Arte e cultura como campo de negociação

Relato sobre a terceira mesa do primeiro Seminário Internacional de Arte e Educação do Instituto Inhotim, intitulada "Arte, Educação, Museu e Comunidade” com Chico Magalhães (Belo Horizonte), Silvia Brasileiro (Recife) e Marcus Faustini (Rio de Janeiro), em 24/08/12.

Por Rachel de Sousa Vianna e Maiza Franco

A mesa reuniu três convidados, de três estados diferentes, para falar de três projetos. Marcus Faustini apresentou a Agência de Redes para a Juventude, que desenvolve um trabalho com jovens moradores de comunidades pacificadas no Rio de Janeiro. Sílvia Brasileiro falou sobre o Programa Jovem Artesão, desenvolvido pelo Museu do Homem do Nordeste, com sede no Recife. E Chico Magalhães contou sobre o projeto O Museu Guardas, realizado pelo Museu Mineiro, localizado em Belo Horizonte. Janaina Melo, curadora de arte e educação do Instituto Inhotim, fez a mediação.

Invenção/Reinvenção são as palavras que mais sobressaíram na fala de Marcus Faustini. Esse carioca, filho de paraibanos, inventou um lugar para si bem distinto do que se espera de um jovem da periferia do Rio de Janeiro. Ele é cineasta, escritor e diretor teatral. Apresenta-se como um obstinado em inventar algo para si. Inventou “um lugar de fala”, de quem carrega consigo seu “pacotinho de habilidades” e “recombina invenções de vida”, disputando um lugar na cidade.

Marcus apresentou a metodologia desenvolvida na Agência de Redes para a Juventude. Esse trabalho foi sendo traçado a partir de suas experiências de jovem pobre e urbano.Segundo ele, já na infância aprendeu a circular por grandes distâncias pela cidade do Rio para visitar as tias na doença ou economizar comida em casa, o que o encorajou a fazer, na juventude, sua própria circulação. Aliás, mais que aprender a circular, ele inventou sua mobilidade na vida: foi punk; funqueiro;fez parte dosmovimentos estudantil e teologia da libertação; até chegar ao teatro.

Essa mobilidade demandou o que Faustini chama de “reinvenção do espaço-tempo”: instauração de um lugar de fala, reinvenção de imagens estéticas, ocupação de espaço social diferente daquele destinado a um morador da periferia. O trabalho da Agência consiste em introduzir os jovens nas “redes de expressão” e, por meio de uma metodologia, capacitá-los a organizar, desenvolver e avaliar suas próprias ideias, tornando-as ações efetivas que possam interferir na vida de cada um, bem como na coletividade em seu entorno. A iniciativa traz consigo a ideia de “agenciamento”, palavra que carrega a noção de negociação e de agente.

Para formação da primeira turma foram selecionados 300 jovens, dentre 900 entrevistados. O processo de seleção da segunda edição está em andamento. Jovens de todos os territórios com UPP(Unidade de Polícia Pacificadora) implementada ou em processo de implementação puderam se inscrever. Mil foram entrevistados. Segundo Faustini, dá-se preferência àqueles mais à margem dos repertórios para construir uma mobilidade e disputar um lugar na cidade. Após a fase de entrevistas, os selecionados são colocados em contato com um conjunto de mediadores para trabalhar em estúdios de criação e iniciam as etapas do percurso metodológico, que são: inventário, mapeamento, abecedário, avaliação e defesa.

Cada jovem apresenta uma ideia, que pode ser no campo da arte, da moda ou mesmo um projeto social. A partir daí, ele realiza um inventário e um mapeamento de tudo que existe na comunidade que possa ajudá-lo a efetivar sua ideia. Em seguida, ela é escrita em forma de abecedário, para maior clareza e definição, e discutida com convidados externos (doutores da academia) e no próprio território. Por fim, o autor da ideia tem de defendê-la perante uma banca, formada por representantes do governo e de agências de financiamento. São selecionados os melhores projetos e cada um recebe R$ 10.000,00 para  implantá-lo. Atualmente,trinta projetos estão sendo efetivados.

A metodologia da Agência de Redes para Juventude já conquistou reconhecimento internacional: escolhida pela Fundação CalousteGulbenkian, foi contemplada com o maior prêmio para as artes performativas do Reino Unido, e vai receber 175 mil libras para ser implementada em Londres e Manchester, na Inglaterra.

Para apresentar o Programa de Formação do Jovem Artesão, Sílvia Brasileiro mostrou várias imagens dos jovens e dos produtos criados por eles em quatro edições do Programa, que teve início em 2004 e continua ativo, com a abertura da quinta turma na semana anterior ao Seminário. Desenvolvido em parceria com a ONG Movimento Pró-Criança, o Programa funciona em diferentes núcleos, formando uma rede de articulação. Todos trabalham com a mesma metodologia, adaptando-a para atender às especificidades de cada comunidade.

Investindo na iniciação profissional de jovens através da formação continuada, o Programa tem como objetivo fazer da produção artística uma alternativa para atividades econômicas capazes de gerar trabalho e renda para os participantes e as comunidades envolvidas. A capacitação envolve aulas-passeio,  vivências práticas com artistas plásticos e designers, aulas sobre empreendedorismo e cooperativismo. O processo tem início com atividades de desenho, pintura, escultura e gravura. Na fase seguinte, os jovens escolhem que tipo de material e produto querem desenvolver e recebem apoio técnico e artístico de designers para definir e pesquisar temas para suas coleções. Paralelamente, aprendem a calcular custos e preços, a adequar seu produto às exigências do mercado, a montar mostruários e a dominar técnicas de comercialização. Ao longo de toda a formação, visitam exposições, ateliês de artistas e designers. O curso, que no início tinha dois anos e meio, hoje tem dois anos de duração, incluídos seis meses de incubadora. Nesse período, os jovens desenvolvem seus produtos de forma autônoma, mas continuam recebendo apoio para participar de feiras, colocar seus produtos no mercado e gerir os lucros.

A primeira turma do Programa, formada por jovens do entorno do Museu, criou a Sociedade Alternativa do Barro – SAB. Além de acessórios, o grupo passou a criar objetos de decoração. A segunda turma reúne jovens do município de Araçoiaba, localizado a 70km do Recife. Para implantar esse núcleo, a equipe do Museu realizou uma pesquisa sociocultural e um mapeamento de materiais locais. Os participantes criaram a cooperativa Arafibrart para produzir papel reciclado a partir do bagaço da cana, da palha da bananeira e do agave. Em sua terceira edição, o Programa retornou ao Museu.

O quarto núcleo integrou um projeto de Turismo Cultural junto à comunidade do Morro da Conceição. Várias ações foram realizadas – pesquisas, visitação dos moradores ao Museu, exposição, oficina com Antônio Carlos Pinto, do Museu da Maré. O Programa Jovem Artesão foi realizado em parceria com a igreja, que cedeu o espaço da Casa do Romeiro. Os jovens optaram por trabalhar com estamparia e desenvolveram três coleções: Escadarias do Morro (inspirada em uma escadaria local, trabalhada em mosaico de azulejos); Vou de Recife (que faz referência a sete pontos turísticos da cidade) e Máquinas do Ritmo. As duas primeiras coleções tiveram a consultoria de designers e a última, desenvolvida no período de incubadora, foi um trabalho autônomo dos participantes, que se organizaram no coletivo Conceição do Morro.

O núcleo recém-iniciado acontece no Bairro Casa Amarela. Essa edição é uma parceria com o Instituto Wallmart, que desenvolve um trabalho grande na comunidade vizinha. A implantação desse núcleo foi resultado de um processo que envolveu reuniões e apresentações do projeto para representantes da comunidade, para a comissão do Instituto e para os próprios jovens, que manifestaram seu interesse pela proposta. Referindo-se à apresentação de Faustini, Sílvia comentou sobre o projeto Geração Y, em que os jovens apresentam suas propostas e negociam formas de viabilizá-las junto a empresários.

Sobre os resultados do Programa Jovem Artesão, Sílvia citou: o fato de o Museu ter se tornado um parceiro dos grupos; a aproximação das comunidades do acervo; o ganho pessoal dos participantes através da formação; o desenvolvimento sustentável dos projetos; e a geração de renda, principalmente para as jovens da Arafibrart, que conseguiram se organizar em forma de cooperativa.

O projeto O Museu Guardas aconteceu no período em que Chico Magalhães esteve à frente do Museu Mineiro, entre 2005 e 2011. Direcionado para a coleção de arte sacra, que reúne um conjunto importante de peças do período barroco mineiro, o projeto priorizou os grupos que mantém viva a tradição do congado em Minas Gerais. Chamando atenção para a contradição entre uma coleção pública, que permanece desconhecida das comunidades responsáveis pela preservação da cultura imaterial que dá sentido às peças, Chico contou da emoção de Dona Isabel Casemiro, Rainha Conga de Minas Gerais, quando visitou o Museu em 2007 e se deparou com uma revoada de Nossa Senhora da Conceição na vitrine. Aos 68 anos de idade, ela não tinha ideia que o objeto de sua devoção estava exposto em um Museu.

As ações do projeto aconteciam no espaço do Museu. Os congadeiros eram convidados para estar no Museu e o primeiro grupo a chegar era recebido pelo diretor, que apresentava a “casa” aos integrantes. O grupo, então, escolhia uma peça para ser louvada. Essa peça era retirada da vitrine e colocada em um altar. A partir dali, começava a cantoria, que durava o dia todo, “acordando a santaiada que dormia nas vitrines”. Nesse dia, o primeiro grupo transformava-se no interlocutor do Museu, passando a receber todos os convidados subsequentes. Esses encontros coincidiam, às vezes, com projetos paralelos, que tinham interface com O Museu Guardas, o que proporcionava uma combinação muito interessante de pessoas, reunindo congadeiros, artistas, poetas, turistas e público em geral. Para falar sobre o projeto, Chico mostrou em vídeo o depoimento de dois participantes: Pedrina de Lourdes Santos e Roberto Andrés.

Pedrina é Capitã de Guarda de Moçambique Nossa Senhora das Mercês e há 38 anos participa da Festa de Nossa Senhora do Rosário em Oliveira, interior de Minas Gerais.  Ela observou que essa manifestação, ao mesmo tempo religiosa, cultural e social, tem uma forte estrutura familiar, da qual participam avós, pais, filhos, netos, sobrinhos e tios. Para essas diferentes gerações, os encontros no Museu proporcionaram a oportunidade de ver contada e valorizada sua própria história e a de seus ancestrais negros. Ao mesmo tempo, a manifestação da dança e da fé junto aos objetos sagrados tornou o Museu um espaço de cultura viva.

O arquiteto Roberto participou da 2ª edição do projeto Território Museu Mineiro, realizada em 2007. Falando de outro lugar, ele levantou pontos semelhantes à Pedrina. Na sua visão, O Museu Guardas desloca a ideia do que seja “guardar” em duas direções. Quando disponibiliza para os grupos de congado objetos sacros que fazem sentido para esses grupos, entende que guardar não é colocar dentro de uma gaveta, mas dar vida a esses objetos. Por outro lado, ao zelar por uma manifestação cultural como o congado, também atua no sentido de guardar essa manifestação, compartilhando-a com outros membros da cultura. Segundo Roberto, outro mérito do projeto é escapar da armadilha de tratar o congado como fato folclórico. Ao justapor atividades do Guardas com ações do Território, que consistiam em intervenções de jovens artistas no espaço expositivo, o Museu colocava no mesmo patamar o que se chama de cultura popular e de cultura erudita. Com isso, colocava todas as ações como parte de uma cultura que está se construindo.

Concluindo sua apresentação, Chico contou que a primeira ação do projeto, realizada em 19 de dezembro de 2005, reuniu 75 pessoas. Esse número inicial subiu para 875 pessoas na última ação, acontecida em 21 de dezembro de 2008. Durante os três anos do Guardas, cerca de 7.000 pessoas participaram do total de 23 ações. Na sua avaliação, muito mais importante do que os números foi a reunião de pessoas tão diferentes experimentando o espaço do Museu de modo prazeroso. Em vez de longas viagens de ônibus, professores enfastiados e uma mediação de cima para baixo, que apresenta o acervo como se os visitantes tivessem que se curvar diante das peças, os jovens puderam compartilhar essa experiência com seus pares e suas famílias de forma divertida e leve. De extravagante, duro, difícil e até mesmo chato, o Museu passa a ser um espaço de prazer e deleite.

Terminadas as apresentações, Janaina Melo convidou as participantes da mesa da manhã para se juntar ao grupo e responder as questões colocadas pelo público. Ed, da Escola Guignard, perguntou à equipe do Laboratório Inhotim como a experiência cultural dos jovens foi introduzida nas oficinas. E Tiago, que disse ter se identificado com a apresentação sobre a Agência, quis saber até que ponto os participantes desses projetos têm autonomia para atuar. A resposta de Marcus aponta como as duas questões estão imbricadas e estabelece um eixo interessante para pensar as contribuições das três apresentações:

não existe autonomia sem conflito, sem negociação. Quando a gente diz que quer inventar um novo lugar de encontro, é para o encontro ser de igual para igual, onde cada um traga sua mala e discuta a partir disso. Não tem um campo idealizado de falta de conflito ou de falta de relação de poder. É uma maneira de fazer o jovem de origem popular entrar nesse jogo não como aluno, não num lugar hierarquizado, para que ele possa se agenciar e discutir. A partir do momento que você coloca isso, novas tensões aparecem e é isso que é interessante: o campo da arte vira um campo de negociação.

Como cada um dos projetos lida com o campo da arte ou, mais amplamente, com o campo da cultura? Em que medida a bagagem dos participantes é levada em conta na formulação dos projetos? Que espaço os participantes têm para propor e negociar objetivos, estratégias e ações? Embora em âmbitos diferentes, as três experiências mostram que a negociação faz parte do jogo. Afinal, não se trata de participação obrigatória e é preciso algum esforço para convocar o desejo dos participantes.

O Museu Guardas propôs uma meta singela: dar a conhecer o acervo religioso do Museu Mineiro aos grupos de congado do estado. Ao que parece, fora a oportunidade de estar no espaço do Museu e lá celebrar sua cultura, nada mais lhes foi oferecido. O convite para participar do projeto não incluiu formação, ensaio, prêmio,brinde, nem nada do gênero – os grupos apenas se apresentavam do modo como sempre faziam em outros lugares e depois voltavam para suas casas, suas atividades, sua vida. Em algumas dessas ocasiões, assistiam a intervenções realizadas por jovens artistas e se apresentavam para eles e para outras pessoas presentes. O que levaram da sua experiência no Museu pertence ao campo do subjetivo. Para a Capitã de Guarda Pedrina, ver os objetos de culto da sua família em um espaço institucionalizado foi motivo de orgulho e afirmação. Mas ela sabe que essa legitimação também ocorreu no sentido oposto, pois as danças e rezas do seu grupo adicionaram outra dimensão à coleção do Museu. Afinal, não foi à toa que foi convidada a dar seu depoimento. O que talvez ela não saiba é que seu depoimento foi apresentado pelo ex-diretor do Museu em um seminário internacional de arte e educação. Mesmo assim, a negociação entre os participantes parece equilibrada: cada lado entrou com sua bagagem e saiu fortalecido da troca.

Sobre o Programa Jovem Artesão, não ficou claro qual a sua relação com o acervo do Museu do Homem do Nordeste. Embora tenha sido mencionado que o filho de um cortador de cana ou de um brincante pode se reconhecer no acervo e incorporar isso na sua coleção, nem a descrição da metodologia nem os exemplos de trabalhos apresentados indicou essa proximidade. Assim, para aqueles que não estão familiarizados com o Museu, o Programa Jovem Artesão parece um programa profissionalizante realizado com muita competência e seriedade. O formato prevê alguns espaços de escolha: os jovens podem decidir sobre o material e o tipo de produto, o tema das coleções, o nome do grupo e sugerir visitas-passeio. Mas o objetivo e a estrutura geral estão dados. É claro, existe sempre a opção de não aceitar o convite para participar. O interessante é que a história do Programa parece indicar um dilatamento crescente do poder de negociação dos participantes. Para montar o núcleo de Araçoiaba foi realizada uma pesquisa sociocultural e um levantamento dos materiais locais. O núcleo do Morro da Conceição envolveu uma negociação com a comunidade local. A esse respeito, Sílvia comentou que é “como o Marcus falou: trabalhar com a comunidade tem que ter muito respeito, eles sabem o que querem, não é você entrar e impor”. Para a turma de Casa Amarela, recém-iniciada, houve uma série de apresentações do Programa, inclusive para os jovens, que se manifestaram a favor da sua realização.

A “reinvenção do espaço-tempo”, norteador do trabalho da Agência de Redes para a Juventude, é o pulo do gato que a diferencia no mar de mesmices de projetos artísticos e culturais desenvolvidos em comunidades. A arte, nessa proposta, se aplica como estratégia e ambiente para promover o encontro de jovens da periferia com sujeitos de outros lugares – estudantes universitários, doutores de academia, representantes de financiadoras de projetos. Cada um com suas habilidades, num encontro de igual para igual entre não iguais. A metodologia buscou romper com o imaginário de que na favela só há violência e meninos carentes – representações sociais que não só afetam o olhar de quem está do lado de fora como também já foram internalizadas pelos próprios moradores das comunidades. Para fortalecer os jovens, a Agência disponibilizou instrumentos para que pudessem compreender e manipular o “repertório da cidade”, o “código do mundo”, a língua de negociação. De acordo com Marcus, esses diálogos não intencionam amenizar diferenças, senão instaurar um lugar de fala e de negociação. Aliás, um campo de negociação no qual até mesmo os conflitos e as divergências possam ser outros, reinventados.
As três apresentações sugerem que há duas transformações muito positivas em curso no campo da arte e da cultura: primeiro, que novos participantes estão cada vez mais conquistando espaços de fala e de negociação; segundo, que há formas diferentes de propiciar esse diálogo.