Conferência 1: O sistema da arte/Relato

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Comunicações
Considerações finais

Conferencistas: Susan May, Ousseynou Wade, Paulo Herkenhoff; Moderadora: Daniela Bousso. Auditório 1.
Relatores: Paula Alzugaray (resumo), Fernando Oliva (relato), Paula Braga (coordenação de relatos).

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Relato

(por Fernando Oliva/ coord. Paula Braga)

Os debates em torno das questões políticas, mais especificamente os enfrentamentos culturais marcados pelas disputas geopolítico-culturais no sistema da arte globalizada, marcaram a primeira conferência do 1o Simpósio Internacional do Paço das Artes - Padrões aos Pedaços. Batizada com o nome genérico de O Sistema da Arte, a mesa foi composta pelos conferencistas Susan May (diretora do Arts Council Collection da Inglaterra), Paulo Herkenhoff (curador, diretor do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro) e Ousseynou Wade (curador da Dak’Art – Bienal de Arte Africana Contemporânea).

Susan May abriu os trabalhos dando o tom que iria dominar as discussões da noite. A curadora inglesa falou do recente atentado à bomba em Londres, lembrando o choque que se seguiu à revelação de que fora praticado por muçulmanos de origem inglesa, o que deu origem às inevitáveis reivindicações da direita por limitações nos direitos de imigração e asilo. A questão-chave colocada por ela parece ser a mesma posta pelos artistas das vanguardas do início do século 20 e que desde então não deixou a berlinda: dentro do clima de turbulência e incerteza em que vivemos, a arte teria algo de significativo a comunicar? Poderia a arte ser um agente de transformação?

A partir de então, May invocou trabalhos de diversos artistas que atuam nas possíveis fricções arte e política – todos presentes no British Art Show, mostra organizada pela poderosa Hayward Gallery a cada cinco anos, e que May considera um termômetro de tendências na Inglaterra, marcada neste momento pela crescente diversidade cultural de seu cenário artístico, devido à enorme afluência de artistas de diversas nacionalidades para lá, possibilidade agora posta em xeque por uma provável guinada política à direita. Vale a pena aqui retomar a colocação de May, citando os curadores do British Art Show. “Em um mundo artístico cosmopolita, no qual artistas viajam para realizar seus trabalhos e participar de exposições ao redor do planeta, o fato de serem eles britânicos, brasileiros ou chineses é de menor importância. Comparar os artistas do ponto de vista de sua origem geográfica é em geral enfatizar os aspectos mais superficiais de suas práticas”, afirmou ela, lembrando que a idéia de nação foi sofrendo uma progressiva erosão com a globalização dos mercados, com as migrações políticas e econômicas, barateamento das viagens internacionais, a Internet, o desmantelamento dos antigos impérios e o surgimento de novos, caso recente da China (cuja produção em arte contemporânea vem sintomaticamente se aproximando daquela linguagem internacional que nos acostumamos a ver em dezenas de Bienais pelo mundo e que tanto agrada às “curadorias políticas”, como a da mais recente Documenta, em 2002).

Apesar da dissolução da idéia de nação, Osseynou Wade destaca que o programa da Dak´Art prioriza a divulgação da arte produzida no continente africano, em repúdio a exposições organizadas nos centros hegemônicos que assumem o papel de validação da arte gerada em outras culturas. Wade retomou a história da Dak´Art, fundada em 1990 a partir dos pressupostos do Festival Internacional das Artes Negras de 1966 e salientou que, num mundo de interações culturais tão intensas, a Dak´Art retira a produção artística africana de uma suposta posição periférica: "A bienal de arte contemporânea africana de Dacar, pela regularidade de sua organização, permitiu a descoberta de muitos artistas africanos, dentre os quais alguns que então participaram da Bienal de S Paulo e de outras como Cuba e Veneza" .  Num mundo globalizado, esse intercâmbio é inevitável, e a Dak´Art posiciona-se como um pólo para troca de experiências entre organizadores de grandes mostras.

Susan May assume a globalização como uma influência de fato na arte contemporânea de seu país, citando especificamente as obras transculturais de Phil Collins, Zarina Bhimji, Breda Beban, Zined Sedira e Marine Hugonnier, entre outros artistas dos quais nós brasileiros só tomamos conhecimento pelas imagens digitais da internet ou pelas páginas das revistas de arte internacionais. Gostaria de abrir aqui um pequeno parênteses: para além da inserção de alguns poucos, praticamente sempre os mesmos, artistas brasileiros no circuito internacional, o isolamento de nosso meio de arte se faz ainda mais evidente se constatarmos que pouco ou quase nada conhecemos de nossos vizinhos sul-americanos (a não ser aqueles nomes já avalizados pelo exterior, como Jorge Macchi e Martín Sastre).

May concluiu sua fala de maneira otimista (e, de certa forma, ingênua), afirmando que os trabalhos dos artistas citados por ela como exemplo das possibilidades multiculturais no panorama da arte contemporânea são “propostas objetivas” e, conseqüentemente, seu poder de persuasão surge da simples operação de interpelar o público a encontrar respostas e estabelecer seus próprios julgamentos morais.

Se May pareceu dividir as responsabilidades políticas com o espectador e a sociedade, Paulo Herkenhoff reinseriu o problema no campo da arte, invocando o poder dos artistas e da generosa crítica de arte representada por Mário Pedrosa. Desta forma, pareceu mais próximo de responder à questão inicial colocada pela fleumática curadora inglesa. Apesar do pessimismo de sua fala (que pode ser atribuído aos gigantescos e inegáveis problemas estruturais enfrentados por ele na gestão do MNBA, questão sobre o qual não vamos nos deter), Herkenhoff fez eco crítico ao discurso de May, e de forma incisiva respondeu que sim, a arte pode ser agente de transformação social e política. O curador brasileiro mais uma vez retomou a célebre proposição de Pedrosa: a arte como exercício experimental da liberdade.

Como sempre eloqüente e sedutor em sua retórica, novamente aproveitando a oportunidade para atacar o que ele chama de “crítica formalista” de arte no Brasil, baseada no “exaustivo pensamento” de Clement Greenberg, que ele vê como algo pernicioso, o curador exaltou o papel de Helio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Nise da Silveira, Mondrian e Merleau-Ponty, como pessoas que souberam se valer do “capitoso vinho da vida”. Mantendo um diálogo constante – e tenso – com a fala de Susan May, Herkenhoff defendeu o lugar do novo e do experimental, em contraponto ao puro virtuosismo. Segundo ele, a arte contemporânea deve transitar por toda a parte sem preconceito, sem limitações ideológicas e, novamente cutucando os formalistas, “submissão a qualquer sistema teórico”, do zero ao infinito. “Zero, sendo o Branco sobre Branco de Malévitch, e o infinito, a Internet”, afirmou Herkenhoff, já conhecido pela ousadia de suas analogias nos debates de que participa. Em alguns momentos, o curador parecia estar atendendo ao pedido inicial de Daniela Bousso, diretora do Paço das Artes e idealizadora deste simpósio: “Vamos trocar experiências mas, sobretudo, nos divertir”.

Revolução por vir

Enquanto May optou por exibir ao público o trabalho da artista francesa Marine Hugonnier (que investe sobre as relações entre paisagem e história, filmando em locais simbólicos do Afeganistão e da Palestina), Herkenhoff deslocou a discussão da arte política no mundo globalizado para o campo da mídia, lembrando que as imagens das terríveis pilhagens dos museus e bibliotecas de Bagdá foram muito menos exploradas e difundidas que, por exemplo, as cenas de tortura de prisioneiros de guerra iraquianos por militares americanos. Falou ainda, muito apropriadamente, do descaso dos cadernos e jornalistas culturais brasileiros com a questão do Guggenheim carioca, assunto hoje esquecido (como logo será a CPI dos Correios ou o escândalo do “mensalão”), mas que em certa época serviu para plataformas demagógicas e caronas oportunistas de tantos “defensores ferrenhos” dos museus do Rio de Janeiro, hoje de volta à situação de penúria e dependência do departamentos de marketing das empresas, além de reféns das leis de incentivo – uma vez que, é oportuno lembrar, no Brasil não existe mecenato de fato, mas na maioria das vezes projetos de alavancagem social e empresarial que buscam se valer do aval da arte, como melancolicamente ficou provado com a derrocada da BrasilConnects.

Ao concluir, o diretor do MNBA fez uma dura crítica ao papel dos museus em nosso tempo e aos profissionais responsáveis pelo perfil de suas exposições e estratégias, apontando o que ele chamou de “doença” dentro deles: instituições seqüestradas por curadores para os propósitos das estratégias de suas carreiras. Lançando uma aposta revolucionária para o futuro próximo, Herkenhoff afirmou que os museus dos países democráticos, mais permeáveis a movimentos da sociedade, terão de sair de sua letargia “por movimento próprio, ou terão suas portas arrombadas pelos artistas”. No caso do Brasil, essa previsão parece muito distante de se concretizar, se considerarmos a pouca repercussão das ainda incipientes tentativas de tornar público os debates que são realizados intramuros e a letargia que em geral domina o meio artístico – um exemplo recente, para citar o caso emblemático da crônica péssima gestão do Masp, marcada pelo divórcio com o público e com a arte contemporânea: um protesto convocado pelos ativistas do grupo Etecetera, no dia de mais uma reeleição de seu presidente Julio Neves, em 29 de outubro do ano passado, atraiu um número reduzidíssimo de pessoas ao Vão Livre, muito menos gente que costuma freqüentar as concorridas e generosas aberturas do Itaú Cultural e Instituto Tomie Ohtake.