmente devastadas. As metades geopolíticas do mundo perdem a discrição. Como lidar com isso?

Essas questões não eram trabalhas apenas nas obras em exposição, mas também em uma série de mostras de vídeo, workshops, palestras e performances. Trabalhadas até demais, eu diria – a um ponto em que ficava difícil entender como certos debates se relacionavam aos assuntos próprios do campo de arte e tecnologia. Por mais urgente que seja o tema, ao investir pesadamente na discussão de seus aspectos gerais, o transmediale deixou um pouco de lado polêmicas particulares que poderia estar aprofundando, em se tratando do fórum ideal para tanto. Em certos momentos, eu me sentia de volta ao Brasil, mais precisamente em Belém, onde naquele exato momento acontecia o Fórum Social Mundial.

O tom austero adotado para abordar questões climáticas não permitia que elas fossem muito além do convencional, e acabava por exaurir a contradição essencial que havia no evento: a preocupação ambiental, por mais que tenha seu lugar na ética liberalista, é imediatamente incompatível com uma forma de arte que explora e elogia o desenvolvimento tecnológico. O motor de progresso que possibilita tal desenvolvimento é justamente um dos principais responsáveis pela exaustão dos recursos naturais. Ainda assim, poderia a tecnologia nos salvar?

A dificuldade em lidar com esse imbróglio também podia ser percebida no design de exposição do evento. A proposta do chamado Camp DEEP NORTH era transformar a House of World Cultures em um “abrigo seguro, uma arca moderna” para o caso de Berlin sofrer súbita inundação. Na prática, isso significou um certo cosplay de precariedade: colchões espalhados por todo canto, projeções em telas mal-ajambradas, embalagens servindo de suporte para as obras, placas informativas coladas com fita adesiva pelo chão. O público soube aproveitar bem o espaço, mas era tudo desleixo calculado, cheio de dedos. Como abrigo, não mais que uma metáfora – diferente, por exemplo, do Bunker abandonado onde acontece o festival Piksel. Outra vez, era impossível não pensar no Fórum Social Mundial – digo, no Acampamento da Juventude.


camp deep north  camp deep north 2

Camp DEEP NORTH

Mas, enquanto a programação do transmediale apenas rondava em torno da articulação entre produção tecnológica, exploração ambiental e dinâmicas sócio-econômicas, algumas obras atingiam diretamente esse ponto. É o caso de Tantalum Memorial (Harwood, Wright, Yokokoji, 2008), que recebeu o primeiro prêmio do evento: uma robusta escultura feita com as peças de telefones antigos. Originalmente, o mecanismo era acionados em resposta às ligações feitas em uma rede de telefonia social, utilizada por refugiados africanos em Londres. No transmediale, ela funcionava com um banco de dados dessas gravações.

tantalum memorial 1  tantalum memorial 2

Tantalum memorial


Como o nome indica, a obra é um memorial a todos que morreram nas sangrentas disputas em torno do metal tantalum. O coltam, liga de tantalum encontrada principalmente no Congo, é utilizado na indústria de telecomunicações e videogames. Ele serve por exemplo para a fabricação de componentes essenciais de telefones celulares, o que faz dele “mais valioso que ouro” atualmente. Sua exploração está ligada às guerras civis que atormentam a África, e seu comércio se mistura ao tráfico de armas para dentro do continente.

Desde o início do evento, a obra marcava bastante presença no foyer da House of World Cultures – talvez por ser uma das poucas esculturas entre tantas telas e projeções. Mas, mesmo antes de ser premiada, seu efeito no festival já havia sido marcante. As questões que ela suscita haviam se tornado o principal foco de um dos mais concorridos painéis de Critical Consumer Practice, que debateu longamente a periclitante situação do Congo e sua relação com a aparentemente inofensiva tecnologia dos telefones móveis.

Foi um momento em que o transmediale funcionou em pleno vapor. Como premiação, ele reconhece e autoriza a importância de uma obra e das questões por ela tratadas. Mas, ao se abrir para esse tipo de desdobramento da produção artística, passa a operar em cumplicidade com ela. A obra realiza potenciais que não podem ser compreendidos com a mera exposição. O festival, por sua vez, aprofunda e materializa suas preocupações temáticas. Como numa promessa da resolução das crises ambientais, a tecnologia e seu entorno atuam em conjunto.

Links

House of World Cultures - http://www.hkw.de/en/index.php
Transmediale - http://www.transmediale.de/
Catálogos VideoFest - http://www.transmediale.de/en/programme-catalogues-1988-2008
Prix Ars Electronica - http://www.aec.at/prix_about_en.php
Festival Videobrasil - http://www.videobrasil.org.br/
Uma Verdade Inconveniente (“o filme do Al Gore”) – http://www.climatecrisis.net/
Fórum Social Mundial - http://www.forumsocialmundial.org.br
Piksel – http://www.piksel.no/
Tantalum Memorial - http://mediashed.org/TantalumMemorial
Coltan, a liga de Tantalum usada na fabricação de celulares - http://en.wikipedia.org/wiki/Coltan
Áudio de todos os painéis do transmediale:  http://structures.clubtransmediale.de/?p=290


Todas as fotos são de Gabriel Menotti