Campos Independentes, pero no tanto...

Patricia Canetti

 

maio 06, 2004

Hora de crescer - como atiçar a brasa?

 

A primeira vez que ouvi Eduardo Kac falar de seu biobot (http://www.ekac.org/8thday.html), contando sobre como o robô era movimentado pela multiplicação e movimentação de organismos vivos, imediatamente pensei no funcionamento do Canal Contemporâneo, relacionando a sua atuação à multiplicação e à movimentação dos indivíduos conectados à rede, mas pensei também no nosso próprio funcionamento como indivíduos, a partir das infinitas conexões que o nosso código genético faz com outros organismos vivos.

 

O Oitavo Dia (1) nos coloca diante da condição transgênica do ser humano, do fato do Projeto Genoma Humano ter demonstrado que carregamos DNA descendente de vírus em nosso código genético, e “sugere que as noções “românticas” do que é natural têm de ser questionadas...”

 

O que mais me interessa no conhecimento do Genoma Humano é o fato dele nos evidenciar uma ampla ascendência e, a partir dela, podermos entrar em contato com o fato de sermos feitos de pedaços. Pedaços esses que nos estruturam e que nos conectam ao exterior e ao coletivo. É a percepção inédita do coletivo em nosso interior, mesclada à vivência de rede das novas tecnologias, que nos possibilitam vislumbrar novas relações entre a individualidade e a coletividade na condição humana.

 

Campos Independentes

 

Esse termo gera para mim um paradoxo, na medida que entendo campo, ou qualquer esfera de ação atual, como uma parte de uma estrutura, o que naturalmente nos leva a uma interdependência dos vários contextos envolvidos.  A percepção da autonomia e liberdade necessárias para a proposição de uma independência pode se dar na reunião de algumas características, que levam a definições específicas de um campo, ou em recortes temporários, mas sua permanência no tempo sempre será de alguma maneira modificada pela permeabilidade entre contextos, pelo diálogo e pela negociação necessários à própria existência contemporânea.

 

Para criar um banco de dados eficiente é preciso determinar campos independentes em relação às informações que estes irão guardar, para que a interdependência do conjunto de campos resulte num sistema apto a responder funções que gerem sentido e inteligência.

 

É a partir dessas premissas que poderemos olhar a seguir para uma noção de independência restrita ao tempo e espaço. (Qualquer semelhança com as Zonas Autônomas Temporárias de Hakim Bey não é mera coincidência).

 

A comunidade digital formada pelo Canal Contemporâneo traça a sua independência a partir do foco no circuito de arte contemporânea brasileira e na dinâmica que dá visibilidade ao mesmo tempo às ações e à crítica do circuito, gerando alguma reflexão sobre o seu reflexo. Também podemos afirmar que sua independência está intimamente ligada à interdependência de todas as partes desse circuito que integram a comunidade.

 

A integração a essa comunidade se dá a partir do compartilhamento de uma memória coletiva comum. Um mosaico de informação e conhecimento é gerado com a participação das pessoas que enviam imagens, textos, comentários e deflagram o campo de comunicação movimentado pelo Canal.

 

Tendo a primeira etapa da comunicação estabelecida através da rede conectada, passamos a trocar mais do que simples informações e começamos a experimentar as nossas potencialidades políticas.

 

Recentemente, no Rio de Janeiro, o chamado para a formatação da Câmara Setorial de Cultura de Artes Visuais proporcionou um feliz reencontro de um grupo que vem se reunindo, quando necessário, desde o início de 2003, e esta seqüência pode nos servir para examinar o funcionamento de nossa comunidade.

 

Tivemos uma primeira reunião, com um quorum baixo devido à falta de divulgação, mas ao divulgarmos no Canal Contemporâneo o encontro e a eleição para os representantes, tivemos a grata surpresa de rever os antigos companheiros, além de novos integrantes que a cada nova mobilização vão engrossando a nossa voz.

 

Na virada do ano de 2002 para 2003, algumas mudanças afetaram gravemente o andamento das políticas culturais cariocas e interromperam um dos projetos mais democráticos já propostos em nossa cidade: um banco de projetos culturais enviados por artistas e produtores de todas as áreas que iria alimentar as ações da RioArte. Diante de mais esse desmando, nos mobilizamos contra a maneira autoritária e arbitrária da prefeitura do Rio de Janeiro em gerir suas políticas para as Artes Plásticas, através de uma convocação veiculada pelo Canal Contemporâneo, que viria a ser conhecida como o abaixo-assinado contra o uso de recursos públicos na construção do Guggenheim no Rio.

 

Desde esse episódio, que provocou reuniões semanais no AGORA e depois no Parque Lage, por um certo período de tempo, e a conexão permanente através da lista de discussão artesvisuais_políticas, que temos tido a sensação de estarmos em estado de alerta, latente e permanente, que a um sinal dado responde com o ressurgimento de um pequeno exército de pessoas prontas a ouvir, trocar e se manifestar.

 

1 – Eram os seguintes os pontos originais da convocação de 2003:

 

Discordamos dos atos de corte de verbas, cancelamento de eventos e desmantelamento dos espaços destinados às artes plásticas;

Consideramos urgente e essencial uma prática democrática por parte dos representantes da Prefeitura, no sentido de ouvir a classe artística antes da tomada de decisões políticas, técnicas e orçamentárias para a área da cultura;

Somos contra a construção do Museu Guggenheim com o uso escandaloso do dinheiro público, já que consideramos que um museu privado deve instalar-se com suas próprias verbas;

A cultura deve ser usada pela sociedade como uma poderosa arma para potencializar mudanças no ensino brasileiro, e não ser diluída e alinhada ao nível precário e deficiente de nosso sistema educacional;

A Prefeitura deve sintonizar-se com a nova realidade política do país, agindo de modo democrático e participativo.

 

2 – Por causa da urgência exigida pela assinatura do contrato que daria início à construção do Guggenheim e também por ela simbolizar as contradições das políticas públicas culturais cariocas, a mobilização acabou focando-se nesse ponto específico da convocação original.

 

3 – Curiosamente, dois anos e meio depois, as reivindicações continuam atuais... Em 2004, duas outras mobilizações ocorreram: contra o fechamento de uma das galerias do Sérgio Porto e contra a colocação das esculturas da artista Mazeredo, que ameaçavam ficar permanentemente na orla de Copacabana.